domingo, 23 de janeiro de 2011

O núcleo urbano antigo

Não sei, confesso, se ainda existe e onde a placa que ilustrou a nota anterior. Poderei garantir, contudo, que o Automóvel Clube de Portugal, na sua campanha de identificar as localidades, levada a efeito na primeira metade do século XX, a mandou colocar no primeiro prédio relevante, à entrada de Mangualde. Teoricamente, deveriam existir duas, porque decerto pelo menos duas entradas importantes haveria.
E porque é de chamar a atenção para o interesse histórico dessas placas e para a necessidade da sua manutenção na parede do prédio onde foram incrustadas?
Primeiro, porque, se mereceu identificação, era aglomerado populacional de passagem e visita obrigatórias.
Segundo, porque a cidade cresceu nas décadas seguintes e essas placas mostram o que era o núcleo urbano dessa época.
Conclusão?
Para além de se fotografarem e preservarem (mesmo quando os prédios são remodelados, é fácil retirarem-se com cuidado os pequenos azulejos um a um e recolocá-los depois), o desafio aqui fica: que terras do concelho de Mangualde estão assim identificadas? E todos vêem nesses singelos letreiros um testemunho da sua antiguidade?

Publicado no quinzenário de Mangualde, Renascimento, nº 562, 15-1-2011, p. 13.

Tirar areia das dunas


«Crismina em regime florestal. Decreto de 20-06-1906. É proibido caçar».
Aprendi de cor, desde as bancos da Instrução Primária, o que diziam as placas colocadas em sítios estratégicos do areal junto ao Guincho. Era assim. E gostava de ver aqueles pinheirinhos agachados, como que a fugir do vento, de tal modo que, no meu primeiro livro, o já bem longínquo Devagar, Coração! (Edições Salesianas, Porto, 1966, p. 36), a eles tive de me referir, porque faziam parte do magnífico mundo da minha infância: «pequeninos, rastejantes, como querendo fugir do mar»…
Tive agora a curiosidade de procurar o significado de crismina. Nada envontrei
Em todo o caso, vi há dias – e a acção já foi noticiada – que andaram a plantar sebes pelo areal, a fim de reter as areias.
E voltei à Instrução Primária, onde Zulmira Fialho Faria, saudosa professora, me ensinara que el-rei D. Dinis mandara plantar os pinhais de Leiria e de Azambuja para deter o avanço das areias sobre os terrenos de cultivo. Acabou-se, mais tarde, por aproveitar também a madeira para fazer barcos; mas reter as areias era primordial.
Conversando, porém, com amigo de longa data, que ali viveu desde sempre, há 70 anos, ele que conhece as dunas como as suas próprias mãos e o regime dos ventos e as noutes de temporal…
– Estás a ver isto? – perguntou-me.
Que sim. É para as areias não virem por aí adentro.
– E já viste como está grande a duna grande? E como a areia avança para o parque de campismo?... Isto não vai com estacazinhas, não! É preciso voltar a tirar areia das dunas!
– Eu lembro-me de ver camiões, com autorização da Câmara. A Câmara até vendia as carradas, não era?
– Precisam de areia para a outra banda; precisam de areia para as praias da vila… porque não vêm buscá-la aqui? Quanto maior for a duna, mais a areia avança!...
Acho que o meu amigo tem razão.

Publicado no Jornal de Cascais, nº 250, 19-01-2011, p. 6.

Falar com os nossos velhos

No momento em que, ao pensar no novo ano, meditamos no que, doravante, deveremos modificar para vivermos mais em plenitude, a vontade de visitar quem já se encontra no Outono da vida pode ser forte. Este ano foi, para mim. E senti que importa, amiúde, voltar a essas visitas, para darmos à vida a relatividade enorme que ela tem, os altos e baixos, as glórias e os esquecimentos – para, afinal, verificarmos que somos grãos de areia num infindável deserto.

