Há pedras com letras que toda a
gente vê e que, por nunca ninguém ter chamado a atenção para elas, facilmente
passam despercebidas. Isso acontece com um letreiro na igreja matriz de Sever.
Existe
em Sever, freguesia de Sever, concelho de Moimenta da Beira, na igreja de Nossa
Senhora da Conceição (padroeira da freguesia), inserida no interior, na
parede do lado norte do corpo que serve parcialmente de base ao campanário, uma
dessas pedras com letras.
Está
em ponto alto, do lado esquerdo de um portal de arco de volta perfeita, de quem
olha dentro da igreja. Quase se confunde com as restantes pedras da parede, não
fosse o seu contorno.
Cinzelada
numa placa aproximadamente quadrangular, de granito de grão médio, amarelo
claro, com moldura ornamentada, a inscrição apenas terá sido referida, até ao
momento, pelo padre António Bento da Guia, em As vinte freguesias de
Moimenta da Beira (Câmara Municipal de Moimenta, 3ª ed., 2001, p. 194),
nestes termos:
«Em
frente da igreja há uma galilé que dá passagem para o campanário e para o
cemitério e nela existe uma inscrição gravadas numa das pedras tão antiga que
não conseguimos lê-la».
Campo
epigráfico rebaixado.
Dimensões
da placa: 58 cm de altura x 53 cm de largura. A altura das letras,
que revelam algum desgaste, varia entre
os 3,5 e os 4,5 cm.
Escrito em latim o texto diz o
seguinte:
NON
EST HIC ALIVD
NISI DOMVS DEI
& PORTA CO
ELI OI VINTIS
QUI PETIT
A primeira parte da frase - Non est hic aliud nisi domus Dei et porta coeli - é assaz conhecida, por se mencionar, por exemplo, na antífona de vésperas da dedicação de uma igreja. Foi recortada de uma passagem do livro do Génesis (28, 17) e encontra-se, por isso, em variadíssimas igrejas: encima uma janela na matriz do Bonfim, no Porto; está no vão central da facada principal da matriz de Valongo; pintaram-na no arco cruzeiro da matriz de Guisande (S. Maria da Feira)…Em
português significa:
«Nada mais existe aqui senão a casa de Deus e a porta do céu».
Facilmente se compreende que é estranha a formulação, só compreensível se formos ao contexto em que foi proferida.
Jacob,
a caminho de Harân, «chegou a determinado sítio e resolveu passar ali a noite,
porque o sol já se tinha posto. Serviu-se de uma das pedras do lugar como travesseiro
e deitou-se. Teve um sonho: viu uma escada apoiada na terra, cuja extremidade tocava
o céu; e ao longo dessa escada subiam e desciam anjos de Deus. Por cima dela
estava o Senhor, que lhe disse: «Eu sou o Senhor, o Deus de Abraão, teu pai, e
o Deus de Isaac. Esta terra, na qual te deitaste, dar-ta-ei assim como à tua posteridade.
[…] «Despertando do sonho, Jacob exclamou: «O Senhor está realmente neste lugar,
e eu não o sabia!». Atemorizado, acrescentou: “Que terrível é este lugar! Aqui
é a casa de Deus. aqui é porta do céu». No dia seguinte, Jacob agarrou na pedra
que lhe servira de travesseiro, e, depois de a erguer como um padrão, derramou
óleo sobre ela» ( 28, 10-18).
Retirou-se, pois, essa primeira parte da frase
«O quam metuendus est locus iste», e adaptou-se o
resto para a cerimónia da dedicação de uma igreja, cerimónia que se reveste do
maior significado na religião católica, por significar a consagração oficial de
um lugar ao culto. Acrescente-se, porém, que, tendo consultado o cerimonial
previsto para Portugal para dedicação duma igreja, nada encontrámos que pudesse
ter ligação directa com a frase.
Em todo o caso, não é tanto a frase
canónica que ora particularmente nos interessa, mas sim o que vem a seguir,
aparentemente até escrito por outra mão. Ou seja: há a frase mais ou menos
estereotipada, como vimos; contudo, alguém decidiu acrescentar algo mais, o que
se conclui pelo uso do U em vez de V (como era comum nas inscrições em Latim).
E, na verdade, se a primeira parte
da inscrição obedece, porque copiada, às habituais regras das epígrafes, esse
‘acrescento’ reveste-se de marcantes características populares:
– A interjeição Oi só a
encontrámos num dicionário (de Francisco Torrinha), com o significado de ah!
oh! ai!, a designar dor;
– vintis (está bem visível o
nexo NT) não tem, assim grafado, correspondente em latim.
Ocorre a semelhança com a expressão
Vae Victis! proferida pelo general gaulês Breno, ao pôr a espada num dos
pratos da balança que determinava o peso do resgate a pagar pelos Romanos após
a derrota. Mas, aqui, há um N, o que nos leva a supor que – embora com essa
frase no ouvido – se tenha pensado em vinctus¸ cativo, preso, particípio
passado do verbo latino vincire, «ainda que não haja concordância alguma
com o que vem a seguir, que está no singular, qui petit, «que acomete». Petit
é a terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo «petere»,
‘atirar-se contra’, atacar’, ‘assaltar’…
Por
consequência, uma frase, esta última, em latim popular, que verbera e, de certo
modo, lança o impropério sobre quem ousar violar o carácter sagrado do templo.
Como quem diz «Cativo seja quem viole!» essa sacralidade! Ai dele! Que a ignomínia
do Senhor o tornará seu prisioneiro!
Em conclusão:
Há
pedras escritas que, ignoradas desde há muito, acabam por nos revelar, um dia,
mensagens que jamais esperaríamos e que bem mostram como a cultura bíblica se deixou
penetrar pela cultura clássica, numa simbiose tanto mais notável quanto se
verifica numa singela igreja do interior português.
A
nós cumpriu o dever de a dar a conhecer, a fim de se colherem outros testemunhos
que melhor venham esclarecer o que ora aqui se mostra.
José
d’Encarnação
José Carlos
Santos
Publicado em Terras do Demo (Moimenta da Beira) nº 465 [Ano XXV], 21-06-2021, p. 6.
Matéria bem interessante - obg. Abç.
ResponderEliminarBom, eu gostei tanto do texto que, se pudesse, ia já inscrever-me num curso de Epigrafia. Que maravilha vermos decifrar, por quem sabe, e podermos fazer o mesmo, aprendendo, o pensamento, ou a intenção, de quem mandou inscrever aqueles caracteres na pedra. Muito grata por mais este belíssimo texto. E outra grande lição a tirar: não basta olhar de fugida, é preciso ver com atenção.
ResponderEliminarJosé Manuel Varela Pires
ResponderEliminarA meio do nada, quando julgamos o nada inexistente, a meio desta viagem absoluta do conhecimento, cada pedra tem o seu próprio sentido de existir e, quiçá, o seu significado esquecido, sua mensagem, a sua corporeidade dirigida a quem a encontra e a considera. Felicito-o José da Encarnação pela procura, pela pesquisa persistente, por trazer à luz o que ignoto estava, talvez não em grande maioria, todavia no principal! Tudo o que se escreve é inúmeras vezes reescrito, para sobre ruínas se enunciar com a luz e o brilho da idade presente. Abraço!