sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

A propósito de comentários neste blogue

          Foi-me chamada a atenção para o facto de nem todos os leitores terem possibilidade de comentar, quando amiúde gostariam de o fazer, por haver restrições ao acesso.
          Confesso que de tal não me apercebera; ou melhor, pensei que o procedimento que se estava a ter seria o normal. Acabo de verificar que tenho a possibilidade de gerir esse acesso; e, por isso, a partir deste momento, foi accionada a permissão de comentar sem qualquer restrição.
          Aproveito o ensejo para agradecer a quantos têm a gentileza de me ler, esperando que possa estar a ser útil. Aceito, claro, todas as sugestões - como foi esta - a fim de melhorar e intensificar a comunicação.
         E é com agrado que dou conta de que se publicaram 801 mensagens desde 11 de Janeiro de 2010 - data em que este blogue se iniciou; houve 466 comentários; e, até há momentos, haviam-se registado 91777 visualizações.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

A perpetuar as pessoas

       Não é invulgar afirmar-se: «Foi el-rei D. Afonso III que fez a conquista definitiva do Algarve aos Mouros». Ou atribuir uma obra de relevo municipal a este ou àquele presidente da Câmara.
      Para caracterizar essa atitude até já se inventou um termo: «fulanizar». Que é como quem diz: «Isto é de fulano, foi ele que fez!».
      Por oposição, surge-nos de imediato a célebre frase do pensador inglês John Donne (1572-1631): «Nenhum homem é uma ilha» – a relembrar não apenas que é cada um de nós fruto também do ambiente que nos rodeia do nascimento até à morte, mas que, por si sós, difícil se torna levar a cabo obra grandiosa.
      Valorizar as pessoas tem sido lema deveras actuante nos últimos anos da vida são-brasense. Dois dos livros publicados no âmbito das comemorações do centenário – 100 Anos 100 Biografias (Figuras do Passado São-Brasense), de Joaquim Manuel Dias, e Desafiando o Destino – a história da minha vida, de David Martins Dias – são disso prova evidente, como o são as evocações que colaboradores do Noticias de S. Braz aqui continuam a fazer de vultos que fizeram história, que «deixaram rasto», para usarmos da expressão de Escrivá de Balaguer.
      Por isso, de igual modo se aplaude a clarividência com que os responsáveis pela nossa agenda cultural S. Brás Acontece sistematicamente dedicam espaço àqueles que, nas artes e mesteres, foram – e são! – nomes a perpetuar. A rubrica que ora mui significativamente se chama «Vales da Memória» merece, pois, o maior aplauso. Na agenda de Janeiro, por exemplo, foi a vez de Júlio Negrão, cabeleireiro, republicano até à medula, também ele já quase uma lenda são-brasense.
      E, para além do que se escreve em papel, há o que se escreve na pedra, não fôssemos nós terra de canteiros!... A toponímia, para além de consagrar em lápides os nomes por que, na tradição, eram conhecidos caminhos, veredas e ruas, constitui igualmente uma forma de honrar quem, pelos seus actos, enobreceu S. Brás de Alportel.
      Aliás, se até há algum tempo só de quando em quando se ouvia alguém dizer «sou de S. Brás», hoje não haverá são-brasense que, onde quer que esteja, no Canadá ou nos confins da Argentina, na Alemanha ou em Marrocos, não sinta orgulho em proclamar a sua naturalidade, envolto porventura na saudade das suas amendoeiras floridas, a sorrir por entre o verde das encostas…

                                          José d’Encarnação

Publicado em Noticias de S. Braz nº 231, 20-02-2016, p. 11.

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Eu conheci um poeta…

            Eu conheci um poeta transmontano que demandava, amiúde, um lugar ermo. Havia por lá penedias com letras, a explicar, há dois mil anos, como se devia desenvolver o sagrado ritual, até atingir o êxtase, lá no derradeiro penhasco, subindo os degraus, em comunhão com o génio do lugar. «Soletro com a devoção que posso a linguagem religiosa dos nossos avós, gravada nestas fragas sagradas»…
            Eu soube de legados imperiais romanos que não resistiram ao feitiço de vir, peregrinos, até àquele promontório sobranceiro à foz do rio de Colares, honrar o Sol e a Lua e extasiarem-se, também eles, a ver o deus mergulhar no Oceano, infinito para eles inexplicável…
            Eu tive um vizinho que, espreguiçando-se num bocejo alto, abria a janela a saudar o amanhecer.
            Eu tive um professor-poeta, trasmontano ele também, mestre que morreu novo há mais de 50 anos e eu ainda sei de cor estes seus versos:
 
                        Janela, abre-te assim de par em par
                        Deixa-me entrar a luz, a madrugada
                        A aurora fresca, a rixa combinada
                        Dos melros no lameiro a assobiar!

