terça-feira, 28 de abril de 2015

Atamancar paparrioca

            Que tempo aborrecido este, de morrinha, embrulhado, não chove nem faz sol, que nos deixa a todos meio azamboados, tontos…
            E, depois, logo de manhã, pão fresco não o havia, o leite já nem tem aquele sabor d’outrora, quando uma pessoa descia ao estábulo e mungia a vaca, aquilo é que era uma delícia, quentinho e cremoso, ao natural!… A força daquele pequeno-almoço bom!...
            Até para as crianças, não havendo o que chamam de ‘cereais’, lá a velhota – os pais partiram cedo para o trabalho ou à procura dele!... – atamancava qualquer coisa, uma paparrioca qualquer para lhes aquecer o estômago…
            Fiquei a pensar no que o Ti Manel Zé me dissera, cofiando o bigode farto e tisnado, de queixo sobre as mãos que o luzidio cajado aguentava.
            ‘Atamancar’ percebi e gostei do significado: tamanco é calçado singelo, sem esquisitices… ‘Atamancar’ contém, pois, essa ideia de expediente a que se lança mão para resolver situação urgente. Logo se busca um calçadinho melhor!...
            Agora do que gostei mesmo foi da… ‘paparrioca’! Deturpação, sem dúvida, na oralidade quotidiana, de «paparoca», a implicar, porém, significativo pendor sarcástico, quase deliquescente… como se o pretenso acepipe tivesse recebido água a mais…

                                                                                  José d’Encarnação

Publicado em VilAdentro [S. Brás de Alportel] nº 196, Maio de 2015, p. 10.

domingo, 26 de abril de 2015

Ó bispo, o que é que te aquece o coração?

             D. Joaquim Mendes, bispo auxiliar de Lisboa, visitou, no passado dia 20, a Residência Sénior Prof. Dr Ofélia Leite Ribeiro, em Alcoitão, instituição gerida pela Santa Casa da Misericórdia de Cascais.
            Foi recebido pela Provedora, Dra. Isabel Miguéns, que se encontrava acompanhada por elementos dos corpos sociais da Santa Casa e dos responsáveis por aquele estabelecimento. Houve tempo para larga troca de impressões acerca da actividade que a Santa Casa tem entre mãos, sublinhando-se os objectivos atingidos e as dificuldades por que ora se está a passar devido, sobretudo, à cada vez maior falta de recursos das famílias e ao atraso verificado na entrega dos apoios oficiais.
            Juntaram-se ao informal grupo de trabalho Pedro Mota Soares, Ministro dos Ministro da Solidariedade, do Emprego e da Segurança Social, que mais uma vez se inteirou do trabalho que ali está a ser desenvolvido, assim como o prior de Alcabideche, Padre Luís Fialho de Almeida.
            Celebrou D. Joaquim Mendes a Santa Missa na capela da Residência, juntamente com o prior. E teve, à homilia, palavras de conforto e de esperança para quantos participaram na cerimónia. Registe-se, por exemplo, o seu apelo a que, no dia-a-dia, se dê maior atenção aos múltiplos sinais que a vida nos proporciona e a que, por andarmos sempre numa correria, acabamos amiúde por não ligar – e eles são bem importantes de todos os pontos de vista e não exclusivamente no âmbito religioso. «Urge fazer uma pedagogia dos sinais!», disse. Contou ainda que, numa das visitas pastorais em que mui gostosamente se desdobra pela diocese, uma criança lhe perguntou:
            Ó bispo, o que é que te aquece o coração?
            Não era fácil nem instantânea a resposta; mas D. Joaquim rapidamente a encontrou:
            O amor de Deus!
            Seguiu-se um almoço para confraternização e continuação de partilha de experiências, findo o qual se fez a visita às instalações.
            Como é sabido, as Misericórdias estão na directa dependência do Bispo da diocese em que se localizam, de modo que esta foi fundamentalmente uma visita de reconhecimento e de trabalho.

                                                                              José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, edição de 25-04-2015:
http://www.cyberjornal.net/index.php?option=com_content&amp%3Bview=article&amp%3Bid=1460%3Ao-bispo-o-que-e-que-te-aquece-o-coracao&amp%3Bcatid=89%3Asolidariedade&amp%3BItemid=85#.VTvv0val9DY.facebook

sexta-feira, 24 de abril de 2015

A turbulência na Academia foi explicada!

