sábado, 25 de fevereiro de 2012

Bartolomeu Valentini - uma vida ao serviço da comunidade

A implacável coluna do deve e do haver
Poderá estranhar-se se volto a dedicar uma crónica a uma pessoa e, sobretudo, por se tratar de um sacerdote católico. Que me seja perdoada a ousadia; no entanto, cada vez que sinto estarmos num mundo em que as pessoas enquanto tais não são tidas em consideração, porque para os poderes que mandam neste mundo o que contam são as colunas do deve e do haver, maís necessidade sinto, como cidadão e como jornalista, de chamar a atenção para o facto de que, por detrás dessas colunas, estão pessoas!
Quando ouvi, no sábado, o presidente da Câmara de Torres Vedras explicar que investira no seu Carnaval tantos mil euros e com isso ia arrecadar uns milhões, mais uma vez tive pena de quem, por obediência a esquemas economicistas lineares, não tem em conta a pessoa humana e desconhece a História!
Por isso, dedico hoje umas palavras ao Padre Bartolomeu Valentini.

Um andarilho
Se a esta ‘coluna’ dei o nome de andarilhanças, porque, no fundo, sempre me deu na real gana andar de um lado para o lado sem obediência a esquemas rígidos nem a dogmáticos catecismos, a vida do Padre Valentini cabe aqui de pleno direito.

Nascido a 9 de Novembro de 1912 em Trento, na Itália, ingressou na Sociedade Salesiana, uma congregação religiosa fundada por S. João Bosco, em Turim, na 2ª metade do século XIX, em plena época da Revolução Industrial, para dar ocupação e horizontes às centenas de pés-descalços que, já nessa altura, pululavam nos arredores das cidades. A ideia de D. Bosco foi desde logo ensinar artes e ofícios e, através da alegria e da sadia ocupação dos tempos livres, preparar um futuro para quem, amiúde, não tinha um naco de pão. Bartolomeu Valentini abraçou essa vocação e, aos 19 anos, foi enviado para Portugal, mais concretamente para Poiares da Régua, onde tinha sido aberta uma das primeiras casas salesianas, justamente para formar os obreiros dessa missão. Foram, na verdade, italianos, como era natural, os primeiros salesianos que vieram para o nosso País.

Artes e ofícios
Exerceu em Poiares, no recôndito Trás-os-Montes, as funções de assistente, período intermediário, na sua formação, entre os estudos filosóficos e os teológicos, que desembocariam, em 1938, na ordenação sacerdotal. É colocado então nas Oficinas de S. José, em Lisboa, escola assim designada precisamente porque visava facultar ensino técnico aos jovens desvalidos da capital, ali na zona dos Prazeres, onde ainda hoje se encontra. Foram as Oficinas de S. José o principal alfobre, por exemplo, de tipógrafos de Portugal.
Daí parte para Vila do Conde, uma escola dependente dos Serviços Tutelares de Menores. Aí se recuperavam os jovens através do ensino das artes gráficas. Em 1945, colabora, no Instituto Missionário de Mogofores (Anadia), na instalação do Noviciado, fase de inserção do futuro salesiano na vida da congregação.
De 1946 a 1952, vemo-lo no Asilo de Santo António do Estoril, onde dirige importantes obras de remodelação das instalações para as adaptar às funções do que viria a ser, daí a pouco, a Escola Técnica e Liceal Salesiana. Daí que, a 29 de Maio de 1982, por ocasião do 50º aniversário da Escola, os Antigos Alunos tenham feito questão em que fosse ele a descerrar a placa comemorativa.
Em 1952, fica em Manique, onde preside à construção da capela do então Instituto Missionário Salesiano, a casa de formação com Noviciado e Curso de Filosofia.
De 1953 a 1962, é o grande obreiro da Escola de Artes e Ofícios do Funchal. Em 1962-1963 está de novo no Estoril, como orientador espiritual. Seguem-se estadas nas casas salesianas de Lisboa e de Moçambique (onde os Salesianos haviam erguido grande obra escolar na Namaacha). De 1975 a 1990, vai novamente para o Funchal, agora para superintender à construção do pavilhão desportivo (sempre os Salesianos deram ao desporto uma importância fundamental como apoio na formação dos jovens).
E é só em 1993 que recolhe a Manique, para passar serenamente os últimos anos de vida. Apesar de naturalmente afastado da vida activa da Escola, sempre se interessou pelo caminho que ela estava a seguir e regozijou-se, por exemplo, com a possibilidade de nela se ter construído uma piscina, para mais adequadamente se dar aos jovens o complemento formativo de que necessitavam.

Serenidade
Falei com o Padre Valentini pela última vez a 20 de Setembro de 2008. Em cadeira de rodas já então, impressionou-me a sua enorme serenidade; a lucidez com que me contou, nesses breves minutos em que estivemos juntos, o que fora a sua actividade no Estoril, as lutas que tivera de travar para obter dos benfeitores locais verbas para levar a cabo a construção que se propusera. Senti claramente estar diante de alguém que – como se diz nas Escrituras – tem a sensação clara de que «combateu o bom combate» e que tudo fez, na medida das suas possibilidades, para trazer ao mundo dos jovens e dos que com os jovens mais de perto lidam aquele espírito que D. Bosco soubera incutir nos seus discípulos.

Exéquias e memória
Faleceu no passado dia 12, na Escola Salesiana de Manique, no seu 100º ano de vida.
Presididas pelo Provincial, Padre Artur Pereira, as exéquias foram celebradas por mais de uma vintena de padres salesianos vindos das casas de todo o País.
O Director, Padre David Bernardo, evocou sentidamente os últimos tempos da vida do Padre Valentini: «Não me falta nada; as pessoas são fantásticas, que mais quero?», dizia. Salientou o seu grande desprendimento nesta terra que adoptou como sua; a visão de futuro que sempre o acompanhou; a sua extrema sensibilidade – sabia sempre agradecer! Quando lhe foi administrada a Extrema-unção, chamou os Irmãos, despediu-se deles, agradecendo-lhes e pedindo desculpa por aquilo que, ao longo da sua vida, pudesse ter feito menos bem.
Ficou sepultado no cemitério da Galiza, onde jazem, aliás, muitos dos salesianos que deixaram marca indelével na juventude da linha de Cascais, mormente em meados do século passado. Refere-se amiúde que é Cascais um dos concelhos mais salesianos de Portugal. Na verdade, rara será a família que não teve ou não tem um elemento seu a estudar numa das escolas que os Salesianos ou as Filhas de Maria Auxiliadora (o ramo feminino da congregação) dirigem neste concelho.

[Publicado no Jornal de Cascais, nº 302, 22-02-2012, p. 4].

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