sábado, 25 de fevereiro de 2012

Bartolomeu Valentini - uma vida ao serviço da comunidade

A implacável coluna do deve e do haver
Poderá estranhar-se se volto a dedicar uma crónica a uma pessoa e, sobretudo, por se tratar de um sacerdote católico. Que me seja perdoada a ousadia; no entanto, cada vez que sinto estarmos num mundo em que as pessoas enquanto tais não são tidas em consideração, porque para os poderes que mandam neste mundo o que contam são as colunas do deve e do haver, maís necessidade sinto, como cidadão e como jornalista, de chamar a atenção para o facto de que, por detrás dessas colunas, estão pessoas!
Quando ouvi, no sábado, o presidente da Câmara de Torres Vedras explicar que investira no seu Carnaval tantos mil euros e com isso ia arrecadar uns milhões, mais uma vez tive pena de quem, por obediência a esquemas economicistas lineares, não tem em conta a pessoa humana e desconhece a História!
Por isso, dedico hoje umas palavras ao Padre Bartolomeu Valentini.

Um andarilho
Se a esta ‘coluna’ dei o nome de andarilhanças, porque, no fundo, sempre me deu na real gana andar de um lado para o lado sem obediência a esquemas rígidos nem a dogmáticos catecismos, a vida do Padre Valentini cabe aqui de pleno direito.

Nascido a 9 de Novembro de 1912 em Trento, na Itália, ingressou na Sociedade Salesiana, uma congregação religiosa fundada por S. João Bosco, em Turim, na 2ª metade do século XIX, em plena época da Revolução Industrial, para dar ocupação e horizontes às centenas de pés-descalços que, já nessa altura, pululavam nos arredores das cidades. A ideia de D. Bosco foi desde logo ensinar artes e ofícios e, através da alegria e da sadia ocupação dos tempos livres, preparar um futuro para quem, amiúde, não tinha um naco de pão. Bartolomeu Valentini abraçou essa vocação e, aos 19 anos, foi enviado para Portugal, mais concretamente para Poiares da Régua, onde tinha sido aberta uma das primeiras casas salesianas, justamente para formar os obreiros dessa missão. Foram, na verdade, italianos, como era natural, os primeiros salesianos que vieram para o nosso País.

Artes e ofícios
Exerceu em Poiares, no recôndito Trás-os-Montes, as funções de assistente, período intermediário, na sua formação, entre os estudos filosóficos e os teológicos, que desembocariam, em 1938, na ordenação sacerdotal. É colocado então nas Oficinas de S. José, em Lisboa, escola assim designada precisamente porque visava facultar ensino técnico aos jovens desvalidos da capital, ali na zona dos Prazeres, onde ainda hoje se encontra. Foram as Oficinas de S. José o principal alfobre, por exemplo, de tipógrafos de Portugal.
Daí parte para Vila do Conde, uma escola dependente dos Serviços Tutelares de Menores. Aí se recuperavam os jovens através do ensino das artes gráficas. Em 1945, colabora, no Instituto Missionário de Mogofores (Anadia), na instalação do Noviciado, fase de inserção do futuro salesiano na vida da congregação.
De 1946 a 1952, vemo-lo no Asilo de Santo António do Estoril, onde dirige importantes obras de remodelação das instalações para as adaptar às funções do que viria a ser, daí a pouco, a Escola Técnica e Liceal Salesiana. Daí que, a 29 de Maio de 1982, por ocasião do 50º aniversário da Escola, os Antigos Alunos tenham feito questão em que fosse ele a descerrar a placa comemorativa.
Em 1952, fica em Manique, onde preside à construção da capela do então Instituto Missionário Salesiano, a casa de formação com Noviciado e Curso de Filosofia.
De 1953 a 1962, é o grande obreiro da Escola de Artes e Ofícios do Funchal. Em 1962-1963 está de novo no Estoril, como orientador espiritual. Seguem-se estadas nas casas salesianas de Lisboa e de Moçambique (onde os Salesianos haviam erguido grande obra escolar na Namaacha). De 1975 a 1990, vai novamente para o Funchal, agora para superintender à construção do pavilhão desportivo (sempre os Salesianos deram ao desporto uma importância fundamental como apoio na formação dos jovens).
E é só em 1993 que recolhe a Manique, para passar serenamente os últimos anos de vida. Apesar de naturalmente afastado da vida activa da Escola, sempre se interessou pelo caminho que ela estava a seguir e regozijou-se, por exemplo, com a possibilidade de nela se ter construído uma piscina, para mais adequadamente se dar aos jovens o complemento formativo de que necessitavam.