            Na presença de meia centena de amigos do autor e no vetusto aconchego dos baixos abobadados da centenária Livraria Ferin (desde 1840, na Lisboa pombalina!...), foi apresentado, ao final da tarde de quinta-feira, 23, Dia Mundial do Livro, o mais recente romance de Júlio Conrado: Turbulência na Academia do Amor.
            João Paulo Dias Pinheiro, em nome desta livraria resistente numa Baixa «desertificada», deu as boas-vindas e regozijou-se por a apresentação coincidir com um dia em que, pela Baixa, se espalharam bancadas a incitar à leitura. Baptista Lopes, em nome da editora, Âncora, saudou os autores presentes e disse do seu agrado em poder continuar a ser editor em época de tamanhas resistências.
            A escritora Teolinda Gersão fez a apresentação. O leitor, sublinhou desde logo, ficará admirado com este livro-surpresa, pelas múltiplas pistas que sugere, pela multiplicidade de personagens (de repente, entra um de quem não estávamos à espera e ganha posição no palco…), pelo «muito que deixa à imaginação» de quem ler. Um retrato de muitas entidades nossas contemporâneas, amiúde ‘vespeiros de intrigas’: empresas, bancos, governos (as teias de que os governos se entretecem…), as reuniões dos ‘grupos de trabalho’ (p. 123-133)... A realidade de mãos dadas com a ficção. Mais do que um narrador e mais do que um estilo. No enredo, começa-se, por exemplo, a ler um livro e depois ele fica a meio. A ironia sempre presente, assim como o lado rocambolesco e até grotesco das histórias. Todas as histórias do livro são – como o próprio título preconiza – histórias de amor; o autor nunca é romântico, acredita no amor, mas…
            A apresentadora traçou uma panorâmica do enredo e mostrou, inclusive, o seu agrado por não ter sido escrito em obediência ao chamado «Novo Acordo Ortográfico» – o que lhe emprestou ainda maior encanto.
 
As personagens existem!
            Júlio Conrado não se limitou aos agradecimentos formais. Quis informar da existência real de três personagens cujas histórias de vida foram por ele incluídas nesta Turbulência: um juiz desembargador, que não pôde estar presente; Diana Duarte Gomes, nadadora que, aos 14 anos, bateu todos os recordes (que ainda mantém) e foi, nos Jogos Olímpicos de Atenas, a mais jovem atleta portuguesa olímpica de sempre, que ali se sentou, ao lado de Teolinda; João Orlando dos Santos Martinho, o contabilista que viveu no Brasil dos 18 aos 28 anos e que apertou a mão a Che Guevara, conviveu com o arquitecto Oscar Niemeyer, assistiu ao lançamento da 1ª pedra de Brasília… e o mais que se lerá! O Amigo também lá esteve!
            Explicou o Autor: homenagem minha, portanto, à Justiça e ao Direito, ao Desporto (através de uma notável figura da natação, hoje arquitecta e empresária), à odisseia da diáspora que foi – e é tributo a pagar por muitos portugueses.
            Terminou com palavras de reconhecimento ao editor, aos presentes, à família. E anunciou que, na abertura da temporada teatral, vai passar a ser também dramaturgo, pois o Teatro Experimental de Cascais tem na programação levar à cena o seu livro O Corno de Oiro.

            Bebi um cálice de porto; saboreei apropriado mil-folhas (era o Dia Mundial do Livro!...); deitei um olhar arqueológico às seculares arcarias pétreas; e, à saída, regalei-me com os letreiros em língua francesa (atelier de reliure, imagine-se!). E vim de alma lavada!
 
