quarta-feira, 20 de março de 2024

Molhem as cordas!

            Reza a história que, a dado momento da operação de se erguer, no meio da Praça de S. Pedro, o obelisco vindo do Egipto, no ano 37 d. C., o pânico se apossou dos operários, porque as cordas começaram a ranger e se corria sério risco de partirem e, caindo, o obelisco partir-se, além de poder ferir gravemente alguém. O que é que se faz, que não se faz…
            De repente, há um grito na multidão silenciosa:
            Aqua alle funni! Molhem as cordas!
            Assim se fez, numa pressa. O obelisco, de 350 toneladas, mantém-se, pois, na Praça de S. Pedro desde esse dia, quase fatídico, de 10 de Setembro de 1589. E o capitão Bresca, que ousara quebrar o silêncio a todos imposto durante a operação sob pena de morte, acabou por ser agraciado pelo Papa Sisto V e o seu grito assume-se, hoje, como símbolo da luta contra a prepotência.
           Ao investigar a prática da caça nos começos do século XX em Cascais, apercebi-me, nas narrativas, da maior preocupação dos caçadores: a água para os cães! Deveriam organizar o seu périplo de modo a passarem, no tempo oportuno, por um chafariz ou um charco onde os animais pudessem dessedentar-se. Compreendo isso, hoje, claramente, porque o meu labrador, antes e depois dos passeios diários, nunca se esquece de beber.
        A importância da água não carece de argumentação, até porque há uma espécie de norma vulgarmente aceite (quiçá cientificamente documentada) de que devemos beber litro e meio de água por dia. Meu urologista torceu o nariz, há dias, quando, cheio de vergonha, eu lhe confessei o pecado de negligenciar essa norma; percebi, pelo seu ar, que merecia penitência.
            A questão põe-se também – e cada vez mais – em relação à qualidade da água, mormente da água que nos é fornecida pela «companhia», palavra que serve para identificar o organismo oficial encarregado desse fornecimento. Somos, por vezes, surpreendidos por depósitos estranhos ou por um sabor «a cloro» e aumenta a tentação de consumirmos água engarrafada (preconiza-se que não seja sempre da mesma origem). Lembro-me que, em pequeno, ouvia dizer que meu padrinho Garcia, de Olhão, era o distribuidor-mor da água de Monchique, uma das que, na verdade, quiçá pelo seu alto teor alcalino (9,5 de ph) ou em homenagem ao meu padrinho, eu também tenho em casa habitualmente.
Direi, porém, que fiquei mui agradavelmente surpreendido quando, em Maio do ano passado, me foi apresentada à mesa, na cantina da Universidade do Algarve, uma garrafa que dizia «Água da Torneira». Congratulei-me. Até enviei mensagem ao nosso ex-presidente António Eusébio, o que ora preside às Águas do Algarve, S. A., a congratular-me com a iniciativa.
      Nesta aflição em que estamos aqui no Sul, na iminência de racionamento do precioso líquido, duas medidas se preconizam, como toda a gente sabe: poupar e não desperdiçar. Poupança a nível individual e familiar; poupança, de modo especial, a nível das estruturas, para evitar fugas na canalização. A reabilitação de poços insere-se igualmente – deveria inserir-se – nessa preocupação. S. Brás de Alportel, pela sua localização em vale tem, como se sabe, potencialidades a nível freático. Lembro-me sempre das bicas dos Vilarinhos ou do poço do Corotelo, que era público e hoje se encontra, ao que parece, inoperacional – e importará saber porquê). Tudo o que contribua para diminuir os lençóis subterrâneos ou os contaminar deve ser prioritário impedir.

                                               José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 328, 20-03-2024, p. 13.