Serenidade
Falei com o Padre Valentini pela última vez a 20 de Setembro de 2008. Em cadeira de rodas já então, impressionou-me a sua enorme serenidade; a lucidez com que me contou, nesses breves minutos em que estivemos juntos, o que fora a sua actividade no Estoril, as lutas que tivera de travar para obter dos benfeitores locais verbas para levar a cabo a construção que se propusera. Senti claramente estar diante de alguém que – como se diz nas Escrituras – tem a sensação clara de que «combateu o bom combate» e que tudo fez, na medida das suas possibilidades, para trazer ao mundo dos jovens e dos que com os jovens mais de perto lidam aquele espírito que D. Bosco soubera incutir nos seus discípulos.

Exéquias e memória
Faleceu no passado dia 12, na Escola Salesiana de Manique, no seu 100º ano de vida.
Presididas pelo Provincial, Padre Artur Pereira, as exéquias foram celebradas por mais de uma vintena de padres salesianos vindos das casas de todo o País.
O Director, Padre David Bernardo, evocou sentidamente os últimos tempos da vida do Padre Valentini: «Não me falta nada; as pessoas são fantásticas, que mais quero?», dizia. Salientou o seu grande desprendimento nesta terra que adoptou como sua; a visão de futuro que sempre o acompanhou; a sua extrema sensibilidade – sabia sempre agradecer! Quando lhe foi administrada a Extrema-unção, chamou os Irmãos, despediu-se deles, agradecendo-lhes e pedindo desculpa por aquilo que, ao longo da sua vida, pudesse ter feito menos bem.
Ficou sepultado no cemitério da Galiza, onde jazem, aliás, muitos dos salesianos que deixaram marca indelével na juventude da linha de Cascais, mormente em meados do século passado. Refere-se amiúde que é Cascais um dos concelhos mais salesianos de Portugal. Na verdade, rara será a família que não teve ou não tem um elemento seu a estudar numa das escolas que os Salesianos ou as Filhas de Maria Auxiliadora (o ramo feminino da congregação) dirigem neste concelho.

[Publicado no Jornal de Cascais, nº 302, 22-02-2012, p. 4].

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

«Eles 'andem' aí!» - a revista do Grupo Cénico

São os vampiros. Não há esquina onde não se encontrem, meio de transporte em que não estejam, hospital em que não se escondam, televisão onde não mostrem os dentes. Prontos, sempre, a sugar-nos o sangue até ao tutano, insaciáveis… Até nós deixarmos!...
Estreou, no passado dia 10, sexta-feira, com este título «Eles “Andem” Aí!», a revista do Grupo Cénico da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Cascais, no seu vetusto e simbólico Teatro Gil Vicente. Vai estar em cena, aos sábados, a partir das 21.30 horas – e é de lá ir para aplaudir e para, como reza o convite dito logo no início do espectáculo, «esquecer tudo o que se passa lá fora e… rir!».