            Eu tenho cravos-do-ar no meu jardim e, ali recostado nos começos de tarde, gosto de os admirar, assim pendurados, sem raízes, a viverem do ar, a recordarem-me aquela frase do longínquo e sempre presente Sermão da Montanha: «Olhai os lírios do campo! Como eles se vestem – e não semeiam nem colhem!»…
            Eu sei de um poeta a quem deram uma melodia e ele foi até à orla marítima de Cascais ao Guincho e o marulhar das ondas, encavalitado na brisa, num ápice, logo ali lhe trouxe inspiração…
            Eu conheço este poeta, que, um dia, depois de muitos dias, uma semana após muitas semanas, caiu em si, abriu serenamente a janela, recusou-se a ouvir o compassado tiquetaque do relógio, virou decididamente as costas ao frenesim quotidiano em que se lhe gastavam os dias e… viu!
            E foram momentos – andamentos? – que transformou em prelúdios, qual Chopin, num antegozo de maravilhas que, de repente, parece que se deu conta de que jamais devidamente as apreciara: o pardal que saltita; o pinheiro sagrado; o castanheiro, génio tutelar; a roseira que se enlaça na vida; as cigarras exuberantes; o gato que passa, silencioso…
            Outro olhar assim surgiu, a verberar o corrupio da Grande Lisboa, que não faz caso de belezas verdadeiras, as das plantas e dos animais que por elas bem despreocupadamente se passeiam… E assim se perde a Vida!
 
            «Que somos nós, se não ganhamos o tempo de viver a poesia das coisas belas?
            Que luz, que inocência, que ternura nos escapa ao sermos tomados pelo mercado dos interesses?»

            Urge, pois, proclamar que, «hoje, o Homem é de lugar nenhum. Vai a todo o lado sem enraizar. Vive virtualmente. […] Passa por tudo sem possuir nada».
            Há-de, pois, regressar-se à serenidade que nos falta:

                        Entre a tília o pinheiro e a oliveira
                        Os pássaros volteiam.
                        E nada há que me encha
                        De maior tranquilidade
                        Do que estes voos saltitantes
                        A entrelaçarem a manhã
                        De sonho e de verdade              (p. 19)

            «Prelúdios» são apenas 25 poemas. Curtíssimos. Só dois com duas páginas. Alguns de quatro versos, mas não são quadras – que a rima só aparece de quando em quando, assim como quem não quer coisa, natural, espontânea.
            Debruçado na janela, o Poeta agarra a ideia; mas depois vem outra e encavalita-se na primeira, volta atrás e dá um salto para a frente. É a riqueza que absorve a determinar esse alternar, como o do pardalito além. Quadros vários, pinceladas vigorosas. E as gravuras negras de João Alves Antunes, manchas que sugerem e espicaçam, a condizer com a volúpia de… irmos por aí!...
            Um hino à serenidade de que se precisa. Por isso, Prelúdios, de Carlos Carranca, não é livro para se ler de afogadilho. Ou melhor, não se consegue resistir à tentação de o ler de afogadilho, mais um, mais um e mais um… Depois, porém, tu sentes a necessidade de voltar atrás, a reler um a um, a saborear, a ler por detrás das palavras, a dar largas à imaginação… Sem peias. Na vontade enorme de contrariar o nosso dia-a-dia virtual. Enraizando-nos, de facto.
            Mui eloquente libelo contra a desumanização da nossa vida esta humanização da paisagem da sua Lousã!
                                                     José d'Encarnação
Coimbra Taberna, 20-02-2016
Na apresentação do livro «Prelúdios», de Carlos Carranca
 

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Estudada a villa romana de Freiria