Falei com Isolina Alves Santos, a poetisa que tivemos oportunidade de dar a conhecer. 89 anos. No Lar de S. Vicente, em Alcabideche. Já com alguma dificuldade de locomoção, mas ainda a fazer versos e a contar como foi a sua ida à Escola Ibne Mucana e a ternura que os meninos tiveram por ela. Fez versos para este Natal e disse-os na festa do Lar. Um exemplo.
Falei com uma tia adoptiva que tenho no Lar da Misericórdia, nas Fisgas. Também a rondar os 90. Já baralha um pouco os tempos, alterna a lucidez com o sonho, reconheceu-me, estava na sala da televisão e… foi bom receber dela um beijinho, na recordação de tanta caminhada desde os longínquos anos 40…

Falei com Cruzeiro Seixas, o nosso último pintor surrealista vivo. Completou 90 anos no passado dia 3. Vive num lar no Estoril, com alguns dos seus quadros, livros, esculturas indígenas d’África… Recordámos os tempos heróicos (!) em que esteve à frente da Galeria da Junta de Turismo. Heróicos porque, mesmo após o 25 de Abril, se prosseguiu na política de Serra e Moura de apoiar os artistas, reconhecendo-se que a oferta turística não passa exclusivamente pela hotelaria e pelas «praias de areia fina»; heróicos, porque se fez frente à galeria do Casino e se mostrou que poderiam coexistir; heróicos, porque, com pouco dinheiro e duas ou três pessoas, se montava uma exposição digna e dela se fazia catálogo para a posteridade; heróicos porque se ousou, por exemplo, propor uma exposição de pintura erótica – e caiu o Carmo e a Trindade!... Recordámos. Ora a perder paulatinamente a visão, «só vejo vultos», Cruzeiro Seixas vai recebendo os amigos, no conforto de ter procurado deixar rasto na pintura portuguesa – arauto de uma geração que agitou as águas e que perdurará.
Falei com os velhos. E continuei a aprender muito com eles. Mormente esta reflexão sobre a nossa caminhada – que tem começo, meio e fim. Altos e baixos, glória e… esquecimento! Bem hajam, Amigos!

Publicado no Jornal de Cascais, nº 249, 12-01-2011, p. 6.

Cortar as pedras

Prosseguimos na evocação do trabalho nas pedreiras, como ele ainda se realizava em meados do século passado.

Chamava-se «banco» o afloramento rochoso que os trabalhadores, roçando o mato e retirando a camada superior de húmus e terra, haviam posto a descoberto. Observavam-se-lhe a textura, as eventuais falhas… e, de acordo com as encomendas em carteira, tiravam-se as medidas e optava-se pelo corte, estudando-se o ponto mais adequado para abrir o furo.
Sentava-se um dos trabalhadores sobre uma pedra a jeito ou sobre desajeitado banco (tábua pregada em pedaço de tronco de pinheiro), com resto de manta velha em cima, para não fazer doer as nádegas; segurava no pistolo a preceito, bem na vertical, enquanto outro, empunhando o maçacopas (= maçacopla), ritmado ia batendo. E o de baixo rodava o pistolo e alevantava-o sempre após cada batidela, para se obter furo circular. Ao lado, púcaro velho com água, que se ia deitando aos poucos, a fim de facilitar o corte. Parava-se de quando em vez, não só para o descanso mas também para – com uma vareta que o ferreiro espalmara na ponta em jeito de pequena concha – se retirar o pó de pedra molhado que se acumulava no fundo. Bate que bate, um som metálico pela tarde, até atingir a fundura prefixada…
(continua)

[Publicado em VilAdentro [S. Brás de Alportel], nº 144 (Janeiro 2011) p. 10.]

Ilustração
Instantâneo do trabalho do cabouqueiro na cova de uma das pedreiras de Birre (Cascais) na década de 60. Note-se, no bloco, o rasgo do furo feito para o tiro. A pedreira estava no começo da laboração, pois os blocos ainda estão quase à superfície e não são grandes os montes de terra (em segundo plano) que foi necessário retirar para os pôr a descoberto. O cabouqueiro usa boina basca, muito comum nessa altura.