Um símbolo
Antes de traçar, ainda que em largas pinceladas, o panorama da revista, permita-se-me que reafirme ser a iniciativa o símbolo de uma Cascais que resiste, no seu coração histórico. Os mais velhos foram passando o testemunho aos filhos e aos netos, não deixaram morrer um espírito de crítica sadia, de quente convívio, de amor a uma vila seis vezes centenária, com História, e que vai vendo passar, cada vez mais, outras gentes que do ‘espírito de Cascais’ pouco ou mesmo nada percebem.
O Gil Vicente assume-se – e é! – para além da sede da Associação ora a comemorar os 125 anos de existência, a sala onde vive e se revive a tradição. E um espectáculo de revista bem à portuguesa constitui, sem dúvida, o melhor pretexto para um ponto de encontro jovial, autêntico, consolidador de vizinhanças.
Compreende-se, pois, que – apesar de convidados – os representantes das entidades oficiais, nomeadamente autárquicas, não tenham estado presentes. É que o Gil nada lhes diz, porque… noutras águas navegam. Lamentar a ausência? Acho que não, pois cada um escolhe o caminho por que deseja singrar.

Devotado trabalho conjunto
Não foi distribuído programa nem praticamente se referiram nomes. No final do espectáculo, passava da meia-noite e meia, todos os intervenientes encheram o palco: os actores, o ensaiador, os que ficam sempre atrás das cortinas, todos!... Poderia eu próprio (e ainda hesitei) solicitar os dados da ficha técnica, para os escrever aqui. Preferi não o fazer, porque sentimos todos quanto há ali de trabalho conjunto, de dedicação extrema, muitas horas de noites perdidas para a família mas ganhas para uma causa. E nunca será de mais evocar – como se faz, e muito bem, no final do 1º acto – o que tem sido, ao longo dos anos, a actividade do Grupo Cénico, marchando contra tudo e contra todos!

Contra e a favor
Como é de lei numa revista, aplaude-se, critica-se, brinca-se, ri-se… que já lá diziam os Antigos que é a rir que se chicoteiam maldades!
Abre a série o Zé-povinho numa chula mandada (bem gostava ele de mandar, ia tudo a trote e a compasso, oh se ia!...); baila-se o vira, o fandango, arma-se bailarico… E logo ali se vê o que vai ser uma das constantes ao longo da noite: a magnificência, ainda que singela, do original guarda-roupa – um espanto! Termina o Zé a fazer o seu manguito e… o baile acaba!
A passageira quer apanhar o comboio, em Santa Apolónia, mas não sabe para onde vai nem percebe nada do que lhe estão a dizer (saboroso esse conjunto de trocadilhos). Sabe é que está aflita para ir à casa de banho. Pois é: e o comboio partiu sem ela. Vemos o comboio partir todos os dias, não o apanhamos, porque nem as necessidades básicas conseguimos satisfazer…
Fala-se de iniciação sexual. A acompanhante de luxo entra pelo teatro, de carro, e é a cena que se imagina entre ela que ora chega, às tantas da matina, e a lavadeira que já ali está ao serviço desde madrugada, «lava por baixo, lava por cima»…
Original a coreografia do bailado cigano, a fazer-nos sonhar Andaluzias…
Dois bêbados não acertam a medir o pau, porque querem medir-lhe a altura e teimam em pô-lo de pé. Há hoje alguma coisa que se consiga manter de pé? – pergunto eu. E eles também não acertam! E se o medissem no chão? – sugere o ancião que deles se abeira. Mas eles – como tantos outros… – acham que os anciãos só servem para atrapalhar ainda mais!
Ah! E temos um espantalho no jardim. Um? Muitos! O que há mais por aí são espantalhos! Não pensam mas falam, oh se falam! O melhor é pô-los a bailar – e isso conseguiu-se fazer!
E para tratar de festas populares (as que ainda resistem e as que houve outrora) nada melhor que pôr em cena dois atrasados mentais, a quem tudo é permitido. Perguntam pela praça de touros: então, que aconteceu? Riem-se, porque o parque de estacionamento do Parque Marechal Carmona esteve sem abrir bastante tempo porque alguém se esqueceu das necessidades fisiológicas do guarda… E, depois de um enorme trocadilho do «tinha tinha mas não tinha tinha» – e, mais adiante, «pila» que é «pilha» – três são as palavras de ordem não para uma manifestação (também podiam ser!) mas para uma dança: «merda», «porra», «chiça» (com sua licença!).
Abre o 2º acto com um viva aos soldados da paz. Proclama alguém, de seguida, que… «não é piegas!» (onde é que a gente já ouviu isto?); e que «não foi o meu pai que faltou ao emprego, foi o emprego que faltou ao meu pai». E a menina sonha vir a ser actriz de um filme pornográfico, embora não saiba lá muito bem o que isso é.
Sempre aplaudido e muito bem apresentado e coreografado o momento do fado. Há problemas de erecção num consultório; problemas entre uma tripulação no aeroporto; a Escola Ballete Russa mistura-se com as urgências do hospital («eram praí 7 e pico…!»).
Termina-se em apoteose, com um bolero no Bar Cemitério e os vampiros a aparecerem nos mais diversos domínios: Futebol, Código Penal, Saúde, Banca, Obras Públicas, Governo, FMI… Vampiros!

