terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Um tiro no pé ou a vergonha de não saber psicologia

O puto coleccionava notas negativas umas atrás das outras, mês após mês. Um dia, porém, tirou um 10. Quando o professor lhe entregou o trabalho, fez-lhe uma carícia nos cabelos e disse-lhe bem alto, para que toda a turma ouvisse:
– Vês? Tu consegues!
Desse dia em diante, o puto nunca mais teve negativa. Nessa e noutras disciplinas. E o professor só soube da benéfica influência do seu gesto anos depois, quando os pais o encontraram e lho revelaram. Nessa altura, já o filhote era arquitecto credenciado.
Calou-me fundo o testemunho.
É por isso que eu sustento: essa ideia peregrina de tirar a quem nunca falta os três dias de férias compensatórias constitui tremendo tiro no pé, uma decisão só passível de ser imaginada por quem manifesta a mais crassa, pueril e inconcebível ignorância acerca da psicologia humana.
Considerar que retirar essa recompensa a quem, com entusiasmo, se dedica às tarefas que lhe são confiadas é – não tenhamos dúvidas!... – fazer-lhe esmorecer por completo esse entusiasmo, retirar motivação. E esses senhores que dizem perceber de números, esquecem-se de que, por detrás dos números, têm de estar pessoas, tem de estar entusiasmo, tem de estar motivação – elementos imprescindíveis para que os números engrossem, como eles querem! Que se lhes há-de fazer, coitados?!...
O que mais me entristece é verificar serem, nesse aspecto, eles próprios uns falhados, uns desmemoriados, porque depressa se esqueceram que foi com o entusiasmo que ascenderam à posição que ora ocupam. Já se esqueceram? É pena! Nunca lhes ensinaram o que é motivação? É pena!
Como professor, que tudo devo aos meus mestres entusiastas, àqueles que me ensinaram a gostar do que faço, sinto, pois, uma tristeza profunda, porque – como estudei História – sei que, assim, o desfecho é um rotundo fracasso, a maior desilusão e revolta! Não, poderá não ser – o que duvido, porém – uma revolta no sentido real da palavra; será, sim, um deixar cair os braços, o desânimo, porque, afinal, para quê esforçar-se, se até três míseros dias nos querem roubar?!...
Muito gostaria de crer que o bom senso ainda houvesse de imperar!

Publicado no quinzenário Renascimento [Mangualde], nº 584, 01-01-2012, p. 13.

1 comentário:

  1. Caro Professor, como bem sabe, o neoliberalismo mais crasso não entende nada de psicologia, pensa que tudo se pode reduzir a entidades contabilizáveis e que as decisões que afectam o comportamento não têm consequências mais além das que consideram ser "perdas aceitáveis". Portanto, como "perdas aceitáveis" serão racionalizadas aquelas horas que se perderão devido ao menor empenho de quem, justamente, se sente traído e desmotivado. Quando as perdas deixarem de ser tão aceitáveis, encontrarão certamente uma dúzia de motivos para substituírem estes trabalhadores por outros "mais empenhados" e devidamente "educados"

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