quarta-feira, 18 de maio de 2016

As horas longas do treino

   Por sugestão de uma amiga, acedi, a 25 de Abril, p. p., ao endereço https://www.facebook.com/relaxKZ/?fref=photo, e tive, assim, ensejo de me deliciar com o «incrível» espectáculo de uma jovem, cujo nome não vem mencionado e que será, porventura, do Cazaquistão. Tinha, nesse momento, já mais de 4,4 milhões de visualizações!... Impressiona vivamente a facilidade com que todo aquele corpo, de enorme elegância, se contorcia nas posições mais inesperadas, qual boneca de plasticina, sempre de sorriso nos lábios, como se estivesse a fazer algo perfeitamente natural…
          E dei comigo a pensar no treino intenso e continuado; no cuidado enorme com a alimentação; no extraordinariamente regrado do seu viver… Tudo para que nos parecesse, agora, extremamente simples, literalmente feito «com uma perna às costas». «Às costas» e em todo o lado, porque a versatilidade de movimentos se torna verdadeiramente inconcebível.
          Maravilhamo-nos com a beleza e apercebemo-nos – mais uma vez! – de que não é assim tão fácil tornar as coisas simples!
           Recordo que houve um tempo em que dificilmente se via um catedrático a falar na televisão ou a escrever singelo artigo num jornal. Metido na sua torre de marfim, cabeça plena de fórmulas e termos técnicos, o cientista era incapaz de verter em linguagem comum aquilo que estava a fazer. Hoje, felizmente, já não é tanto assim. Aliás, julgo não ser erro afirmar que o verdadeiro cientista é aquele que sabe transmitir em singeleza o que logrou investigar. Não falou Cristo em parábolas, retratos de cenas do dia-a-dia?
          E não resisto a contar a história – que também me chegou há tempo – daquele psicólogo a quem pediram uma conferência sobre a crítica. Sala cheia. Sem palavras, pôs sobre a mesa uma toalha de seda, uma jarra de perfumadas flores, um punhado de pérolas e… um frasco com uma lagartixa dentro. Perguntou à assistência o que estava sobre a mesa. E a maioria das vozes: «Um bicho!», «Um lagarto horrível!», «Uma larva!», «Um pequeno monstro»! E o conferencista concluiu que nada mais tinha a dizer, uma vez que ninguém parecia ter aspirado o perfume das rosas, apreciado o bordado da toalha ou admirado o esplendor das pérolas…
            Uma lição bem simples, não é verdade? O psicólogo estudara muito!                                                                  
                                                                         José d’Encarnação

            Publicado em Renascimento [Mangualde], nº 685, 15-05-2016, p. 11.

domingo, 15 de maio de 2016

Regozijo e apreensão

Perdoar-me-á o leitor se uso título semelhante ao da crónica passada. Poderia ter sido o mesmo, “Indignação e regozijo”, mas pela ordem inversa, porque os factos foi nessoutra ordem que se passaram: primeiro o regozijo; depois, a indignação.
Confesso: hesitei mesmo em falar do que se fez na Parede, a 25 de Abril, devido precisamente a ter ficado muito apreensivo quando, de cravo vermelho na lapela, cheguei junto da minha viatura. Perto, uns senhores que não tinham cravos, apenas blocos numerados… E havia outros noutras ruas…
Era uma tarde bem soalheira, a praia da Parede apetitosa como sempre e na Sociedade Musical União Paredense (fundada a 4 de Março de 1899!) comemorava-se o 25 de Abril. Todavia, como essoutro tema, o da apreensão, foi brilhantemente abordado no programa «Sexta às 9», da RTP 1, precisamente no dia 29, dispenso-me de comentários, a não ser manifestar…apreensão.