                                                                  José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, edição de 24-04-2015:



 

O grande sentido da vida é vivê-la

             Confesso o meu fracasso: não consegui ler mais do que as duas primeiras páginas do ensaio «Estética do guardar-como», assinado por Domingo Hernández Sánchez, docente na Universidade de Salamanca, incluído a páginas 221-235 do número 11/12 (2012), da «revista de comunicação e cultura» Caleidoscópio, que é editada pelo Departamento de Ciências da Comunicação, Artes e Tecnologias da Informação, da Universidade Lusófona.
            Ao folhear a revista, especialmente dedicada a Carl Einstein (1885-1940), conhecido crítico de arte, chamou-me a atenção o inusitado do título do ensaio, decerto porque «guardar ou não guardar» constitui uma das questões mais frequentes no meu dia-a-dia e, por outro lado, optando eu por «guardar», importa sempre saber como o vou fazer, para que facilmente esteja disponível quando disso eu precisar. Criamos inúmeras «pastas» no computador, mas com frequência acabamos por não saber onde é que está isto ou aquilo e lá temos de lhe dar duas ou três pistas a fim de que o seu cérebro o encontre.
            Outro chamariz houve no texto: em itálico, frases e palavras como Dicionário das Ideias Feitas (um livro de Flaubert), copiar, ideias recebidas, a culminar, porventura, na afirmação «a nossa cultura actual é uma cultura da cópia». Já explico porquê, porque, antes, importa esclarecer porque fracassei: foi porque o texto do professor documenta às mil maravilhas o que, eventualmente, pretenderá criticar, pois não há parágrafo que não tenha a reprodução da frase de alguém. Mesmo a afirmação da «cultura da cópia» é retirada de La Cultura de la Copia. Parecidos sorprendentes, facsimiles insólitos, título de um livro de Henry Schwartz. Não resisti a estar constantemente a ter de ir ver as notas para saber donde é que a frase fora retirada e, além disso, acabei por não saber, três páginas lidas, que haveria de novo nessa enorme recolha de citações. Erro meu, claro, que sempre me considerei terra-a-terra, avesso a elucubrações – e peço desculpa por isso.
            Interessou-me, todavia, saber desse dicionário de Gustavo Flaubert, que se destinava, segundo o próprio autor, a reunir, por ordem alfabética, «tudo o que há que dizer em sociedade para se ser um homem decente e amável sobre todos os temas possíveis» (ibidem, p. 221). Boa ideia!
            E recordei de imediato duas das iniciativas de Celestino Costa, a que a editora Apenas Livros dera a mão: Dos Outros para mim (2014), colectânea de frases de homens célebres, livro de cabeceira a consultar «naqueles derradeiros minutos de vigília quotidiana», como tive ensejo de escrever, no prefácio; e Contos Recontados (2015), a recolha de casos divertidos retirados das biografias de ilustres, «que paulatinamente foi copiando, qual solitário monge em mui recatada cela…».
            Confidenciava-me o autor: estou mesmo no fim da vida, já nada faço de novo, limito-me a copiar o que outros fizeram…
            É curioso: longa caminhada feita, atingido o destino fixado, não deixa de ser aliciante olhar para trás, anotar o caminho percorrido, as peripécias passadas, os medos e as alegrias… «Experiência» assim cabalmente se designa o que a vida ensinou. E, ao que consta, será essa uma das grandes distinções a caracterizar o ser humano: a capacidade que tem de aprender e, sobretudo, de transmitir aos outros o que acaba de aprender.
            Frequentemente referia aos meus estudantes: Ora aí têm! Eu, com 40 anos, com 50 anos, com 60 anos, só agora é que tomei consciência desta situação e da forma mais correcta de a aproveitar; vocês têm 20 e já ficam com o meu testemunho; podem aproveitá-lo ou não, é decisão que lhes compete, a mim aquela de, como docente, a partilhar.
            Alguém, outro dia, referindo-se ao comentário jocoso de um veterano, escreveu ao amigo: «Eu fui ver e acho que a opinião está fora do contexto (sem comentários para quem se acha professor de todos)».
            Esse – suponho que jovem – ‘acha’ muito; oxalá continue a achar, porque significará que adoptou uma consciente atitude de pesquisa! Decerto, porém, não cairá na asneira de seguir carreira de professor, porque, se a seguisse por vocação, bem depressa compreenderia essa natural característica do homem para a partilha da experiência adquirida, sabe-se lá (quanta vez!) à custa de árdua procura e muita reflexão!
            Encanta-me recortar dos livros – mesmo dos de ficção – aquelas frases lapidares, diria que esculturalmente bem buriladas, que retratam um estado de alma e que pululam hoje nos sítios da Internet sob o título «as frases de…». Cristalizam uma ideia, um lema de acção, um sentimento único. Assim como o instantâneo captado pelo pintor ou pela objectiva do fotógrafo – e que, de seguida, o não guardam para si e no-lo disponibilizam. Do livro «O Segredo Perdido», de Júlia Nery, guardei, por exemplo, entre muitas outras: «Lisboa depressa odeia os que muito aclama»; e: «Aprendi que o grande sentido da vida é vivê-la».
            Esses, também, grandes segredos a partilhar!
                                                                            José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol – Jornal Regional dos Concelhos de Oeiras e Cascais, nº 89, 22-04-2015, p. 6.