Um lavar d’alma
Saímos, pois, consoladinhos, de alma lavada: manteve-se a tradição; lutou-se por um ideal, gritou-se contra o tal mundo que se prometera deixar lá fora. O Teatro Gil Vicente esteve cheio: o público aplaudiu forte; e o voto é de que os aplausos continuem e tão devotada equipa não esmoreça!
Parabéns!

[Publicado no Jornal de Cascais, nº 301, 15-02-2012, p. 4].

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

A nossa costela moura

É por de mais sabido que, no âmbito dos termos concretos, muitas das palavras do nosso quotidiano radicam directamente em vocábulos árabes. Homens do deserto, habituados a olhar bem para o que estava à sua volta e a dar-lhe o nome que melhor o caracterizava, isso transmitiram às gentes com as quais entraram em contacto. Daí também a grande riqueza vocabular do Algarve e do Alentejo, onde o al ou o a iniciais disso são o reflexo mais comum: alguidar, alfinete, almocreve… E até o nosso Alportel se assinala como «a porta» de entrada para a travessia da Serra!
Temos, pois, uma costela moura vocabular.
Curioso, porém, ver como, no dia-a-dia, há estranhas formas de pronunciar as palavras que por vezes nos escapam, tão habituados estamos a ouvi-las e, até, se calhar, a dessa forma as pronunciarmos. Veja-se o caso da palavra azeitona: quantos de nós, na fala corrente em S. Brás, perguntamos: «Tem azeitonas?»? Todos? Talvez não. O mais corrente não é: «Tem zeitonas?»? Exacto: agimos de forma erudita, na fala de todos os dias, porque a palavra árabe é «zaitun»; o a inicial equivale ao artigo definido ‘a’!...
Afinal, neste, como noutros casos, a erudição saiu à rua e connosco quer continuar a conviver!

Publicado no mensário VilAdentro [S. Brás de Alportel], nº 157 (Fevereiro 2012) p. 10.

Uma trilogia a potenciar

A circunstância de aqui se ter feito referência è edição do resultado de uma investigação levada a cabo no âmbito duma disciplina universitária; de essa pesquisa visar a história de uma empresa mangualdense, a Ernesto L. Matias, Lda.; e, em terceiro lugar, de prontamente o Executivo Municipal e empresas do concelho (para além da estudada) haverem contribuído para as despesas da publicação – merece uma reflexão mais.
Na verdade, após longo tempo em que, nos trabalhos universitários, se privilegiou a teoria, o debate de questões académicas sem grande ligação à vida real, cumpre enaltecer a consciencialização de que se antevê promissora a trilogia Universidade – Autarquia – Economia local.
As empresas terão, decerto, particular interesse neste ou naquele estudo, que inclusive lhes servirá os objectivos, mais não seja que a nível de eficaz promoção da sua imagem.
As câmaras municipais e, até, as juntas de freguesia – empenhadas em dar a conhecer o respectivo património (humano, empresarial, cultural…) – poderão encaminhar essa investigação no sentido de potenciarem recursos, de manterem mais vivos os seus vetustos pergaminhos.
Quanto à Universidade, a orientação tem de ser essa, a mostrar que investigar não é encerrar-se em obscura e inacessível torre de marfim, mas sim quebrar barreiras e aproximar os estudantes da enorme diversidade de questões que diariamente a Vida nos põe e que se torna necessário enfrentar!