       O estudo arqueológico da villa romana de Freiria, em S. Domingos de Rana, foi apresentado, no passado dia 25 de Janeiro, na Universidade da Extremadura (Cáceres), como tese de doutoramento de Guilherme Cardoso, e mereceu aprovação, por unanimidade, com a nota de «sobresaliente» (muito bom).
      Regozijamo-nos, naturalmente, com o facto de, assim, passarem a estar disponíveis para a comunidade científica, designadamente para os que se dedicam ao estudo dos tempos romanos neste Ocidente europeu, os resultados de largos anos de investigação num sítio deveras notável.
      As campanhas de escavação em Freiria iniciaram-se em 1985 e continuaram, anualmente, durante uma quinzena no Verão, até ao ano de 2002. Desde esse ano que os trabalhos arqueológicos propriamente ditos estão suspensos, porque se aguarda a concretização, por parte da Câmara, do Plano de Pormenor superiormente aprovado. No Orçamento Participativo de 2015 foi incluída uma proposta que visava, além de cuidada limpeza das estruturas, a execução de medidas que viessem a proporcionar à população (designadamente à escolar) melhor usufruto e compreensão do significado daquelas pedras (sem dúvida, estranho para a maioria das pessoas). Não houve votação bastante para ser aprovado e, por conseguinte, aguardam-se melhores dias.

O significado das pedras
      A investigação de Guilherme Cardoso mostrou quanto esta casa de campo romana detinha de singular no conjunto de estruturas idênticas encontradas no território português.
      O sítio foi lavrado durante séculos e, por isso, o que nos resta constitui a parte desses muros que ficavam mais fundo e o arado não destruiu. A experiência dos arqueólogos logra, contudo, como não podia deixar de ser, identificar funcionalidades e, por isso, sabe-se que, além da casa do senhor, disposta em torno de um agradável pátio com refrescantes espelhos de água, se identificou o lagar de azeite, balneários, o celeiro (este, um achado excepcional!) e, até, do outro lado do ribeiro, a necrópole com as suas sepulturas… Enfim, se compararmos com um monte alentejano, ali está tudo aquilo de que necessitava uma importante exploração rural.
      E, claro, para além das estruturas arquitectónicas, como ali viveram pessoas durante quase cinco séculos, há fragmentos de objectos – de cerâmica, de osso, de metal… – que, devidamente estudados, dão conta de como ali se vivia há dois mil anos.

Sintomas de bom índice cultural
      Antes de se instalar, o chefe da família que achou o local adequado para viver – atendendo à qualidade do solo, às boas condições climatéricas e, de modo especial, ao ribeiro de águas perenes que lhe passava ao pé – fez a sua prece à divindade que, em seu entender, o protegia. E foi essa uma das primeiras surpresas dos arqueólogos: o altar por ele – Tito Curiácio Rufino – dedicado, como ex-voto, a Triborunnis, uma divindade que não pertencia ao panteão romano, mas sim, naturalmente, ao panteão dos indígenas que por ali habitavam.
      Hoje, 30 anos passados sobre a descoberta, este altar é citado em todos os livros que tratam da religião indígena peninsular, pela sua singularidade e por o dedicante ostentar nomes que denotam a sua origem itálica. Quiçá este aspecto bastasse para que Freiria fosse mais considerada entre nós!...
      Há, no entanto, dois outros achados que mostram a cultura das gentes que viveram em Freiria.
     O primeiro, uma estranha escultura de pedra que mostra a cabeça de um animal. Os investigadores que sobre ela se têm debruçado consideram-na passível de se atribuir ao estrato populacional (digamos assim) que precedeu a vinda dos Romanos, nos últimos tempos da Pré-História. E coincidem em atribuir-lhe, pela forma, a função de representar protecção, pois poderia ter sido colocada em eventual portão da ‘villa’.
      O segundo é um quadrante solar de pedra, que foi expressamente feito para o local. Servia para regular as horas do dia. E se esta afirmação pode ser vista como banal e desnecessária, não o é na verdade, porque a sensibilidade ao tempo – que ora obrigatoriamente nos está ‘na pele’ – não é assim tão frequente em eras recuadas e, no que diz respeito aos Romanos, o achado de quadrantes não é comum. Era, pois, intenção dos proprietários da ‘villa’ que houvesse já uma organização – e também este é um bom sintoma de assaz significativo índice cultural.