Vamos ao regozijo!
Salão nobre restaurado, bonito e cheio. Sessão evocativa e comemorativa do 25 de Abril. O objectivo traçado lia-se no panfleto “25 Abril – 42º aniversário – Ontem, Hoje e Amanhã”:
“Hoje, para lá das ideias legítimas de cada um, é necessário não só manter essa memória como fomentar a consciência de que somos um povo único que deve continuar a lutar, fraternamente, pelos seus Direitos, pelo aprofundar da DEMOCRACIA, mas também por mais AMIZADE”. É que, em rodapé, se lia: “25 de Abril…em cada esquina um amigo”.
Não foi assim nessa tarde: cá fora da colectividade, não havia um amigo em cada esquina; mas…vamos continuar a lutar para que tal desiderato se cumpra!

O programa
Deliciou-nos Joana Alves, bonita voz vinda expressamente da Figueira da Foz, onde ganhou um dos festivais aí realizados e que ficou entre os quatro finalistas do programa The Voice Portugal, RTP 1 em 2012. Acompanhada, ao piano, pelo maestro Sílvio Rajado (de Coimbra). Momento musical apreciado, a que o público correspondeu: as inevitáveis canções de Zeca Afonso são entusiasmantes, fazem-nos bem à alma, sobretudo o «Grândola, vila morena», com que terminámos.
Aproveitou-se a ocasião para apresentar um livro de poemas, bilingue (português e inglês, elegante tradução de Mm Seto) de Carlos Peres Feio. Fora seu primeiro livro Podiam ser Mais, que a Associação Cultural de Cascais teve a honra de editar com o imprescindível contributo da Junta de Freguesia (nessa altura só de Carcavelos), apresentado a 20 de Outubro de 2007. José Proença de Carvalho falou de dizer mais longe, o livro ora publicado, e declamou alguns poemas, função a que o autor se não negou também. Declarou Carlos Feio que a sua poesia é introspectiva e que parte, amiúde, de um pormenor da paisagem, de um estado de alma. Apreciei particularmente “A chave”: tens um castelo de sonho, um palácio de luz, que apenas de longe acarinhas; “Quando te sentires triste, usa então a chave, construída com metal dos dias em noites de luar forjada – e serás feliz”. 72 páginas, 31 poemas para meditar.
E, antes de a Banda da SMUP nos deliciar com um concerto, evocou-se o 25 de Abril. Zilda Silva agradeceu às entidades que haviam tornado possível esta celebração com tamanha dignidade e fez votos para que a descentralização não seja palavra vã. Urge fortalecer a nossa identidade, disse, uma vez que é o poder local o principal motor de desenvolvimento do Portugal democrático. Armando Paulos, presidente da assembleia de freguesia, frisou ser esta uma iniciativa que congregou por unanimidade todas as forças políticas (só a CDU não estava presente, porque havia o tradicional desfile na capital – foi explicado). Incitou Armando Paulos ao aprofundamento da democracia, porque – explicitou – falta completar Abril e urge “defender com unhas e dentes o não regresso ao passado”. Terminou com um vibrante viva ao 25 de Abril, que a assistência aplaudiu.
Iniciada a sessão às 17.45 h – houve problemas de som a resolver e que, mesmo assim, não foram resolvidos de todo –, a banda da SMUP começou o seu concerto às 18.58 h.

                                               José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol – Jornal, 11-05-2016, p. 6,
Dentro, a exuberância dos cravos; fora, a das grilhetas.
Aspecto parcial da assistência
Zilda Silva, a autarca em diálogo
Outra panorâmica da assistência
 Pintora Ana Cassiano; escultor (também eng.) Alberto Simões
de Almeida e poeta Carlos Peres Feio.