Publicado no quinzenário Renascimento [Mangualde], nº 587, 15-02-2012, p. 13.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

O significado do Carnaval

«Carnaval»… porquê?
Aceita-se como origem verosímil da palavra Carnaval a expressão latina Carne, vale!, que significa «Ó carne, adeus!», relacionável com o facto de, no Ocidente católico, se lhe seguirem os 40 dias da Quaresma, em que, para além de a meditação sobre o sentido da vida ser mais intensa e recomendada, também havia restrições alimentares, sendo, por exemplo, de abstinência de carne todas as sextas-feiras.
Desta sorte, como que se permitiam nesse dia – ou nesses dias, se considerarmos o aforismo popular «a vida são dois dias e o Carnaval são três!» – alguns desvios das habituais normas de comportamento social, para se expulsarem do espírito tendências eventualmente reprimidas. Daí que o artifício da máscara atrás da qual se oculta a verdadeira identidade da pessoa seja o mais natural – e cada qual se mascara, então, como quer.

Um ritual universal

De resto, a máscara sempre existiu em todas as civilizações, usada em rituais solenes, quando a identidade real do actor necessitava de se transformar aos olhos dos demais e, até, da própria divindade. Em África, na Ásia, nas Américas…
Mascaram-se os caretos de Podence, lá bem no interior de Trás-os-Montes, em Macedo de Cavaleiros, «imagens diabólicas e misteriosas que, todos os anos, desde épocas que se perdem no tempo, saem à rua nas festividades carnavalescas» – «Entrudo chocalheiro – Uma tradição ancestral»…
Ostentam vistosas máscaras donzelas, senhores e matronas, no singular Carnaval de Veneza, um dos cartazes mais pitorescos da cidade dos canais, por onde em enfeitadas gôndolas lentamente desfilam, para deleite supremo de concidadãos e de turistas…
Vive o Brasil, quer no Rio quer em Salvador e noutras cidades, um Carnaval trepidante, pleno de imaginação, rico em fantasia, numa evocação do passado, num escalpelizar do presente, num desafio ao futuro…
Criou Teodoro dos Santos, entre nós, nos anos 50, o corso carnavalesco do Estoril, atraindo à estância balnear que então se afirmava no horizonte turístico internacional vedetas do maior brilho no firmamento cinematográfico, por exemplo. E Cascais, com o apoio da Câmara, logrou ainda, durante algum tempo, manter essa tradição, hoje só assumida por Janes e Malveira (ou, se se preferir, pelas colectividades Malveira e de Janes).

Um ritual necessário
Escreve-se na página dos Caretos de Podence: «Interrompendo os longos silêncios de cada inverno, como que saindo secretos e imprevisíveis dos recantos de Podence, surgem silvando os Caretos e seus frenéticos chocalhos bem cruzados nas franjas coloridas de grossas mantas».
E aí reside o significado maior do Carnaval, herdeiro de iguais festas de que há notícia já no mundo romano. Aliás, também se lhe chama «Entrudo», que deriva do latin introitus, a “entrada" ou "começo" da primavera. Exacto, após os «longos silêncios de cada inverno», antevê-se o ressurgimento da vegetação, um novo ciclo vai começar, urge dar largas a essas pulsões que a invernia reprimira. Extravasa-se a alegria, pode mesmo exagerar-se nela, que se trata apenas de uns dias, até à serração da velha, ao enterro do bacalhau, ao queimar em purificadora fogueira de todas as nossas preocupações, dos malefícios que sobre nossas cabeças pairam, dos maus agoiros que se difundem…