                         José d’Encarnação


Publicado em Costa do Sol Jornal, nº 127, 17-02-2016, p. 6.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Qualquer coisa

            «Em que estás a pensar?» – esta pergunta, logo na abertura da página de cada um de nós no facebook, é natural que, algum dia, nos tenha feito pensar: «Sim, em que é que eu estou a pensar?». Para logo rematarmos: «Oh! Se eu escrevesse o que estou a pensar!...». Um misto, quiçá, de vergonha ou de cobardia ou de indiferença, que é como quem diz: «Que interessa aos outros saber o que eu penso?»…
            De tantas vezes a lermos, a pergunta soará, porventura, banal e já lhe não ligaremos grande importância. No entanto, a mesma pergunta feita, quase à queima-roupa, pelo marido ou pela namorada ou, simplesmente, pelo amigo, é capaz de, amiúde, nos deixar perplexos, atrapalhados e… a ela tenhamos maquinalmente respondido:
            – Nada! Não estava a pensar em nada de especial!
            Claro: não é possível não estar a pensar em nada! E das duas uma: ou não queremos partilhar o pensamento ou, apanhados de surpresa, não conseguimos consciencializar de imediato e verbalizar aquilo em que se nos iam os pensamentos… E talvez valesse a pena o esforço!
            Duas notas, há pois, a sublinhar desde já:
            1ª – O pensamento é o nosso lugar secreto, o único completamente nosso; só entra nesse jardim quem nós quisermos. E podemos optar por orquídeas ou cardos espinhosos … Por isso escreveu Emmet Fox: «Tudo o que nos acontece na vida não é, em realidade, senão a expressão do nosso pensar». (Le Sermon sur la Montagne, Paris, 1974, p. 18-19).
            2ª – Será que não conseguimos dominar o que pensamos? E nos deixamos levar como que ao sabor do vento, desaproveitando momentos que não voltarão mais?
            E, de repente, surgiram-me outras cenas em idêntico cenário de inoportuna indefinição:
            – Mas o que é que gostaria mesmo de fazer? – pergunta o técnico do Departamento de Pessoal ao candidato.
            – Qualquer coisa me serve!...
            – E o que é que te apetece comer hoje? Tens aí a lista.
            – Qualquer coisa me serve. E tu, que vais escolher?

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 679, 15-02-2016, p. 12.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

A espeteira

             Andamos meio azoinados com estas inesperadas mudanças de clima e de temperatura. As branduras da manhã e da noite exigem gorros na cabeça e nas orelhas e só apetece estar, como os gatos, enroscados junto ao borralho. Os que temos o privilégio de o poder fazer!...
            Pois estava eu a atiçar o fogo no lenho da alfarrobeira velha na chaminé, quando adreguei olhar para a espeteira que já vem do tempo de minha avó Bia dos Santos. Lá se mostram, impantes, os tachos de esmalte pintado, ao lado dos cobres que minha tia Chica traz sempre areados, num brinquinho…
            «Espeteira»? Há ‘séculos’ que a palavra não me ocorria e fui ver o que é que o Torrinha dizia. Lá estava: «Gancho nos tabuados das cozinhas, louceiros, etc., para pendurar carne, vasilhas e outras coisas». Não é bem a mesma coisa, acho eu, pois para nós a espeteira tem ganchos, mas é assim como que uma estante, só que não dá para os livros e tem uma ripa em cada prateleira, para segurar o trem da cozinha (Uau!... Esta do ‘trem’ está bem vista!...). E nada de pendurar lá a carne, se já se viu!...
            Escreveu Fialho de Almeida, n’Os Gatos: «Um povo que defende os seus pratos nacionais defende o território. A invasão armada começa pela cozinha». Orgulha-se São Brás de ser paladino da chamada dieta mediterrânica e de ter no seu Museu e também no pólo de Alportel a reconstituição da cozinha tradicional. De facto, neste tempo em que tudo, vertiginosamente, corre à nossa volta, apetece mais o quente e sereno aconchego desse recanto familiar – com a espeteira, cordão umbilical das nossas memórias…
                                                        José d’Encarnação
 
Publicado em VilAdentro [S. Brás de Alportel] nº 205, Fevereiro de 2016, p. 10.

 