domingo, 9 de janeiro de 2011

As casas, as gentes, as histórias…



«Um dia, quando Amaro Moleiro deixar de plantar as suas alfaces e as suas couves nos alfobres que rodeiam a azenha ou deixar de colher os figos das grandes árvores que ali existem, tudo desaparecerá, tudo ruirá e poucos se lembrarão da azenha, tal como tem acontecido a outras do nosso concelho. Nada mais restará do que este apontamento e as fotografias que tirámos».
O desabafo, legítimo, de homens que têm consciência da importância do que chamamos de «património» e dos maus-tratos que, pela inconsciência de muitos outros, esse património vai sofrendo.
Fica a azenha em Manique. O que resta de uma actividade... eu ia a escrever «do passado»; hesitei, porém, porque, nos tempos que correm, mui provavelmente a essa e a muitas outras actividades somos capazes de ter de voltar, pela força das circunstâncias, em consequência de más políticas. Não se noticiava, há dias, que, em determinada terra do nosso País, já cada família recomeçara a cozer o seu pão, a cultivar a sua horta? Não estão as encruzilhadas dos arredores da capital pejadas de pequenas hortas agora?
Percorreu Guilherme Cardoso, de lés a lés, a freguesia de Alcabideche, a maior e a mais rústica do concelho, de máquina fotográfica em punho, a captar tudo aquilo que (sabia!) pouco haveria de durar. De bloco de apontamentos sempre pronto para anotar pormenores, fixar testemunhos, na certeza plena de que «velho que morre é biblioteca que arde». Vasculhou, claro, ele e Jorge Miranda e Carlos Teixeira, documentação de arquivo, livros antigos… mas, que há aí de mais eloquente que a tradição vivida e a ruína miudamente perscrutada?...
E foram historiadores, etnógrafos, arqueólogos, que, de olhos bem abertos no presente, já sabem perscrutar o futuro e, porque leram nos livros e na experiência, não resistiram, aqui e além, a deixarem umas linhas argutas, entenda-as quem as quiser entender:
«É mais fácil destruir do que conservar. Colocamos a nossa memória a substituir a de antanho, como se isso fosse o princípio de tudo»! – a propósito do prémio que a Associação Cultural de Cascais atribuiu à reconstituição fiel de dois casais saloios em Manique de Baixo.
Até finais dos anos 50, podia-se ir apanhar lenha e pinhas à Serra, em determinados dias da semana. Havia alguns abusos, é certo; mas a Serra era, assim, limpa. Quis-se cortar o ‘mal’ pela raiz, era mais fácil: proibiu-se!
«O mato deixou de ser limpo, as agulhas dos pinheiros acumularam-se e… o fogo deu-se! Os incêndios continuaram a fazer-se sentir ao longo dos anos e, como o pinheiro era de crescimento lento, houve quem se lembrasse de semear mimosas, que eram de crescimento rápido. Infestante como é, disseminou-se a grande velocidade, ganhou terreno e desenvolveu-se cobrindo tudo. Para eliminar as mimosas, utilizaram-se herbicidas e outros químicos poderosos. O que não resultou, deixando a serra contaminada de químicos que lentamente vão sendo absorvidos pelas águas pluviais (…)».
Os responsáveis pelo primitivo Gabinete de Arqueologia camarário lutaram para que se preservasse, em Bicesse, como memória, o portal da Vivenda Galinha. Luta difícil, vitoriosa, enfim – a determinar, porém, mais um desabafo contra «a sanha destruidora que grassa por todo o concelho e que interesses económicos individualistas tendem a intitular, num eufemismo tacanho, de modernização».
Realça-se o fundamental papel das colectividades, ora, infelizmente, moribundas em grande parte, a não possibilitarem essa transmissão de ‘herança’ que se impõe, porque, escrevem os autores, a par da importância das culturas das diversas comunidades étnicas existentes, «mais importante se torna não deixar morrer o conhecimento cultural autóctone, que se perde todos os dias um pouco, quando, a exemplo da globalização, os netos são colocados em infantários e os avós, os detentores do património cultural do seu povo, em lares de terceira idade».
E se se verbera o facto de, nalgumas dessas colectividades, uma estranha ‘euforia’ de Abril ter destruído a documentação existente, porque referente ao «antigo regime», também se pergunta por que razão o cruzeiro do Pai do Vento, em memória da morte de D. Maria de Mello, filha dos Condes de Sabugosa, é amiúde alvo de atentados:
«Nas épocas mais conturbadas da nossa sociedade temos notícias de actos de destruição contra antigos monumentos, sintoma colectivo da fobia de quem não tem coragem para atacar directamente os adversários, mesmo encontrando-se em desagrado, mas indirectamente nas obras produzidas por estes».
Quiseram os autores, despretensiosamente, manter no título do livro a palavra «apontamentos», na sequência do que se havia feito em relação a idêntico inventário das freguesias de Carcavelos e de S. Domingos de Rana . Não se procure, pois, aqui, uma história de capítulos sequencialmente cronológicos nem cuidada integração de factos narrados num contexto histórico regional ou nacional. Puseram-se, sim, em cima da mesa, todas as referências encontradas e registou-se em imagens tudo o que detinha interesse e, sobretudo, que corria o risco de desaparecer. Aliás, alguns desses recantos já hoje deixaram de existir! Tal como num outro livro, que João Cabral e Guilherme Cardoso fizeram, a pedido da Junta de Freguesia de Cascais, particular destaque se deu à arquitectura saloia, tão bem enquadrada na paisagem, tão eficaz no seu funcionamento.
Na década de 80, pôde a equipa de Jornal da Costa do Sol abalançar-se a essa imprescindível tarefa que incumbe à imprensa regional – quando a deixam e a apoiam – de dar a conhecer o que são as memórias locais. E fizeram-se, então, diversos suplementos dedicados expressamente a localidades ou grupos de localidades do concelho.
Vive este livro de muito do que então se publicou, mas não se esgota aí, porque se identificam lugares de que falam as histórias populares; se dá miúda conta das festividades em honra do Divino Espírito Santo; se sintetizam os resultados das escavações e sondagens arqueológicas levadas a efeito pela Associação Cultural de Cascais nas Branqueiras (Alvide), no Alto do Cidreira, em Miroiços da Malveira, no Casal do Geraldo…; se contam as peripécias das perseguições a Fausto de Figueiredo por agentes da Carbonária (uma história que ainda não fora bem esclarecida); diz-se do famoso «Homem-Macaco», um caso patológico a merecer, decerto, na actualidade, alguma investigação, dadas as suas características deveras invulgares; saboreamos a poesia de um escritor árabe do século XI, Ibne Mucana, natural de Alcabideche…
Propõe-se, pois, uma reflexiva panorâmica, de carácter histórico-cultural, sobre uma das mais típicas freguesias do concelho de Cascais. Tópicos que, reunidos aqui, poderão ser alvo de explanação mais alongada, pois, se algo se escreveu, muito ficou por escrever e muitas pistas de investigação há por desbravar! Aliás, este não é livro para se ler de uma assentada, mas para folhear de quando em vez, para que nos deixemos surpreender por aspectos inesperados… Tanta vez passei eu por ali e nem reparara nisso!... Essa, uma certeza que temos: este Registo, estes Apontamentos vão resultar num fecundo manancial de descoberta!
E bem andou, pois, a Junta de Freguesia em o ter patrocinado!