Conclusão
Assume-se, pois, o Carnaval, nesta época do ano, como terapia de maleitas, tempo de exorcismo, banho purificador, alívio de pressões a gerar forças novas, a acompanhar o desabrochar vegetal, o acasalamento das espécies, o degelo das longas noites polares… Assim foi, assim será.
Não o reconhecer é demonstrar crassa ignorância acerca da história da Humanidade; é desconhecer a psicologia das multidões; é lutar – em vão! – contra um ritual firmemente entranhado na vida de todas as civilizações. É, mais uma vez, insistir em ver apenas números onde seria preferível ver também pessoas!

[Publicado no Jornal de Cascais, nº 300, 08-02-2012, p. 6].

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Andarilhanças 33

Andarilhos
Dava, na passada edição, os pêsames a D. Idalina Bernardes, pela morte do marido, e, nesta, o voto é que descanse em paz, pois não resistiu a uma queda e faleceu no passado dia 27. O lugar da Torre ficou, pois, mais pobre, nomeadamente no que respeita às suas referências pessoais que fazem a comunidade.
De facto, é, cada vez mais, em torno de um elemento que parte que volta a congregar-se a vizinhança, a tomar consciência de que, afinal, todos temos nos baús da nossa memória muitas jornadas em comum e vale a pena estreitarmos laços. Tempos são, também esses, não só de recordar outros que já partiram, os que estão doentes, sozinhos, e os que, felizmente, vão singrando na vida.
Para mim, de novo, um regresso à infância e à juventude e, nesse caso, uma consciencialização de como, na verdade, somos andarilhos, temo-lo sido sempre e não é preciso virem governantes incitar-nos a emigrar. Também do meu tempo de jovem muita gente acabou por desarvorar daqui em busca de melhor vida. Conversa puxa conversa: o António Rodrigues («Vaca Amarela»), carpinteiro, que andou pela Suíça e pelo Canadá; o Zé Brás (da Areia) que esteve na Holanda; a Rosa do Ti António Fernando, que foi para a Venezuela (era padeiro ali o marido); o Albino Ramos, que está na Pensilvânia; a Maria João, que foi para a Suécia, e o irmão dela, o Albino Angélico Boquinhas Ladino (ainda me lembro do nome dele todo!), que está no Brasil, filhos dos primeiros alentejanos a virem para aqui, o pai era caseiro na Quinta da Bicuda; a Eulália Mendonça, que está na Sérvia… Emigrações de antes do 25 de Abril, algumas agora já de volta, outras que por lá ficaram em definitivo…
Comunidades cujos elos interessa reforçar e que, decerto, com uma pontinha de esforço, somos capazes de rapidamente ultrapassar fronteiras, mormente através das redes sociais. Que para isso elas sirvam!

Iniciativas culturais
Para além da programação cultural levada a cabo pelos serviços camarários, cumpre salientar iniciativas que, pelo seu carácter de continuidade e pelas oportunidades que proporcionam, vale a pena, de quando em vez, referir.
Assim, o Clube Desportivo da Costa do Estoril, de Alapraia, realiza periodicamente saraus musicais, nomeadamente de música clássica, pois que nas suas instalações funciona uma escola de música. Realizou-se um deles na sexta-feira, 27. De quando em vez, poesia e livros. Estou a recordar, de um dos seus associados, Tito Iglesias, uma série de «prosas sobrerrealistas» (o autor acha que não deve dizer-se surrealismo…) a que deu, em livro, o nome de A desVentura de se chamar Ventura, de certo modo um eco da conhecida comédia A Importância de se Chamar Ernesto, escrita por Óscar Wilde em 1895. Detesta frases feitas e lugares-comuns e, por isso, zurze neles e em quem habitualmente os usa, num sarcástico escalpelizar da realidade. Um dos textos, por exemplo, tem por título «A lenda das sereias do Bugio, segundo o seu fabulista, o lascivo Iglesias, escritor da terceira idade (desprezível eufemismo este, verbal cirurgia plástica da decrepitude». Ora aí está!
E já que nos encontramos em meio de literaturas, louve-se, mais uma vez, o dinamismo de Jorge Castro, que teimosamente reúne, uma quinta-feira por mês, na Biblioteca de S. Domingos de Rana, uma tertúlia em torno da poesia, onde todos têm lugar e onde os nossos poetas e artistas (também lá vão cantores e tocadores de instrumentos) mostram o seu virtuosismo. Aplausos!

