sábado, 20 de agosto de 2011

«O tempero da tradição»

Falhei, mais uma vez, bem contra a minha vontade (mas a vida tem destes imprevistos!), a presença na Feira da Serra deste ano!
Lamento-me, porque sei quanto a iniciativa representa de importante no contexto do que, ao longo do ano, se faz no nosso concelho, para manter a tradição.
Nesse aspecto, os responsáveis camarários põem, na verdade, todo o empenho e esmeram-se no pormenor.
Não posso, pois, deixar de me congratular vivamente com o grafismo escolhido para o convite. Apreciei não apenas o relevante significado de ser em cortiça – e todos compreendemos porquê: a cortiça está na base da nossa identidade!

Apreciei também, de modo muito especial, o convite em papel, com aquela coloração de azeite virgem, a lembrar outra das nossas riquezas e tradições. Mas é que essa cor e o raminho de oliveira e as azeitonitas, a cabeça de alhos, o nosso pãozinho, as folhinhas de hortelã, a cebola, a garrafinha de azeite aromatizado com ervas… tudo isso nos faz crescer água na boca e nos regala com o que é verdadeiramente nosso e nos distingue! Para mais, não faltou, discreto, o símbolo da pertença do nosso concelho às cidades que integram a rede internacional do slowfood, do «comer devagar», desta vontade de nos sentarmos à mesa e comer com descanso, num saborear de iguarias…
«O tempero da tradição»! É-o a Feira da Serra. É-o a nossa vontade de acentuar identidade.
Parabéns!

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], 20-08-2011, p. 15.

sábado, 6 de agosto de 2011

Andarilhanças 12

Amplitudes térmicas
Gripes, alergias várias, estranhos problemas oftalmológicos, febres inexplicáveis… um rol de maleitas que têm levado os cidadãos às consultas de urgência em Cascais. Tudo se deve – a crer em opiniões médicas abalizadas – ao facto de este Verão se apresentar com amplitudes térmicas anormais (calor durante o dia, brusco arrefecimento nocturno), para que não estávamos preparados.

As Bruxas de Salem
O enredo passa-se nos finais do longínquo século XVII numa colónia puritana de Massachusetts. Arthur Miller, o autor, é paladino da luta contra as intolerâncias de todo o tipo e o livro até pode ser considerado uma metáfora para determinado tempo ou… para os nossos tempos, porque não?
Está a peça em cena desde o dia 21 e manter-se-á até ao próximo dia 7, no Teatro Mirita Casimiro. Três razões poderão estar na base da escolha de Carlos Avilez para encenar este drama:
- a primeira, uma certa saudade, pois foi com esta peça, dirigida por Amélia Rey-Colaço, que, em 1957, se iniciou como actor;
- a segunda, a possibilidade de nela incluir, com três elencos, muitos dos alunos do 1º e 2º anos da Escola Profissional de Teatro de Cascais, que assim fazem como que uma prova das suas aptidões e se começam a familiarizar mais de perto com a profissão que encaram vir a seguir;
- a terceira, constituir o texto acutilante grito de alarme contra todas as intolerâncias… A sua actualidade mantém-se; as bruxas agora são outras e, queiramos ou não, acreditemos ou não, «que las hay las hay!». Oh! Se as há!...
Escusado será dizer que o espectáculo se recomenda – pela coreografia, pela nudez minimalista e cativante do cenário, pelo desempenho de todos os actores (foi um prazer rever João Vasco!), pela vontade conseguida dos jovens estudantes.

Terrenos limpos
Bem agradável verificar que, na freguesia de Cascais, se procedeu à limpeza de muitos terrenos particulares e públicos, onde a vegetação desordenadamente imperava e o lixo ganhava abrigo à espera de ser pasto de chamas. Parabéns!
Bairro da Assunção
Uma nota bem positiva: a adaptação a zona de lazer do pinhal junto à Rua Joaquim Ereira. Limpeza, passadeiras, bancos, mesas para um piquenique em família, recipientes para o lixo… Convite a usufruir do espaço e do ar puro.
Uma nota negativa: o abandono em que está o parque infantil da Praça João Martinho de Freitas.

Parque do Rio dos Mochos
Ainda não está muito divulgado entre a população. Poucos, portanto, dele estarão a beneficiar, o que pode redundar em algum descuido no que concerne a manutenção. Passei por lá na manhã de domingo, 24 de Julho, e apenas vi uma mãe com os dois filhotes a brincarem. Ainda se não conseguiu arranjar maneira de manter aberta a entrada para a Av. Infante D. Henrique e mesmo a entrada para a Praceta Joaquim Ereira não está sinalizada.