domingo, 7 de fevereiro de 2016

Faleceu o «Carola», poeta popular

              Faleceu no passado dia 25 de Janeiro, poucos dias antes de completar 85 anos, Manuel Afonso Gaspar, o «Carola». Nascera a 6 de Fevereiro de 1931, em Santo Aleixo da Restauração, concelho de Moura.
            «Filho do sector rural, famílias de fracos recursos, completou a quarta classe da instrução primária no dia 22 de Junho de 1942, com aproveitamento. Como todas as crianças daqueles tempos, seguiu para o campo para guardar gado».
Capa do livro «O Alentejano»
            Estas, algumas das linhas com que desejou apresentar-se, em jeito de mui sintética autobiografia (p. 111-112), no livro de poemas O Alentejano, publicado pela Associação Cultural de Cascais, com o apoio das juntas de freguesia de S. Domingos de Rana e de Santo Aleixo da Restauração, assim como da Câmara Municipal de Oeiras, concelho onde residia.
            Aí, depois de dar conta dos empregos que foi tendo (na agricultura pelo Alentejo, na Fundição de Oeiras e na Autosil) até se desempregar e ir para a reforma em Novembro de 1991, confessa:
            «Sempre sonhei com poesia e na perspectiva de que a minha obra não ficasse fechada numa gaveta»… essas «rimas com que fui espairecendo vida fora».
            O livro O Alentejano cumpriu, pois, em parte, esse desejo e também em Cinzelar as Palavras como as Pedras… em S. Domingos de Rana (Cascais, 2009) acabámos por incluir mais alguns dos seus poemas (p. 53-67), todos eles eivados deste fresco sabor alentejano, que olha a realidade com olhos de ver:
                        Só tenho a quarta classe
                        No meio onde fui criado
                        Para que mais longe chegasse
                        Não pude ser educado.
Mas:
                        Há por esse mundo inteiro
                        Que nem dá para os contar
                        Tanto burro em engenheiro
                        E tanto sábio a mendigar. (p. 112 de O Alentejano)

14-07-2000. Apresentação do livro «O Alentejano».
Manuel Afonso Gaspar trajado à moda do grupo Estrelas do Guadiana
            A apresentação do primeiro livro realizou-se com solenidade no auditório da Junta de Freguesia de S. Domingos de Rana, ao final da tarde de 14 de Julho de 2000, tendo contado com a actuação do Coral Alentejano «Estrelas do Guadiana», em que Manuel Afonso Gaspar se integrava. A apresentação esteve a cargo do Dr. Carlos Carranca, que realçou o interesse genuíno dos versos do Carola. Por feliz coincidência, estava então patente nesse auditório uma exposição documental sobre a colecção de Michel Giacometti, o homem que tanto se empenhou também para salvaguardar as lídimas manifestações dos cantares do nosso Povo.
            Realce-se que o Jornal da Região, na sua edição de Oeiras de 12 de Outubro de 2000, incluiu Manuel Afonso Gaspar na rubrica «Pessoas»: «Veio viver para Oeiras há 36 anos e empregou-se como metalúrgico, só se começando a dedicar mais a sério à poesia quando chegou a altura da reforma. No entanto, já antes tinha obtido um primeiro lugar num concurso de quadras populares, em Aljustrel. No passado mês de Julho, viu concretizado o seu sonho, com a publicação do seu primeiro livro de poemas».
            Escrevi, no final da Apresentação do livro: «Manuel Afonso Gaspar conta como foi e como é. No jeito simples de quem, na adiafa, atira rimas ao ar – dolorosamente pensadas, genuinamente vividas» (p. 5).
            Aos 85 anos, o coração achou que devia deixar de bater – e o Carola partiu, pouco mais de duas semanas de ter visto partir sua filha de apenas 50 anos, o que deveras o abalou. Fica-nos, porém, o encanto das suas rimas:

                        Andei descalço na vida,
                        Sem possuir um vintém.
                        Sempre de cabeça erguida,
                        Não devo nada a ninguém!   (p. 43)

            Que descanse em paz! Ao filho, Luís, ao seu genro e nora e demais família apresentamos sentidos pêsames, na certeza de que, mui provavelmente, Santo Aleixo da Restauração também o não esquecerá:
                        Não sou poeta afamado
                        Dos que há em Portugal,
                        Mas sempre serei lembrado
                        Na minha terra natal. (p. 51)

                                                           José d’Encarnação

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Um poema, uma espada!...

