quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

A arte como evasão?


Com uma lucidez impressionante, Mestre Nadir Afonso festejou os seus 90 anos no sábado, 4, na galeria do Casino Estoril, aquando da inauguração do XXIV Salão de Outono. E teceu amplas considerações acerca da Arte como Matemática ou o papel da Matemática na Arte.
Mostra importante, de trabalhos ímpares de quantos, ao longo de mais de duas décadas, têm mostrado naquele espaço as suas obras, o Salão constitui, nesta quadra, para além da homenagem, ponto de passagem obrigatório para quem na Beleza sentida queira as forças anímicas recuperar.
Inauguração bem concorrida, condimentada a rigor com iguarias transmontanas. Carlos Magno evocou a obra e a extraordinária personalidade artística do Mestre que, em Paris e no Brasil, trabalhou com arquitectos consagrados (Le Corbusier, Niemeyer…), mas que, alfim, pela pintura se deixou seduzir, na graciosidade geométrica de coloridos traços minimalistas que ora perenemente se nos oferecem à admiração, por exemplo no túnel para o paredão, em frente do Parque Palmela, em Cascais.

Teve outro registo, não menos social e simpático, a abertura, a 27 de Novembro, da exposição anual «Denominador Comum», promovida pelo Hotel Viva Marinha, para que expressamente foram convidados «artistas que, tendo embora em comum o gosto pelas artes e pela pintura em particular, são, no entanto, profissionais de outras áreas:
- Josias Gyll, conhecido geriatra de Cascais, apresentou-nos, por exemplo, «Mãe», num forte azul surrealista, e a beleza dos monstros em «Axá»…
- Maria Regina de Mongiardim, diplomata e professora universitária de Política Internacional, convida-nos ao intimismo, à meditação: maternidade, vultos misteriosos no beco enlameado…
- Francisco Azevedo, diplomata de carreira, «arco-íris de suaves cores de nostalgia» (assim Mateu Manaure caracterizou as suas telas).
- Mariana Fialho, eborense a viver na Suíça: o silêncio dos muros fechados, sem gente no meio urbano…
- Gabriela Barbosa (“Bié”), funchalense, mostrou «objectos de sedução»: o quotidiano de que se constrói a beleza, consubstanciada em artigos de toilete, o par de sapatos em comunhão com cogumelos, a caixa da camisa e da gravata aliada à discreta coscuvilhice de uma romã…
A arte, aqui, a situar-se no campo da evasão de um quotidiano profissionalmente absorvente. E foi pequeno o hall para conter os amigos que acorreram à chamada. As obras de arte dispersam-se por ali, como quem não quer a coisa, casando-se com a decoração. Dois dedos de conversa, a recordar tempos idos, no saboreio de um requintada tapa e bebida a condizer, na apreciação serena de mensagens pictóricas a pausadamente decifrar.

Publicado no Jornal de Cascais, 22-12-2010, p. 6.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Os homens das pedreiras

Nas pedreiras de Cascais, onde, como se tem dito, muita gente havia de S. Brás nas décadas de 50 e 60, eram três os tipos de trabalhadores existentes.
Dava-se o nome de «trabalhador» ao operário indiferenciado (dir-se-ia hoje), aquele que não tinha qualquer especialidade e que, por isso, de pá e picareta, descobria os blocos, cavando, cortando o mato e ajudava no transporte das pedras. Era também ele o aguadeiro, ou seja, o que zelava por que não faltasse água na bilha e, como ia ao chafariz da aldeia, amiúde era também moço de recados (o vinho, o maço de tabaco…). Ganhava à jorna.
O cabouqueiro tinha a ciência de cortar a pedra, quer o banco posto à mostra e que importava talhar a preceito, quer os blocos mais pequenos, de acordo com a encomenda em execução. Ganhava à jorna também, mais do que o trabalhador.
O canteiro era o ‘artista’, aquele que, lendo com os cabouqueiros os desenhos dos construtores, deveria transformar em soleiras, lintéis, peitoris… o que lhe fora entregue em bruto. Era dentre os canteiros que os escultores escolhiam quem lhes executasse as obras de que eles, os escultores, apenas faziam o molde; ao canteiro competia, então, ‘tirar o ponto’, ou seja, pôr à escala o que o escultor apresentara em modelo. Ganhava à peça.

[Publicado em VilAdentro [S. Brás de Alportel], nº 143 (Dezembro 2010) p. 10.]