terça-feira, 10 de maio de 2016

Buer

            Ocorreu-me outro dia o termo «buídas», usado para designar pequenos tanques rasos, de batemilha, que serviam para apanhar com rede os pássaros que lá iam beber desprevenidos. E achei que deveria consigná-lo aqui, embora buer e buída sejam termos conhecidos e, inclusive, registados no Dicionário do Falar Algarvio. Confessemos que é mais fácil dizer ‘buer’ e ‘buída’ do que ‘beber’ e ‘bebida’, sobretudo se já se está com um grãozinho na asa…
            Mas, para além dessa ocorrência que me levou aos tempos da minha infância, acabei por ficar por lá, pela infância, e pareceu-me que não seriam despiciendas duas anotações complementares.
            Da primeira, descaradamente infantil, naquele nosso jeito de querermos ser homenzinhos mesmo a falar, já aqui se fez menção em Junho de 2012: o remoque pronto do catraio ao outro que lhe assobiara enquanto bebia, como se de animal se tratasse:
            ‒ Já bubi e sobejou para a grande besta que me assobiou!
            A segunda: o mau hábito (a meu ver) que há de os pais perguntarem à criança pequenina «Bua?» – que é como quem diz «Queres água?». Também aqui «bua» é mais cómodo que pronunciar «água»; contudo, a vertente pedagógica deveria prevalecer. Não é «de pequenino que se torce o pepino»? É.                             
                                        José d’Encarnação
 
Publicado em VilAdentro [S. Brás de Alportel] nº 208, Maio de 2016, p. 10.

 

quarta-feira, 4 de maio de 2016

Eu quero envelhecer contigo!

             Josefina e Manel têm filhos, têm netos. Os netos na escola; e os filhos, atarefados, de manhã à noite, horários sobrecarregados, responsabilidades acrescidas, férias organizadas, sem tempo para um telefonema ou um e-mail...
            Já entraram nos 70 e vivem, por isso, um dia após outro dia, a minimizarem os efeitos psicológicos de um mundo que ambicionaram bem diferente e para isso labutaram e nessa perspectiva deram exemplo aos filhos e aos que com eles privavam.
            Manel mantém-se activo, prosseguindo na investigação científica do que lhe dá prazer e num domínio onde acabou por fazer discípulos. Sente dificuldade, porém, em compreender os espartilhos hoje criados, por exemplo, para a publicação dos resultados da investigação, a obrigatoriedade de se escrever em inglês, sob o pretexto de que só assim (dizem!) se logra ser notável; a azáfama com que se programam «congressos internacionais», que acabam por ter apenas quatro gatos-pingados, mas que são «internacionais» e é isso o que conta nas estatísticas.... Custa-lhe compreender a tirania das estatísticas, tantas vezes obrigatoriamente falseadas…
            Josefina e Manel lembram-se, amiúde, daquela senhora, já viúva, que tudo preparou para a ceia de Natal em família e… não houve ceia nem família, porque os filhos, à última hora, tiveram outras preferências. E do estratagema daqueloutro, que teve de simular a morte por telegrama para reunir a família – e conseguiu! E do pai que, no banco do jardim, pergunta ao filho «Aquilo é um pardal, não é?» e o filho lhe responde num monossílabo, uma, duas, três vezes, dias seguidos, chateado, absorvido como está no seu tablet, até que, uma tarde, o pai rapa do diário e lhe mostra que era ali mesmo que o filho, em pequeno, lhe fazia a mesma pergunta e ele, pai, disponível, de sorriso nos lábios, lhe explicava tudo tintim por tintim sobre pardais…
            Manel tem mesmo, no computador, uma pasta de PowerPoints sobre velhos e sobre a velhice, que passa de vez em quando, para se edificar. Isso mesmo: para se edificar – e assim consegue manter de pé o edifício!…
            Josefina fez anos. Reviram, com gosto, as flores do jardim de que cuidam, aquele craveiro-do-ar que, este ano, lhes sorri com muitas flores; espreitaram da janela os pardais, as rolas e os melros a debicar, gulosos, as migalhas que lhes deitaram no canteiro…
            Entreolharam-se. De facto, apesar dos filhos e dos netos, o seu mundo cingia-se agora fundamentalmente às quatro paredes, ao jardim e aos animais que lhes faziam companhia... Abraçaram-se emotivamente e, como frase de parabéns, Manel não achou outra melhor:
            – Eu quero envelhecer contigo!
            – E eu também! – sussurrou-lhe a mulher, num beijo, surpreendida.
            Afinal, só os dois é que contavam!
 
                                                          José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 684, 01-05-2016, p. 12