             Não. Breves embora, passíveis de plantação em rego seguido sem a cesura do verso, os poemas de Fernando Miguel Bernardes são poesia mesmo e não prosa! Que eu declaro «poesia» essa forma incisiva de, mesmo em vestes ralas, se querer abrigar o Mundo, desvendar as almas, rasgar horizontes – qual fulgente espada!
            «Notas de viagens» sugeriria, como título, apontamento de etnógrafo, impressões de viajante mui deslumbrado com as aparências do típico, obediente ao que ao guia lhe apetecesse mostrar: Torre Eiffel, pirâmides de Gisé, oloroso casbá de Marraquexe, o Nilo, o Douro e o Sena… Não há guia aqui, porém, a não ser a águia de olhar bem perspicaz, Homem inteiro de visão bem funda, Irmão que sente e que pensa!
            «Ritmos e mitos».
            O ritmo é o que cada qual lhe quiser dar – que o Poeta é livre e quer libertar também. Preferirá, sem dúvida, um caminhar sereno, a saborear palavras, a degustar sentimentos…
            Os mitos são os de sempre: por labirintos de Creta nos levam; de Cérbero, o cão, há que libertar-nos; por Fénix renascida suspiramos…
            Viagem esta pelo mundo e pelo tempo, inebriada de pinceladas prenhes de uma Cultura sabiamente adquirida e mui oportunamente revisitada. Eterno convite!
            Que mais se aprecia? Não é nada fácil a escolha. «Tudo!» – resposta certa seria; mas ninguém acreditava, ainda que seja essa a verdade. Há, todavia, sementeira plena de reflexões maduras, com paragens onde a palavra é mais espada e mais célere, por isso, o sangue depressa ao coração aflui, num rompante.
            Tudo, afinal, é convocado por Fernando Miguel Bernardes. Os homens de antanho, sim; os homens de agora também. Filósofos, operários, crianças, o colibri, a codorniz, a andorinha, o melro, urubus (!), a flor do alecrim, a poderosa formiga que ousou passear-se por sobre a mesa em Havana, a banda e o coreto, moinhos de D. Quixote, o diamante e as minas, o Nero antigo das Twin Towers de agora… Tudo!... E da mais ínfima partícula jorram a inspiração e a voz. Sim, que versos destes são para ler com os olhos mas muito mais apetece gritá-los, atirá-los ao vento madrugada afora, gota feliz na pétala rubra da rosa! «Nasceu fulva a manhã nos teus cabelos…». Em bailia: «Abril bonito / Abril das rosas / pares no jardim / tardes formosas!...». «Passa lá um rio / Bate lá o mar»!
             A cereja: quem a tirou do cesto é dela merecedor? Assim venha por bem quem a semente quis regar na frescura do suor. Horror de mãos ocultas a colher doutrem as frutas!...
            A perdiz: mil tombaram na caçada! «Onde o frumento não nasce, a perdiz não pasce» – e o clangor ecoa «pela seca vasta planura alentejana». Tem de ecoar!
            Lapidar a legenda «para um portal no Bairro Alto»: «O mar ao luar tem cabelos de prata… Saudade doce mal… com absinto se trata!». Vês? Não há jeito assim – que não respiras a dizer e vai tudo de carreirinha! E não é!... São oito os versos e nem quadra querem ser. Ora vê:

O mar
ao luar
tem cabelos
de prata…

Saudade
doce mal…
com absinto
se trata!

            Tem outro condão, está claro. E desta sorte, com vagar, se vai sorvendo o absinto – que isso é a saudade nossa, lenta, doce e amarga, como outro Poeta falou…
            E é lindo o diamante em teu regaço; vertiginoso, o bólide leva ao rubro a multidão – já pensaste? Vê mais longe – que de tísica morreu o garimpeiro e de silicose o mineiro feneceu!...
            Abraçamos o mundo. Sentimo-nos gente no meio da multidão. Gente com nome. Pessoas!
            Por isso voluntariamente me deixei ferir, imolado, por esta espada fulgente!

                                       Cascais, 19 de Dezembro de 2013
                                                   José d'Encarnação                                    

            Prefácio a Notas de viagens – Ritmos e Mitos, de Fernando Miguel Bernardes, edição Mar da Palavra, Coimbra, 2015, p. 7-9.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Quão admirável foi o tributo!