 

 

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Faleceu padre salesiano, com a provecta idade de 103 anos!

            Encontrava-se na Residência B. Artémides Zatti, anexa à Escola Salesiana de Manique, o Padre Manuel Geraldo Gonçalves, que faleceu na passada terça-feira, 14, no Hospital de Cascais, com a provecta idade de 103 anos.
            Celebraram-se, no dia seguinte, na capela da escola, as exéquias fúnebres, com a presença de irmãos das várias comunidades salesianas, seguindo-se o funeral para o cemitério da Galiza.
            O Padre Manuel Geraldo fez a profissão religiosa em 1934, entrando assim para a Congregação Salesiana e foi ordenado sacerdote em 1943.
            Partiu em 1955, como missionário, para Moçambique, onde permaneceu até 1974, desenvolvendo aí intensa, variada e prestigiada actividade pastoral e organizativa, afirmando, dessa forma, a presença salesiana.
            Recorde-se que, além das escolas que asseguram no continente, os Salesianos alargaram a sua acção educativa e missionária à Madeira (Escola de Artes e Ofícios do Funchal), a Cabo Verde, a Moçambique, Goa, Macau e Timor. Neste último território realcem-se as figuras de D. Ximenes Belo, bispo salesiano, e Xanana Gusmão, antigo aluno. Em Moçambique, a actividade – a que esteve intimamente ligada a figura do Padre Geraldo ora falecido – foi (e continua a ser!) a todos os títulos meritória, mormente no apoio à juventude carenciada, bem como à população em geral. Seguindo as pisadas do seu fundador, S. João Bosco, os Salesianos foram pioneiros na criação e manutenção de escolas de ensino técnico-profissional.
            À família salesiana enlutada apresentam-se os mais sentidos pêsames, na certeza de que são exemplos de dedicação ao próximo como o que o Padre Geraldo legou que continuarão a ser fortes testemunhos para todas as gerações.
            As fotos que ilustram este apontamento foram gentilmente cedidas pelos serviços de Relações Públicas da Congregação. Bem hajam! Ilustram um instantâneo da vida missionária do venerando sacerdote e um outro da comemoração do seu centenário, na comunidade de Manique.

                                             José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, edição de 16-04-2015:

A pétala que na página se guarda

            Tempos houve em que pegávamos na perfumada pétala rosada e delicadamente a guardávamos no livro de cabeceira, na vontade de assim perpetuarmos doce lembrança. E quando, antes de adormecer, lemos mais umas linhas, daquelas que nos alimentam a alma, amiúde a pétala nos sorri.
            Essa, a primeira imagem que me ocorreu quando aceitei de bom grado o pedido da comissão organizadora da homenagem a Helena Frade para organizar este opúsculo e alinhavar sobre a Amiga um depoimento. Decerto muitos outros amigos quereriam estar aqui presentes; estes foram, porém, aqueles de que nos lembrámos agora – e peço desculpa pelos naturais esquecimentos. Assevero, porém, que tenho a mais funda convicção de que todos se irmanariam também não apenas em mostrar a pétala religiosamente guardada, mas, de modo especial, em prontamente colaborar na vistosa composição de mui sentido ramalhete que nestas páginas se ostenta.
            Quando nos apercebemos de que, embora lindas, as flores murcham, rápidas, sobre a terra fresca da sepultura, olhamos para o canteiro e pedimos-lhe que perpetue na pedra uma grinalda, um botão, uma coroa – que eternidade exigimos na dor e na ternura!... Um livrinho como este, ainda que de modestas proporções, é grinalda esculpida, botão sempre viçoso, precioso escaninho de saudade…
            Nunca chegaste a ser, oficialmente, minha aluna; contudo, ao recordar os meus primeiros tempos em que, na mesa grande do Instituto de Arqueologia, nos ‘fundos’ da Faculdade, todos nos sentávamos, docentes e estudantes, numa partilha de conhecimentos, de conversas, de vidas, a imagem da Lena Pequena e da Lena Grande surge de imediato.
            Não andarei longe da verdade se disser que, ali, nessa segunda metade da década de 70 do século XX, também encetámos uma revolução no relacionamento mais próximo entre docentes e estudantes. Aliás, tivera eu a dita de ir leccionar a alunos que eram quase da minha idade, alguns, já, como eu, pais de filhos e filhos da mesma idade dos meus. E o entusiasmo pela História Antiga, pela Arqueologia, pela Epigrafia (que então passara a ter, por mui lúcida proposta do Doutor Alarcão o estatuto de disciplina anual). E também tu, Leninha, ainda que não aluna, por essas ‘pedras com letras’ te acabarias por deixar seduzir e, assim que o Ficheiro Epigráfico surgiu, lá veio o teu artigo, em 1982, logo no nº 2, sobre uma estela funerária do Crato. Foi o teu primeiro artigo em letra de forma, não foi?
            Recordo o entusiasmo com que aí, no Crato, a terra natal do Zé Carlos, te entregaste à escavação da necrópole da Lage do Ouro, um trabalho modelar, a ombrear com o que, anos antes, a equipa do Instituto levara a cabo em Santo André (Montargil)… Lembro-me quanto admirei a minúcia como tudo nos apresentaram e as conclusões inovadoras que daí foi possível retirar. E logo o Zé Carlos se revelou aquele ‘menino’ de um rigor no desenho e no trabalho. Estavam, também nessa atitude científica, irmanados por completo. Tornaram-se autores de referência obrigatória no que concerne às práticas funerárias romanas.
            Como técnica do Serviço Regional de Arqueologia da Zona Centro, demandaste, com José Beleza Moreira, S. Pedro do Sul. As termas. E – como não podia deixar de ser – toda a problemática do aproveitamento das águas termais ao longo dos tempos te seduziu. E, mais uma vez, o teu nome passou a referência a nível peninsular (e não só), de modo que foste convidada a ser a representante portuguesa no grupo de peritos que por essas questões expressamente se interessava: o Grupo de Trabajo ATA – Atlas de Termalismo Antiguo, com sede em Madrid.
            Com Clara Portas foste para Bobadela – e correu mundo a descoberta do anfiteatro! E integraste, por via disso, o Réseau Européen des Lieux Antiques de Spectacle. Demandaste Centum Cellas – e as reflexões que o teu meticuloso labor determinou geraram mui proveitosa polémica. Ah! E o extraordinário altar erigido pela civitas Cobelcorum ao deus maior dos Romanos, que permitiu (além de a vossa cadela ter sido «Cobelca»…) fazer jorrar inesperada luz sobre o que se (des)conhecia acerca das organizações pré-romanas dessa Beira Interior?!... E o excitante lararium, ainda de Centum Cellas?!...
            Não hesitei, pois, em propor a Attilio Mastino que te convidasse a participar em Cartago, no XI Convegno Internazionale di Studi L’Africa Romana, cujo tema era "La scienza e le tecniche nel Mediterraneo classico", e tu apresentaste aí uma comunicação, que foi muito bem acolhida, sobre técnicas construtivas de monumentos da Lusitânia. Ana e eu e Catarina Leal bem recordamos esses dias de Dezembro de 1994 e as singulares peripécias nas lojas de Sidi-Bou-Saïd!...
            Entretanto, viera – muito antes!... – a experiência ímpar de S. Cucufate, a grande Escola que nos foi proporcionada no fim da década de 70 e primeira metade dos anos 80. Escola de Arqueologia, escola de Vida, alfobre de cumplicidades que fomos mantendo vida afora! S. Cucufate, também esses uns Verões que jamais se esquecem. E eu, que fazia de vez em quando o caderno de campo com Françoise Mayet, posso atestar quanto eras rigorosa na metodologia seguida, minuciosamente anotando tudo, mesmo que não fosse romano, porque sabias que um sítio tem um antes e tem um depois…. E viviam-se em comum praticamente as 24 horas do dia. Por vezes, após a quente jornada, a caneca de ‘saboroso néctar’ a escorrer das grandes talhas, na adega dos irmãos Parreira, em Vila de Frades, com um bom naco de queijo e aquele pão que não nos cansávamos de saborear! Ah! Fresquinho Vidigueira de tom levemente rosado!... Sabes, Lena, ainda guardo o papelito de rascunho em que o Chefe anotou a «Constituição da equipe portuguesa» em 1981: lá vem o teu nome, com a indicação «professora do ensino secundário»!
            Visitámos-te no hospital aquando da última operação a que tiveste de ser submetida. Desses momentos, recordo a tua vontade de aproveitar o tempo, de «dar a volta por cima». Senti que, vinda a forçada aposentação, haveria necessidade de maior ânimo ainda para reformulares o dia-a-dia, sem o aguilhão dos processos, dos pareceres, das reuniões, das ‘inspecções’ em que as horas se esgotavam e te esgotavam, impedindo a dedicação a uma investigação a que mais gostarias de te entregar.
            Assim não aconteceu, Lena! E partiste mais cedo do que todos esperávamos. Sugeriu Escrivá de Balaguer: «Que a tua vida não seja uma vida estéril. Sê útil. Deixa rasto». Descansa em paz, Lena: a tua vida não foi estéril! Foste útil, deixaste rasto! E nós vamos sempre recordar as tuas inconfundíveis gargalhadas, assim como – desculpa lá, mas isso também é bom!... – as alfinetadas que não hesitavas em dar! Alfinetadas e gargalhadas tudo fazia parte de uma vida, que foi curta, bem no sabemos, mas… deixou rasto!
José d'Encarnação
in ENCARNAÇÃO (José d') [coord.], Helena Frade, Sociedade dos Amigos do Museu de Francisco Tavares Proença Jr., Castelo Branco, 2015, p. 20-22.

