domingo, 29 de outubro de 2023

O Sítio nº 1

            Na base de dados onde, no organismo do Estado que superintende à Cultura, se vão integrando os sítios arqueológicos, o rol é encabeçado por um sítio do concelho de Cascais.  

           


Panorâmica sobre as estruturas romanas visíveis no Alto do Cidreira


            Estranhar-se-á o uso da expressão «organismo do Estado que superintende à Cultura».
Eu explico.
É que, nesse domínio, umas vezes temos Ministério da Cultura, outras Secretário de Estado da Cultura, outras Secretaria de Estado da Cultura… Uma dança que não carece, amiúde, da mudança de Governo; basta uma remodelaçãozinha governamental e logo vêm outras ideias e toca de mudar de nome!
    Então no que se refere à Cultura, houve, no 2º escalão, o IPPC (Instituto Português do Património Cultural), o IPPAR (Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico), o IPPAAR, o IGESPAR, o IPM, o IPA… Agora é a DGPC – Direcção-Geral do Património Cultural.
O bailado das siglas tanto do agrado de quem vai para o poder!
            Agora, outra revolução se adivinha: essas entidades, ao que parece, deixam de ser Governo e passam a ser empresas. «É a economia, estúpido!», bem proclamava James Carville. Mais ou menos mascarada, é ela, é!
            Pois, voltando ao rol, a determinado momento, pensou-se que era necessário começar a identificar com números os sítios arqueológico portugueses. Não por uma questão de números, de economia, mas para melhor se identificar essa riqueza. Uma base de dados, claro, tinha que ser. E com que nome? Que númen poderia abençoar o empreendimento?
            Ainda estava bem presente na memória dos arqueólogos então com funções de responsabilidade na área o livro do João Aguiar, A Voz dos Deuses, onde o herói é um sacerdote do deus indígena Endovélico, cujo santuário se encontra em S. Miguel da Mota, concelho do Alandroal. Pois seria essa a divindade a baptizar o rol e abençoada ele seria, sem dúvida, por uma divindade ancestral dos Lusitanos. O nome colheu consenso e… vamos à luta!
            A questão primordial: por onde é que se começa?
            Ora aconteceu que, nessa altura, andavam uns senhores arqueólogos a fazer sondagens no Alto do Cidreira, em Cascais. Cascais ficava perto de Lisboa, as descobertas – que até tiveram honra de telejornais e noticiários (pudera, era perto de Lisboa!) – estavam a dar brado e do sítio já se conhecia bastante. Resultado: começamos por aí! E, por conseguinte, o nº 1 da base de dados Endovélico é a villa romana do Alto do Cidreira, situada no Carrascal de Alvide, freguesia de Alcabideche.
            A história vem contada na p. 118 do livro Memórias das Pedras Talhas, de António Carlos Silva (Edições Colibri, Lisboa, Janeiro de 2023). Acrescenta o autor: «mas as circunstâncias da sua descoberta e localização ainda hoje se refletem nas suas precárias condições de preservação». E é verdade.
Conhecida desde o século XIX, a estação – é também este o nome dado a sítios arqueológicos – esteve em sério risco de desaparecer sob o traçado da autoestrada (chegou a pensar-se que passaria por ali); de desaparecer, de seguida, sob os prédios de uma cooperativa de habitação; começaram a rodeá-la vivendas clandestinas e, dado o seu interesse histórico, os arqueólogos puseram mãos à obra e aí fizeram sondagens com vista a mostrar que ali havia algo a preservar.
Mostraram.
O sítio foi classificado, em 1992, como «imóvel de interesse público». Goza de um panorama excelente (os Romanos não eram parvos nenhuns e até conseguiram ter água por ali!) e… aguarda que, um dia, depois de reabilitadas as grutas da Alapraia e o povoado romano dos Casais Velhos, entre outros, possa chegar a sua vez de ter uma cara lavadinha. Para melhor usufruto de toda a população. Entretanto, de vez em quando, os serviços camarários lá têm que dar por lá uma voltinha, não vá o sítio transformar-se em lixeira.
 
                                                           José d’Encarnação 
 
Publicado em Duas Linhas, a 29 de Outubro de 2023: https://duaslinhas.pt/2023/10/o-sitio-no-1/

                                                                                             

Separador de tear, de osso, decorado.

Dado de osso

Cabeça de negro. Pendente, de terracota.

Sepultura identificada aquando se descobriu o aqueduto (à direita).

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Autonomia

            Dei os parabéns ao meu condiscípulo e amigo franciscano, pelos seus 84 anos. Respondeu-me:

«Minha saúde vai... suficiente! Vai acontecendo também o que a mãe dum meu confrade lhe disse: – Olha, filho, para o fim junta-se tudo!.. Mas estou bastante tranquilo e agradecido com o que Deus me deu até aqui e ainda sou razoavelmente autónomo».
Fez-me pensar esta frase. E dei comigo a passar em filme as várias autonomias.
      As eleições espanholas trouxeram de novo à baila as «comunidades autónomas».
      Algo que preocupa o eventual comprador de um automóvel eléctrico é a autonomia da bateria.
Brasão do Reino do Pineal
Estranhámos, em Julho deste ano, existir em Oliveira do Hospital a seita autodesignada Reino do Pineal, que reclama autonomia jurídica em pleno território português.
Uma das primeiras preocupações dos familiares dum viúvo ou duma viúva é a do respeito pela respectiva autonomia, contentes por ela existir, mas sempre atentos para se detectar nesse domínio a menor anomalia.
Comer sozinho, começar a andar, saber quando precisa de ir à casa-de-banho… são, para os pais, fases do seu bebé a carecer da maior atenção.
           Um dia, o Manel dispunha-se a atar os sapatos do filhote:
          – O João consegue! – foi a atitude do menino, dispondo-se ele próprio a executar a operação.
            Regozijo e aplauso selaram a façanha.
            Regozijo e aplauso, a 1 de Junho de 2014, ao comemorarmos o centenário da elevação de S. Brás de Alportel a concelho.
Autonomia! De «autós», palavra grega que significa ‘por si’; e ‘nómos’, que significa ‘lei’. A possibilidade de criar as suas leis e governar-se por si.