       A Junta de Freguesia de S. Domingos de Rana levou a efeito, na noite do passado dia 29 de Janeiro, nas instalações da Associação de Beneficência Manancial de Águas Vivas (Polima), um concerto de «tributo a Carlos Paião».
      Não carece de apresentações a figura ímpar deste músico, cujas composições continuam hoje a ser cantadas e trauteadas por toda a gente, desde as crianças de mui tenra idade aos seniores de oitenta ou mais anos. Não há quem não se emocione com a ternura de «Cinderela» ou não se divirta com o enorme gozo de «Playback»! E serão, porventura, estes os dois pólos em que se movimentou a imensa criação artística de Carlos Paião: de um lado, a emoção do dia-a-dia; do outro, um olhar perspicaz sobre uma realidade a que não se podia ficar alheio e era preciso, mesmo em jeito de brincadeira, escalpelizar, para dela tomarmos consciência.
      Mas se a sua fugaz existência – nasceu em Coimbra («por acaso», escreve-se sempre…) a 1 de Novembro de 1957 e faleceu em Rio Maior, vítima de acidente, a 26 de Agosto de 1988 – é do domínio comum, talvez se não conheçam suficientemente três aspectos devidamente realçados nesta sessão do dia 29: residiu a maior parte da sua vida em S. Domingos de Rana; era de uma afabilidade extrema; e, como compositor «impulsivo» (diríamos, porque compor música estava-lhe na massa do sangue…), poucos serão os artistas que não cantaram ou não cantam composições de sua lavra, boa parte delas feitas expressamente para eles. A título de exemplo, muitos dos êxitos de Herman José («Vamos lá cambada!», «Serafim, Serafim aos molhos»…) têm assinatura de Carlos Paião, a demonstrar precisamente a característica de alguém que, atento ao que o rodeia, sabe rir e fazer rir.
      «Imortal» foi, portanto, uma das palavras que mais se ouviu, ou intuiu, no decorrer de um espectáculo emotivo, tocante, invulgar, admirável. Várias vezes se frisou «Que pena não haver aqui nenhuma televisão a gravar o que de tão extraordinário se está a passar aqui!», num salão repleto, com uma assistência de mais de 800 pessoas que não arredaram té quase às duas da madrugada!...
      A apresentação esteve a cargo de dois dos nossos maiores comunicadores: Atónio Sala (também ele residente em S. Domingos), e Júlio Isidro, que tiveram ambos, aliás, oportunidade de acompanhar bem de perto a trajectória de Carlos Paião e a quem os unia laços de mui profunda amizade. E, para além do grupo coral Vox Laci, sediado em S. Domingos, e do Coral Infantil de Carcavelos, passaram pelo palco, fazendo anteceder sempre a sua actuação com um testemunho emotivo do seu relacionamento com o homenageado, artistas como Ana, Henrique Feist, Nuno da Câmara Pereira e Lenita Gentil. Impossibilitado de estar fisicamente presente, Herman José não quis deixar de dar, também ele, o seu testemunho, gravado em vídeo e apresentado já no final da sessão.
      Aos agradecimentos, Maria Fernanda Gonçalves, presidente da Junta de Freguesia, acentuou que um tributo com esta envergadura não poderia ser levado a cabo sem o entusiasmo de toda uma vasta equipa e a entusiasmada colaboração de todos os intervenientes.
      Dos familiares estiveram presentes a viúva (Dra. Zaida) e os pais, a quem foi entregue a medalha de mérito com que a Junta de Freguesia deliberara agraciar, a título póstumo, o artista, assim como, para eles, a medalha da freguesia.
      Três iniciativas visaram – ou visam – honrar a memória de quem tanto nos legou. Foi a primeira a trasladação dos seus restos mortais para a terra natal dos pais, Ílhavo; esta, em Polima, era a segunda. A terceira será a concretização – ainda se não sabe onde – de um ‘museu’ que perpetue a vida e obra de Carlos Paião. Aliás, no dia seguinte, sábado, a partir das 18 horas, inaugurou-se, na sede da Junta de Freguesia de S. Domingos de Rana (e pode visitar-se, até ao próximo sábado, dia 6), uma tocante exposição que dá emotiva conta da vida e obra de Carlos Paião. Objectos pessoais desde bebé à idade adulta, testemunhos, fotografias… tudo ali pode ser observado – e a visita vale a pena, embora (diga-se já) seja difícil visitar sem sair de lá emocionado com alguém que tanto fez e tão cedo nos deixou!...
      Perdoar-se-me-á se confesso ter sido – também esta! – para mim uma evocação cativante, porque, no livro Cascais – Paisagem com Pessoas dentro, eu decidi incluir, no final (p. 208-215), a entrevista que fizera a Carlos Paião publicada no Jornal da Costa do Sol a 10 de Junho de 1981. Na verdade, de todas as pessoas que resolvera incluir na obra, Carlos Paião deixara-me uma impressão tão relevante que… não resisti a evocá-lo!
Carlos Paião, em entrevista a 23-05-1981
      Foi, recordo, uma conversa inteiramente despreocupada na sua casa de Rana, de coração aberto, em que, inclusive, tocou para nós (Guilherme Cardoso acompanhou-me para fazer as fotografias) alguns dos seus êxitos, em jeito de apontamento. Pedi-lhe uma mensagem para os leitores. E foi esta:
      «Acho que as pessoas devem tentar fazer o melhor possível para se entenderem, darem-se bem umas com as outras, em espírito de franca convivência. Não é assim tão difícil e, a partir daí, tudo se resolve. Enquanto as pessoas tiverem a mania de se verem como inimigas, isso não dá!».