Filas, o horror!
Causa dor ver, logo de madrugada, as filas a formarem-se ao cimo da Av. Valbom, para o Instituto do Emprego; no centro da vila, para a Segurança Social; na Av. do Ultramar, para as Finanças…
Regozijam-se os governantes por terem cada vez menos funcionários. Sofre o Povo, por ter cada vez menos gente para o atender. E o tempo esvai-se pela calçada, num esperdício…
Não haverá um economista que, um dia, faça contas como deve ser?

Publicar livros
Nascem editoras como cogumelos e compreende-se porquê: primeiro, porque há muita gente a querer escrever; segundo, porque, de um modo geral, a editora compromete-se a publicar desde que o autor pague a edição.
Inclui-se um amigo meu naquele grupo que viveu a guerra de África e que considera a experiência tão singular que vale a pena consigná-la por escrito – para que conste. (Aliás, refere-se Júlio Conrado, no seu Barbershop, a essa leva de escritores, que nos merecem, por isso mesmo, o maior apreço). Escreveu, então, a uma editora: «Estou a finalizar um memorial, passado em Angola, entre 1967 e 1974, com histórias de caça, quotidiano e opiniões, sendo as histórias de caça o foco principal das memórias... as caçadas que saíram mal... essas, sim, capazes de arrancar um sorriso ou uma gargalhada a quem ler... Vivências e afectos». Sim, resposta da editora, editamos tudo. É assim: «O autor paga uma caução; compromete-se a vender 150 livros no dia da apresentação do livro, sendo responsável pelos que não se vendam». Feitas as contas, três editoras consultadas, o meu Amigo era sempre convidado a desembolsar entre 2500 e 3000 euros por uma ediçãozinha… Mas consolava-se: tinha um livro publicado!

Publicado em Jornal de Cascais, nº 278, 03-08-2011, p. 10.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

José Ribeiro Ferreira

Completou 70 anos, no passado dia 23, o Doutor José Ribeiro Ferreira, catedrático de Estudos Clássicos, que terá sido docente de muitos dos estudantes que, ao longo dos últimos 40 anos, passaram pelos bancos da Faculdade de Letras de Coimbra. Cumpriu, por isso, no dia 6, o ritual da sua «última lição», em que historiou a atribulada vida de Édipo, «um mito tirânico que não nos deixa e nos subjuga». A sua ideia era mostrar-nos que «o conhecimento técnico e o poder degradam e o sofrimento redime», mas… o desgraçado do Édipo não se redimiu!
Contudo, se hoje me refiro ao Colega e ao Amigo, é fundamentalmente porque ele soube aliar, de forma notável, a investigação histórica sobre a Grécia antiga, a democracia ateniense, com a arte poética, de tal modo que são quase tantos os livros de Poesia que escreveu como os resultantes da sua perspicaz análise dos textos e dos vestígios antigos.
No jantar de homenagem, distribuiu aos participantes O Caminho e a Escolha, livro ilustrado com fotografias colhidas nas ruínas de Éfeso, síntese do que foi sentindo ao longo da sua caminhada como docente, que se poderá, talvez, consubstanciar-se em três dos versos, que, aliás, por ali se vão repetindo:

Dar-se.
Dar-se inteiro sem pensar em quem ou em si.
Denso, dócil… Nos gestos, nos atos, nas palavras.


Dele tenho lido – para além dos textos sobre a Grécia (tinha de ser, porque éramos ambos docentes da mesma cadeira de História da Antiguidade Clássica!) – os livros de poemas e, destes, apreciei um dos últimos: As Gaivotas, edição de autor, Coimbra, 2009, com fotos de Inês Cerol. Lindas, as fotos, tomadas, a maior parte, em Lagos, cidade que, pela madrugada, com a algazarra das gaivotas acorda. Serenos, os versos:

«Se fôramos gaivotas, amada minha, as longas asas de aconchego acolheriam o espesso passado de ternura e desencontros» (p. 89).

O saber antigo, o olhar atento, a comunhão com as pessoas, os animais, o Universo, enfim! – na total dimensão humana!...

Publicado no quinzenário Renascimento [Mangualde], nº 575, 01-08-2011, p. 13.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Flagrantes do quotidiano