            Em todos os casos, uma autonomia que muito se preza e que muito apraz salvaguardar!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz (S. Brás de Alportel), nº 323, 20-10-2023, p. 7.

 

terça-feira, 17 de outubro de 2023

Aqui era o quarto!

            Sempre me deliciou a frase "Aqui era o quarto".
Fazia uma pausa e olhava derredor, a ver as reações dos estudantes. Explicava-lhes depois que não havia dúvidas: o resto do mosaico, de teor geométrico, qual esteira, junto ao que restava da parede indicava, sem sombra para dúvidas, que ali houvera um leito, ali haviam repousado, há dois mil anos, seres como nós, após a labuta quotidiana.
O silêncio que pairava sobre a cidade de Conimbriga, nessa tarde serena da visita de estudo em semana da Queima, ajudava a imaginação a espraiar-se em mentes juvenis e sonhadoras... Um dia, também terão um quarto, onde almejam dormir ternamente acompanhados…
"Aqui era o quarto". Agora, mais de quatro décadas passadas sobre essas inesquecíveis visitas de estudo, não é que a frase se veste de mui outras roupagens?
 
Muito ano a lutar pelo património edificado, mormente o que é de características locais, "aqui era o quarto" transporta-me sempre para aquela casinha antiga, sobre a suavidade da colina, do lado norte da A6 antes de cortarmos para Montemor. Sinto-lhe o choro, pelo abandono a que a votaram, sempre que por lá passo. Vi, há, dias, que já caíra parte do telhado. Imagino que, algum dia, o proprietário ou um descendente dele ali venha e aponte: "Sabes, aqui era o quarto!".
Mas, nesse percurso Alentejo fora – e não só – muitas paredes decrépitas gostariam de ouvir a frase, sinal de que alguém poderia estar de novo a interessar-se por elas. O véu da tristeza as envolve.
 
"Aqui era o quarto" estamos agora a ouvir quase diariamente. O míssil caiu em cheio e tudo ficou irreconhecível. O senhor de idade, único que ousara ficar, a voz embargada, as lágrimas há muito que secaram.
 
Sob aquela aba de prédio urbano, a frase mudou de tempo: "Agora, amigo, o meu quarto é aqui!". No montinho de jornais, o canito levantou a cabeça a mostrar olhar ternurento e sereno; bem encostada à parede, a trouxa envolvida em manta velha. “É verdade, amigo, durmo aqui há seis meses. O meu quarto, agora, é aqui”.

E assim fico, de olhos nos longes do território e da História. E a frase, com todos esses instantes parados no tempo, insiste em permanecer comigo, bem viva.

                                               José d’Encarnação

Publicado em Renascimento [Mangualde], nº 853, 15/10/2023, p. 10.

sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Flagrantes

            – Então, vizinha, não quis o outro autocarro e veio para a paragem deste lado, foi?
            – Qual quê! O motorista eu fiz-lhe sinal, mas ele não parou. Não há meio de se endireitar este país!
            A vizinha viveu, de facto, muito tempo emigrada num país europeu e decidiu passar a velhice em Portugal; nunca deixa passar uma oportunidade para verberar o que lhe parece menos bem.

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            Os serviços de comunicação duma entidade enganaram-se na data prevista para um evento, integrado nas Jornadas Europeias do Património. António, sempre interessado nestas lides patrimoniais, quis inscrever-se. Não gostou do engano:
            – Assim é difícil progredirmos, enquanto sociedade. Irra!

000

            No parque de estacionamento pago, o arrumador ia vociferando com os condutores – mormente senhoras – que não lhe davam gorjeta. Mal educadamente.
            Perto, o funcionário da empresa gestora dos parques entretinha-se a ver o telemóvel. A Joaquina:
            – Olhe, amigo, boa tarde, está ali um sujeito a incomodar as pessoas no parque.
            – E que tenho eu a ver com isso? Não me estão a chatear a mim, pois não? Chamem a polícia!
            – Ah! – replicou a Joaquina. – Só o treinaram a passar multas! Já percebi.

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            Em pleno centro histórico citadino, a Maria, de braço dado com o marido, septuagenários, amparando-se, não se apercebeu do lancil e estatelaram-se ambos. De pronto, o senhor que estava perto se apressou a ajudar a levantarem-se.  «Magoou-se?». O pulso sangrava um pouco. Uma jovem tirou logo da bolsa o lenço húmido para limpar o sangue. Um vendedor trouxe a garrafa de água para lhe lavar a mão. Boa parte dos intervenientes não falava o português de Portugal. Maria recompôs-se, palpou a perna a ver se havia problema. Os dois anciãos respiraram fundo, agradeceram. Olharam um para o outro, como que a perguntarem-se: «Tens a certeza que foi real isto que nos aconteceu?».

À noite, em telefonema a uma amiga, pôs em destaque os três flagrantes de que tivera conhecimento e de que, num deles, fora parte activa.

                                        José d’Encarnação

Publicado em Renascimento [Mangualde], nº 852, 01/10/2023, p. 10.