Então, vá!

             Ao analisar uma dissertação de doutoramento, encontrei, entre outras de idêntico teor, esta frase, que vem na sequência da opinião de que não se deve considerar o aspecto físico da sepultura para daí tirar garantidas conclusões acerca de quem nela está sepultado. De facto, amiúde não há testamento nesse sentido e o monumento funerário é o resultado das intenções da família. Isso quis dizer o autor da dissertação ao escrever:
            «… O que pode dar uma imagem errada do estatuto social dos cadáveres, pois muitos tornavam-se na morte aquilo que não foram em vida».
            «Quis dizer» mas, lendo melhor, é bem provável que não tenha dito. Primeiro, porque o estatuto social do cadáver é… ser cadáver e daí não podemos sair. E que os cadáveres se tenham tornado na morte aquilo que não foram em vida é, no mínimo, estranho, porque não há cadáveres vivos, quanto se saiba!... Em sentido real, entenda-se, porque no figurado até parece que – feliz ou infelizmente – andarão por aí bastantes!...
            Claro, o autor queria referir-se era aos mortos, aos indivíduos e não aos seus cadáveres! E aí tem razão: há pessoas que a morte vem transformar! Já lá dizia Celestino Costa, num dos seus poemas: «Prós poetas, Pátria querida / És madrasta toda a vida / Só és mãe depois da morte!». E com frequência se observa: «Olha, aquele foi preciso morrer para lhe darem importância!». Por isso, Herberto Hélder, recentemente falecido, sempre disse que não queria louvores em vida nem depois de morto!...
            Este caso levou-me, contudo, a reflectir sobre o facto de tantas vezes usarmos expressões sem sentido. Já não me refiro ao ããã… que antecede tantas frases e que só sai porque a boca está aberta. E admiro-me como, em televisão e rádio, isso não seja insistentemente corrigido, porque, além de nada significar, incomoda!
            Coligi, duma assentada:
            «A colectividade tinha uma sede e mais não sei o quê!»
            «Não sei se estás a ver…»
            «Dá-me aí o coiso!»
            «Então, vá!»
            Todas elas são uma maravilha, a denotar grande falta de rigor do pensamento e imprecisão vocabular. Agora, o «então, vá!» com que se terminam tantas conversas é, para mim, o máximo!... Então… vá! Vá para onde, senhores? Não estão a mandar o interlocutor a nenhum sítio esquisito, ora não?