                                    José d’Encarnação
 
Publicado em Costa do Sol Jornal, nº 125, 03-01-2016, p. 6.



terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

É salesiano o novo bispo de Díli

            O Papa Francisco acaba de nomear Bispo de Díli o Padre Virgílio do Carmo da Silva, que exercia as funções de provincial dos Salesianos em Timor-leste.
O Padre Virgílio do Carmo da Silva,
que recentemente esteve em Lisboa.
            O novo bispo, que passou recentemente por Lisboa, nasceu a 27 de Novembro de 1967 em Venilale, na diocese timorense de Baucau. Frequentou o ensino primário e secundário nas escolas salesianas de Fatumaca e ingressou na Congregação Salesiana a 31 de Maio de 1990, tendo feito a profissão perpétua, ou seja, tomou a decisão definitiva de permanecer salesiano a 19 de Março de 1997. Fez em Manila os seus estudos de Filosofia e Teologia e foi ordenado sacerdote a 18 de Dezembro de 1998.
            Ocupou de seguida as mais diversas funções, em Timor-leste e não só, porque, de 2005 a 2007, frequentou, em Roma, a Pontificia Università Salesiana, aí obtendo a Licenciatura em Espiritualidade. Foi, ainda, de 2009 a 2014, director da Casa dos Salesianos e dirigiu a Don Bosco Tecnnical High School, em Fatumaca. Fora nomeado provincial o ano passado.
            Ao novel bispo auguramos o maior êxito nas suas novas funções.

                                            José d'Encarnação

Publicado em Cyberjornal, 1-2-2016:

Histórias de professores…

            Surpreendeu-me (confesso) a repercussão que teve a crónica anterior sobre o menosprezo das escolas (nomeadamente as universitárias) em relação aos seus docentes aposentados ou jubilados: informações de casos idênticos e partilha de atitudes a louvar. Para além dos leitores habituais do Renascimento, ultrapassaram as 800 as visualizações e a meia centena os comentários à crónica de 15 de Janeiro atrás incluída «Os aposentados são para deitar fora?».
            Surpreenderam-me também algumas das histórias:
            «Lembro-me de que, passados três meses de ter sido aposentada, fui à escola e os alunos de uma turma, que tinha deixado, ao verem-me, pediram à Professora para sair um pouco da sala para me virem cumprimentar e a minha Colega autorizou. Foram não mais que cinco minutos, muito doces. Incrível! Essa Colega contou-me, estupefacta, quando me encontrou, que tinha sido chamada à atenção pela direcção, para não repetir tão condenável atitude!».
            «Em 1998, contava-me o grande classicista Hellmut Flashar, recém-jubilado da Universidade de Munique, que um 'fedelho' acabado de subir à cátedra lhe comunicou que, para utilizar a sala de professores (já que tinha ficado, no dia da jubilação, sem as mordomias do Ordinarius alemão: gabinete, secretária, tarefeiros), ainda que fosse para orientação dos doutorandos que ainda tinha, havia que cumprir os horários destinados a cada um, caso contrário perturbava».
            Felizmente, que também aí se contam mui louváveis deferências e compromissos. Contudo, o facto de haver, como igualmente se assinalou, «Professores e professores», como, de resto, acontece em todas as profissões, leva-me a realçar os depoimentos que vão no sentido de que, mais do que as atitudes administrativas dos «funcionários» das instituições (e ponho a palavra entre aspas para os distinguir dos funcionários-pessoas), o que conta, na vida de um docente, são as sementes que lançou. Por isso, me confortou uma das mensagens que, neste âmbito, recebi de Roma, de um velho amigo:
            «Atendendo à minha idade, isso já não me afecta; confortam-me muito, porém, a estima e o afecto que continuo a receber de colegas, próximos e afastados, e de ex-alunos e de alunos de alunos. Para mim, é esta a Universidade que conta e, enquanto aguardo a verdadeira e definitiva despedida, isso me basta!».
            Esse constitui, de facto, o mundo de afectos a que importa dar relevo!

                                                                        José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 678, 01-02-2016, p. 12.