Uma rubrica que sempre me encantou nas Selecções do Reader’s Digest desde a juventude foi «Flagrantes da vida real», em que se contam casos singulares e, normalmente, com piada. Quiçá seja por isso que privilegio à ficção a realidade minha envolvente – que, amiúde, também essa realidade assume tonalidades tais que mais parece ficção, a ponto de nos interrogarmos: «Será que eu estou a ver bem?».
Surgiu-me essa dúvida quando analisei o tijolo romano achado no decorrer das escavações dirigidas por José Beleza Moreira na cidade de Eburobrittium (a antecessora de Óbidos). Partido em dois pedaços, mas completo, ostentava inscrição estranhíssima, fora de todos os cânones conhecidos. E nem se chegava a compreender se os rabiscos (assim me pareciam) formariam frase completa. Virei e revirei.
Cheguei a pensar em letras mágicas gravadas diante dum espelho, invertidas. Podia ser nome de pessoa, o que era normal: quantas vezes não nos apeteceu deixar marca da nossa passagem aqui e além (até nas colunas de monumentos célebres!...), gravando o nosso nome e a data?!
Ná! Ali havia números, parecia; mas os romanos não escreviam as datas assim! E nome não se me afigurou haver algum com aquelas letras estranhas…
Decidi-me, pois, pelo método por onde, aliás, deveria ter começado: identificar cada uma das letras e ir escrevendo num papel. VSQ estava claro; dois II em grafitos equivalem geralmente ao E, mais difícil de gravar com barras na pasta ainda mole. Estranhos, os três CCC da segunda linha: seria 300? Mais estranho ainda o rabisco de cima: o C final podia não oferecer dúvidas; mas… antes? A hipótese de um H era verosímil: teríamos HC. Ora, vendo melhor, usque quer dizer «até»; nesse caso, no prolongamento da segunda haste do H poderia estar um I – e tínhamos a palavra «hic», ‘aqui’!
Ficou, pois, decifrado o enigma: o operário estava a contar os tijolos antes de os pôr no forno; com medo de se enganar, chegou a este e escreveu: «Até aqui, 300!».
Quanto sei, não se encontrou ainda outro paralelo no mundo romano. Virá a identificar-se, decerto. Mas este flagrante da vida real de há dois mil anos atrás, além de nos provar que em Eburobrittium havia uma olaria, permite-nos imaginar o cansaço do trabalhador: «Espera aí, deixa-me escrever o conto, antes que me esqueça!».

Publicado no quinzenário Renascimento [Mangualde], nº 574, 15-07-2011, p. 13

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

A propósito de «Passos à volta da memória»

Senhor Director
Permita-me que venha à sua presença para publicamente me congratular com a iniciativa, em boa hora lançada por uma empresa, a CulturGuarda, em estreita colaboração com entidades locais e regionais, intitulada «Passos à volta da memória – Uma visita encenada à sé catedral da Guarda».
Integrada no programa que visa a «teatralização» (!) do centro histórico da cidade, «Passos à volta da memória» incita a ver “o magnífico retábulo, as vigilantes gárgulas, os recantos escondidos»… de «uma das mais antigas, bonitas e importantes catedrais de Portugal», com «histórias e segredos» que um actor terá todo o gosto em contar aos visitantes até 31 de Agosto.
Num texto de apresentação da actividade – a que tive acesso – escreve-se que «cada visitante receberá […] uma monografia da autoria do historiador João Paulo Cardinal Martins das Neves», acrescentando-se que, assim, «a Guarda passou a ter uma obra inteiramente dedicada à nossa catedral». O feliz retomar, portanto, de algo que já foi feito, em 1990, quando o monumento comemorou 450 anos e o Museu preparou catálogo da exposição “Catedral – As formas no tempo”, o qual, posto à venda no templo, se esgotou em menos de dois meses! É, pois, óptimo que de novo se tenha pensado nisso!
Nesse mesmo texto se afirma:
«E se eu vos disser que a maioria das pessoas da Guarda... nunca entrou na Sé?!! Se eu vos disser que apenas uma minoria muito minoritária participou numa visita de estudo a Sé?!!! E se eu vos disser que só meia dúzia de guardenses subiu as escadas até lá cima e se deixou deslumbrar com a bela vista?!!»
Ora tem o autor do texto inteira razão! E talvez possa aproveitar o ensejo para se interrogar acerca dessa inexistência de visitas ao telhado da catedral para se deslumbrarem com a magnífica panorâmica e verem as tais «vigilantes gárgulas»!... É que eu já tive oportunidade de prestar sobre isso um esclarecimento (vide «Sé da Guarda votada ao abandono», Terras da Beira, 6-3-2008, p. 12): o mal está na inoperância do guarda que teimam em manter ao serviço e que, iniludivelmente, não serve! Não é prestável, não tem apresentação! E não incita sequer os visitantes a subir à cobertura! Aliás, que é que acontece quando o visitante se não integra no programa ora em curso e, depois de o programa acabar, pretender subir? O mesmo de sempre!

«É a hora, portanto, de olharmos para a Sé com outros olhos! Aproveitemos» – escreve-se com entusiasmo na apresentação do programa.
E é mesmo, acreditem! Olhar com olhos de ver e… coragem para agir!

Publicado em Terras da Beira [Guarda], 07-07-2011, p. 10.