Ruralidades

            Aceitou a Freguesia de Viseu o desafio de publicar em livro de prestígio, excelente apresentação gráfica, capa cartonada, o álbum intitulado Ruralidades, da autoria do Dr. Alberto Correia. Fotografias do Arquivo Foto Germano, de Viseu; design de Sónia Ferreira. 2023, 500 exemplares, 64 páginas.
            Louve-se a sensibilidade do seu presidente, Diamantino Amaral dos Santos, que salienta, na Nota Introdutória, este «discurso simples e delicioso, que matiza e faz persistir as memórias de gentes pitorescas»; louve-se a disponibilização de  verba para a edição; louve-se a forma original como o Autor legendou, na página da direita, a foto inserida na da esquerda, fazendo-a falar, levando-nos, em clave poética, a melhor a contemplar e a entrar, de mansinho, na existência antiga do que ali se apresenta como que apanhado em fragrante…
            Optou-se – e bem! – por magníficas fotos a preto e branco, que mui adequadamente realçam o instantâneo captado. Nada de poses, de artifícios! É mesmo o instantâneo natural, susceptível de transmitir o viver quotidiano. Acontece, porém, que o Dr. Alberto Correia não se limita à mera evocação dos seus tempos de menino, mas evoca sobretudo – e isso é que importa realçar – o halo poético que deles inevitavelmente dimana, com o objectivo de preservar a memória, fautor de manutenção de identidade!
 

            Não resisto a exemplificar usando a imagem (mui difícil, muito difícil mesmo a minha opção, confesso!) escolhida para a capa: a das lavadeiras na Ponte da Azenha, no rio Pavia. Aí cumpriam elas «a arregimentada tarefa do lavar da roupa de uma abonada burguesia (…)» e «de uma residual e caprichosa fidalguia». A burguesia a viver em «solenes mansões»; os fidalgos, nos «últimos solares que resistiam à ruína».
            Tarefa acabada, roupa corada, enxaguada e seca «na suspensão festiva do cordame», dobrados «os lençóis de linho, as roupas de uma não desvelada intimidade, toalhas de mesa e  peças de enxoval», o poeta anota:
            «Um filho ao colo, um filho pela mão, os passos marcados no subir da calçada e o cheiro a sol que as lavadeiras deixavam à porta de um lar. E a roupa delas que ficar por lavar!...».
             Ouvimos-lhes os passos, sentimos-lhes o cansaço, deixamo-nos ficar. Maravilha!

                                                                José d’Encarnação

Publicado em Renascimento [Mangualde], nº 861, 15/03/2024, p. 10.

 

terça-feira, 5 de março de 2024

Miosótis

             Uma luz diferente quis envolver o raminho. Chamou por mim. Cativou-me – a recordar a frase d’O Principezinho:

«Quando se ama uma flor plantada numa estrela, é um encanto, à noite, olhar para o céu: todas as estrelas estão floridas».

Assim o miosótis.

Florinhas de corolas hexapétalas de um azul cerúleo, estames amarelos ao centro envolvidos de branco; folhas lanceoladas, só de nervura central de um verde mais carregado. Beleza! Vistas assim, de parede cinza ao fundo: maravilha!
            Dir-se-ia artificial arranjo de ikebana, mas não é: rendo-me ao Criador!
            Não resisti. Fotografei a serenidade bela do meu miosótis. E mais pasmado fiquei quando vim a saber do seu nome popular: não-me-esqueças!
            Irresistível a vontade de o começar a partilhar. De Portugal voou, por exemplo, para Roma. Recebeu-o Eugenia Serafini com particular carinho e, num repente, quis dedicar este haiga:

                        Piccoli fiori

  Sorridono alle

                S t e l l e

    Volo di Colibrì

As flores bem pequeninas
Sorriem para as estrelas
Qual voo de colibri

Ikebana, arranjo floral japonês; haiga, desenho simples, com traços singelos, a complementar o haikai, poema conciso. A delicada simplicidade japonesa, imagem e poesia, a sublimar a admiração, a concretizar a comunhão entre a Arte divina captada por uma objectiva e catapultada – pela Poesia – para um horizonte superior.

Imaginamos o sereno esvoaçar do colibri a tentar sugar mui saboroso néctar – e quedamo-nos, alfim, em mui contemplativo silêncio, alheados, completamente alheados do vertiginoso corrupio em que se nos escoam os dias…

José d’Encarnação

Publicado em Renascimento [Mangualde], nº 860, 01/03/2024, p. 10.