Cascais, 12 de Abril de 2009


Prefácio ao livro Registo Fotográfico de Alcabideche e Alguns Apontamentos Histórico-Administrativos, da autoria de Guilherme Cardoso, Carlos Teixeira e Jorge Miranda,
Junta de Freguesia de Alcabideche, 2009, p. 13-15.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

SANFONINAS 1 - Uma placa azulejada

Reza o dicionário que é sanfona um «instrumento musical, de cordas de tripa friccionadas por uma roda». «Sanfoninar» é «tocar mal qualquer instrumento de corda», «falar importunamente; serrazinar».
Gosto do «serrazinar», que é ir insistindo sempre no mesmo assunto. E lembro-me que tinha meu pai uma cantilena que começava assim «Sarrazina, faca velha, no debrum do alguidar…». Eu acho que era uma quadra, mas já não recordo os dois versos seguintes. Mas a ideia era que a gente insistia, insistia e… pouco adiantava. Tal como faca velha seria difícil afiar-se a preceito no debrum do alguidar…
E «sanfonina» é cantilena desentoada. Achei, pois, que todo esse contexto dava certo para responder afirmativamente ao desafio que o Dr. António Tavares me fez para colaborar, de vez em quando, no Renascimento: apetece-me… sanfoninar e o leitor me dirá se vale a pena dar-me alguma atenção.


Pois que, logo de início, lhe vou pedir atenção: vê essa placa que se reproduz a ilustrar estas regras? Já a viu? Sabe onde é que ela está? E sabe, porventura, que interesse haverá em preservá-la no sítio?
Dela falaremos, então, em próxima oportunidade!

Publicado no quinzenário de Mangualde, Renascimento, nº 561, 1-1-2011, p. 13.