Centro das Artes Culinárias
Encantou-me, creio que já o disse, o Centro das Artes Culinárias, instalado no Mercado de Santa Clara, em Lisboa, ali paredes-meias com o recinto da Feira da Ladra. Já terminou a exposição sobre aprestos de cozinha, que ali se mostrou durante três meses e que foi um êxito; mas já abriu, no passado dia 27, «Errâncias no Laranjal», a ser vista até 18 de Março, todos os dias, das 10 às 17 (excepto às quartas). E outra surpresa se anuncia: a partir de 7 de Fevereiro, produtos hortofrutícolas recebidos directamente do produtor! Assim se derrota sabiamente esse papão que dá pelo nome de crise. Aconselha-se visita a http://www.centrodasartesculinarias.com/

Boavida Amaro na galeria do Casino
Parece que foi ontem e já passaram 40 anos que ali expõe pela vez primeira! Boavida Amaro volta agora à galeria do Casino: «Retorno» é o oportuno título da sua exposição, a ver pausadamente até dia 21.

[Publicado no Jornal de Cascais, nº 299, 01-02-2012, p. 10].

Porquê a história de uma empresa?

Ao ler, na passada edição, as referências ao novo livro de António Tavares, Ernesto L. Matias, Lda, talvez a alguém hajam causado perplexidade as duas linhas inseridas em subtítulo: «um futuro no passado» e «património e cultura organizacional».
Não se trata, a primeira, de um jogo de palavras, ainda que frequentemente usadas as duas em conjunto: sem passado não há futuro e entre os dois há o presente – sem dúvida, o único importante. Foca a segunda dois aspectos também muito em voga e que urge consciencializar: uma fábrica (o livro refere-se a uma fábrica de utensílios agrícolas sediada em Mangualde) tem um edifício, tem equipamento; e, para funcionar, tem pessoas, que obedecem a um esquema orgânico com vista a objectivos precisos – e isso é a «cultura organizacional», passível de se inserir no que hoje designamos de «património imaterial».
O tema do livrinho foi analisado no âmbito de um mestrado em Gestão e Programação do Património Cultural. Louve-se, pois, não só essa orientação como também as facilidades concedidas pelos proprietários da empresa, que compreenderam o significado da pesquisa e, com outras entidades do concelho, patrocinaram a edição.
Claro que estudo com estas características acarinha um outro projecto a nível geral: mostrar como são relevantes os passos de uma caminhada; e por isso se encara a criação de um núcleo museológico, embora modesto, e a organização de um arquivo que dê conta dessa «cultura organizacional». Há documentos que já não são precisos, que obedecem aos ditames burocráticos vigentes e que, portanto, não detêm interesse de maior; outros, porém, não, porque reveladores de especificidades – e estes poderão trazer luz, mais tarde, sobre como se pensava e se agia, como se resolveu determinado problema que, inclusive, pode voltar a pôr-se.
Mui ajuizadamente escreveu Anabela Guimarães, na «Nota de abertura»: fica-se mais consciente, ao ler este livrinho e outros que lhe sigam o modelo, «de uma empresa com história, de uma marca com significado, que a diferencia das demais». E acrescenta, numa observação prenhe de oportunidade: «Porque a memória traz sentires, emoções, é um silêncio que fala».

Publicado no quinzenário Renascimento [Mangualde], nº 586, 01-02-2012, p. 13.