Mas
fomos nós quem atirou os foguetes e fomos apanhar as canas. Uma nota sobre o
espectáculo de Cidália Moreira e Luís Capão no palco do Auditório do Casino
Estoril. O fado nunca envelhece e aquece os corações na saudade de estarmos
juntos.
A ressurreição é
um fenómeno que particularmente me agrada, Pessoas que tanto deram, dum momento
para o outro votadas ao esquecimento e que ora retornam. Os valores absolutos
não morrem; podem perecer os relativos, alcandorados pelas circunstâncias; o
absoluto permanece, ainda que diferentes sejam os valores cimeiros aí prantados
pelas contingências do momento. Como a semente: fica na terra, aconchegada,
quieta, semanas ou até meses a fio; depois, um belo dia, um raminho verde espreita
e diz «Olá! Estou aqui!». Tenho uma paciência sensata com as nossas orquídeas;
passam meses, longos meses, sem mudarem nada; as «raízes» (que não são raízes),
quedas, nem tugem. E, numa manhã, ao olharmos para o vaso, lá se descobre o
rebento a prometer a beleza.
Cidália
Moreira nasceu em Olhão a 1 de Janeiro de 1944. Lembro-me de a ter visto,
estava então no auge a sua aura de «fadista cigana», na monumental de Cascais,
antes do 25 de Abril, se não erro. Encantava-nos o seu «Oh! Quem me dera ter
outra vez 20 anos!». Fazendo jus a esse êxito foi o que primeiro nos cantou, na
noite de 17 passado, no primeiro de dois espectáculos no Auditório do Casino
Estoril. Longos cabelos pretos, xaile longo, vestido negro até aos pés,
arrecadas nas orelhas… «O Primeiro Amor!». Mas só depois do azougue dum
alentejano. Luís Capão. Fato grená. «Sou do fado», «Saudades trago comigo»,
«Canto o fado».
No
ecrã, ao fundo, iriam passar os nomes dos fados. Boa ideia. No palco, um jeito
de viela lisboeta: o candeeiro antigo, a luz escassa, o banco de jardim, o
recanto de uma tasca com garrafão e copos…
E
a noite fez-se assim, com os fados d’outrora e alguns do presente: »Miúdo da
rua», «Ela é Lisboa», «O fado mora em Lisboa», «A ternura dos 40», «Lisboa
menina e moça»… Tudo virtuosamente acompanhado por Hugo Edgar, na guitarra
portuguesa; Pedro Morato, na viola de fado; e Miguel Gelpi,
no contrabaixo – que, aliás, nos deliciaram também com duas
guitarradas de aplaudir.
Escrevi
«fizeram a festa». E foi verdade. Houve os momentos de semiobscuridade, de
«casa de fado», emoção, serenidade, só uma réstia de luz pelo palco… E a saudade veio, sorrateira, sentar-se
na cadeira vazia ao nosso lado. E houve a festa, o bater de palmas compassado,
a mostrar como nos artistas e no público assim se matava a sede de tão longos
meses de isolamento. E foi muito boa a partilha. Aliás, outra coisa não seria
de esperar quando se juntam em palco as raízes ciganas e, sobretudo, algarvias
(ah! mulher marfada!) da jovem septuagenária Cidália Moreira e a esfuziante boa
disposição do jovem alentejano de Alter do Chão, Luís Capão, ambos dotados de
um ‘vozeirão’ que inebria!
Sim,
recordámos, como não podia deixar de ser, as noites de fado do inesquecível
Carlos Zel e, depois, as que, no Salão Preto e Prata, se realizaram em sua memória.
Este foi, todavia, um ecoar diferente, um auspicioso recomeço – que encheu os
corações!
Não
posso, porém, terminar sem uma pergunta: donde terá caído aquela inoportuna
vírgula a separar, no título do programa («E Tudo Isto é, Fado!»), o sujeito do
predicado?!...
José d’Encarnação
Publicado em Duas Linhas, 25 de Junho de 2021: https://duaslinhas.pt/2021/06/uma-algarvia-e-um-alentejano-fizeram-a-festa/
Gosto muito do texto, que abre e fecha com belos pedaços de prosa. Pelo meio a descrição dessa noite de fados que parece ter sido memorável, com uma fadista tão castiça e um jovem (fui ver e ler sobre ele)que é já um valor firmado. E gosto do parágrafo final, bem colocada a questão. Talvez quisessem fazer uma pausa (usar reticências) para marcar a intensidade da palavra e significado seguintes, em vez de vírgula...
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