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

O topónimo Cascais

Continua a intrigar a origem do topónimo Cascais.
Para mim, trata-se do plural de cascal, querendo isso significar que, nas suas praias, abundavam as cascas de mariscos: mexilhões, lapas, amêijoas, ostras, búzios, caracóis… Não me admirei, por isso, quando encontrámos, na villa romana de Freiria, centenas de conchas de ostras; ou quando, na década de 60, o achado de bastantes conchas de múrex no povoado romano dos Casais Velhos levou os arqueólogos a considerarem a tinturaria como uma das actividades a que, aí, os romanos se dedicaram, até porque para tal serviriam as tinas com tampa hermética que lá se descobriram.
Guilherme Cardoso é, porém, de opinião que «aquilo que se sabe hoje e que é mais aceite no caso do nome de Cascais é provir do encascar as redes através de um banho obtido por uma infusão de casca da aroeira. Isto foi-me confirmado por vários pescadores […]». Encascar significa, de facto, «meter as redes de pesca em infusão de casca de árvores para as conservar e dar-lhes uma cor acastanhada»; mas, pergunto eu, nesse caso, só aqui é que haveria esse procedimento? Só este lugar teria merecido tal… honra toponímica?
Meu amigo Hans Daehnhardt perfilha outra opinião: cascas, sim, mas de pinheiro, desde a época pré-histórica! E estamos a investigar se, nessas remotas eras, já o pinheiro abundaria por aqui.
Corre na Internet outra história, que remonta aos tempos de el-rei D. Afonso Henriques, considerando que a primeira cena de «violência doméstica» (!) aqui teria ocorrido, quando D. Mafalda, sua mulher, apanhou dele uma bofetada, por ter levantado um pouco a saia para não se molhar, quando passeavam pela praia. E a rainha perguntou: «Senhor meu rei e esposo, porque me cascais?»…
Chalaça também pode parecer o que José Sarmento de Matos escreve na p. 211 do Livro I (As Chegadas) do seu livro A Invenção de Lisboa, edição da Temas e Debates, apresentado a 27 de Novembro de 2008, anunciado como «A história da cidade de Lisboa numa narrativa ficcionada».
Foi Margarida Ramalho que me apresentou essa página, onde se fala de um ‘berbere marroquino’, corsário «responsável por manter a ordem em todo o vasto sector marítimo a norte de Lisboa», Kaxkax de seu nome. Moraria «no bairro muçulmano de Alfama», mas… «tendo em atenção o seu nome, Kaxkax», acrescenta Sarmento de Matos, «apetece perguntar se este corsário destemido escolhe como poiso para a sua esquadra a última baía amena antes de entrar no Atlântico, conhecida como a baía de Cascais». Salientando a «proximidade sonora entre o seu nome e o do lugar, aliás de origem pouco esclarecida», o autor afirma que não consegue «deixar ao menos de acentuar essa intrigante afinidade de sons».
Que a baía é amena, sabemos; que por aqui, em todos os tempos, houve corsários e outras pilantragens temos indícios fortes; mas… Kaxkax é mesmo nome de gente? Diz o My Heritage que sim: um sobrenome e todos de Espanha! E terá sido daí (pergunto eu) que os franceses deram ao jogo das escondidas o nome de ‘cache-cache’? Que também por aqui há muito quem reine às escondidas, oh! se há!... Como o corsário reinaria.

Publicado no Jornal de Cascais, nº 247, 15-12-2010, p. 6.

Dos ecos ressuscitados


Era, de facto, assim.
Ao longo dos meses. O ritmo doloroso mas sereno de uma existência frugal, atenta aos sinais do céu, leitora sapiente dos escritos na paisagem. Paisagem moldada pelo suor do Homem, no caminhar persistente – que já vem perto o ritual das sementeiras, das colheitas, das desfolhadas… como reza o Borda d’Água…
Vida ritual, sem dúvida, pautada pelos adágios séculos afora consolidados, na experiência das gentes…
Aninha-se a aldeia da Barriosa no regaço de duas serras beirãs, a da Estrela e a do Açor. Tem a bonita cascata do Poço da Broca; teve lagares, eiras, moinhos… E vai perdendo gente.
É Barriosa concreta, de pessoas concretas, com nome e idade (tinha Antoninho do Fôjo 99 anos…), e histórias vividas («Um dia de Maio pela manhã, indo um rapaz com a charrua às costas para o campo, encontrou uma moça do seu agrado…»). Mas será também – quiçá sobretudo – uma Barriosa-símbolo, cantiga de vida cujos ecos aqui se ressuscitam, se transmitem, se querem erguer altaneiros em certeiro anátema contra o «mutismo de um dia passado à frente do pequeno ecrã» globalizante, uniformizador, castrante… Um símbolo, ele também!
«Velho que morre, biblioteca que arde», escreveu o etnólogo do Mali, Amadou Hampâté Bâ. Este, porém, quer ser o livro que ousou escapar ao incêndio, dele corajosamente arrebatado pelas mãos de quem soube ouvir, se dispôs a escutar e os pormenores cuidadosamente anotou, para que não viessem a perder-se. Para que houvesse memória e, com ela, identidade!
Já se esqueceram os adágios? Já não há o tapador da levada nem o “mestre barbeiro” que cuidava da saúde aos moradores? O sol a pôr-se no Monte do Colcurinho, «a 1244 metros de altitude, já não marca, como o fazia outrora, a hora de regresso dos campos»? Já as torgas não crepitam nas fogueiras? Já o sino não repica como dantes? Já tudo desarvorou para a cidade anónima e… sem terra?...
João Orlindo conta como foi: já não, já não, já não… O panorama do que deixou de existir, sim; relembrado aqui, corre todavia sério risco de poder ressuscitar.
Oxalá!

[Prefácio a João Orlindo MARQUES, Esta Vida é uma Cantiga! (Ocasos do viver numa aldeia serrana), Apenas Livros, Lisboa, 2010, p. 3].

sábado, 11 de dezembro de 2010

Não ao fim-de-semana, sim à semana de trabalho!

A necessidade aguça o engenho – reza o adágio popular, consubstanciando uma filosofia ancestral. Provam-no, hoje, as inúmeras iniciativas impensáveis há uma década atrás: o regresso ao campo, o estreitamento das relações de vizinhança, as hortas urbanas, a luta contra o desperdício alimentar…
E, concomitantemente, a mentalidade vai mudando.
Assim, não era raro desejarem-me «bom fim-de-semana!» à quinta-feira. Tenho no computador dois desenhos animados. Num, um ratinho levanta-se, boceja, espreguiça-se e, de repente, grita «What? It’s not friday yet?» (“O quê? Ainda não é sexta-feira?» e… deita-se de novo. No outro, é um caracol que caminha, arrasta-se, arrasta-se, sempre no mesmo sítio… e a legenda diz «Continua! É quase fim-de-semana!».
Nas mensagens de telemóvel ou mesmo de correio electrónico, a palavra fim-de-semana já não se escreve por extenso, mas em siglas, e eu próprio já inseri fds nas opções de correcção automática do computador, tão banal é o seu uso diário. «Diário», escrevi bem – porque se vive para o fim-de-semana!
Também esta mentalidade, portanto, vai mudar. E, confesso, já hesito em desejar bom fim-de-semana sem acrescentar algo como «boa semana de trabalho!», pois, na verdade, o fim-de-semana não pode ser um fim, mas um meio para recuperar energias a despender com eficácia durante a semana!
Lê-se no Génesis (2.2): «Deus descansou, no sétimo dia, do trabalho por Ele realizado». Essa, a mensagem que ora ganha novo sentido e que poderá vir a reflectir-se, doravante, no teor do que escrevemos: desejo-lhe a si, prezado leitor, uma boa semana de trabalho!

J. d’E.

Publicado no Jornal de Cascais, nº 246, 8-12-2010, p. 6.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Todos a vêem e… ninguém a lê!

Estuda a ciência epigráfica as inscrições que, ao longo dos tempos, os homens foram deixando sobre materiais duradouros. Mensagem sucinta, pensada, destinada ao futuro, tem, para além do que vem nela explícito, uma mensagem implícita, que se prende com as razões que a determinaram.
Homenageou a Junta de Freguesia de Cascais, no passado dia 5, três pessoas, atribuindo o seu nome a arruamentos. E houve cuidado de se dar conta, através da Comunicação Social, dos motivos que levaram o Executivo a fazer essa proposta, aceite pela Câmara. De César Guilherme Cardoso se escreveu: «Fotógrafo que, ao longo de cerca de 60 anos, registou parte muito relevante da história local em documentos hoje integrados no espólio do Arquivo Municipal de Cascais». Na placa toponímica apenas vem o nome e «(Fotógrafo 1922-2006)». Quem o não conheceu, se apenas se ativer ao que está gravado, fica muito aquém da realidade, como, em relação a outro nome de rua que lhe fica perto, perguntará porque é que um «retratista», António da Silva de seu nome, foi merecedor de perpetuação, pois nada o fará suspeitar das circunstâncias trágicas em que ocorreu a sua morte, no mar da Boca do Inferno quando tentava salvar turista arrebatada por onda traiçoeira.
Urge, pois interrogarmo-nos. E isso não fazem, por exemplo, os autarcas e os munícipes que diariamente transpõem a porta dos Paços do Concelho de Cascais, em relação à placa azulejada ali bem visível. Se nela houvessem reparado…

Não, a ordem das línguas está correcta: corresponde a um período em que essa era a ordem de importância (numérica) dos turistas visitantes: depois do português, o espanhol, o francês, o inglês e o alemão.
Mas…
… que está escrito na placa? Que significa mairie? E town hall? E… “Município de Cascais”? Para já: «de Cascais»? Pois donde houvera de ser, de Sintra?!... E… «município»? Que é que significa «município»? Não é um território e as suas gentes? Não são «município de Cascais» Malveira da Serra, S. Domingos de Rana, Carcavelos?... Pois. O que se deveria ter escrito era… PAÇOS DO CONCELHO!
Está mal.
Há que corrigir!

Publicado no Jornal de Cascais, nº 245, 30-11-2010, p. 6.