                                                                                  José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde). nº 660, 15-04-2015, p. 12.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Ena, pá! Tanta foto!

            Só uma daquelas sessões propensas a desfiles e apresentação de farpelas novas por parte de muitas estrelas da sociedade e muitos fotógrafos a disparar para as revistas da society (desculpem, aqui tem de ser, eu não poderia usar o corriqueiro ‘sociedade’, acham?!...), só aí é que se poderão contar mais fotografias do que na Ceia Medieval do passado dia 8, no Grupo Recreativo e Dramático 1º de Maio, de Tires! Tudo quanto era máquina e telemóvel, do mais simples ao mais sofisticado (que dão por aqueles nomes estranhos…), tudo fotografava, minha gente!
            E porquê?
            Porque a Organização achou – e muito bem! – que ceia medieval, para o ser, tinha de o ser a preceito e, vai daí, todos os convivas haviam de enfarpelar-se! Ele foi, pois, uma mão-cheia de pajens, de fidalgos, de princesas, de cavaleiros, de causídicos, de cirurgiões, de frades… Espera lá! Não vi ninguém vestido de bobo! Pois não havia bobo enfarpelado, não, senhor! Mas todos quisemos pousar para as sedentas objectivas, que é uma vez na vida que a gente regressa assim aos tempos dos nossos reis!...
            Uma sala cheia! Uma animação! E o arauto cedo nos esclareceu estarmos ali, porque el-rei D. Fernando, de mui saudosa memória, por carta de 8 de Abril de 1470 (ponho já a era cristã, para não lançar a confusão!), ou seja, há 645 anos, cedeu Cascais a Gomes Lourenço do Avelar e teve o cuidado de bem esclarecer na carta quais eram os limites do que lhe dava. Trata-se, pois, do 1º documento oficial em que se declarou, o preto no branco, que o território hoje de S. Domingos de Rana ficava integrado no concelho de Cascais. E este passará a ser o dia oficial da freguesia!
            Aproveitou-se o ensejo, quase em jeito de entremez (salvo seja!), para a senhora presidente da Junta de Freguesia, «alcaide-mor deste dominicano castelo» (digo eu!), dizer de sua justiça e mostrar quão empenhada está em fazer o que el-rei há tanto tempo mandara: pelejar sem descanso pelo bem-estar das suas gentes! Ao que outro alcaide-mor, o do concelho, também ele vestido a rigor, garantiu que assim se fazia e se faria, pelo que dele dependesse, até porque desse termo era nado e criado!
            E como – lá dizia a carta régia – é «apanágio da nobreza e alteza dos reis e dos príncipes remunerar e galardoar aqueles que bem servem», ali mesmo foram galardoadas pessoas e entidades que, nos mais diversos domínios da actividade (inclusive do «empreendedorismo», vocábulo nada medieval que muito entaramelou – e tem razão! – a língua do arauto!...), se haviam distinguido a bem do Povo!
            Comeu-se em loiça de barro da Taberna do Rei, como convinha; saborearam-se uns nacos de pernil, uma açorda de javali, panito acabado de fazer e escorropicharam-se pichéis de bem apaladado tinto.
            Numa peça de teatro, uns senhores de mau agoiro vieram recordar-nos que rico ou pobre, fidalgo ou monge, homem ou mulher, parvo ou assisado, a todos, um dia, há uns esbirros que, a mando de tenebrosa senhora, os vêm buscar – e aí todos se igualam! Alembrou-me o Gil Vicente, ainda que este medieval não fosse, mas andava lá perto nos seus autos! Houve danças e a Senhora anfitriã fez questão em vir cumprimentar os comensais e…
            … para o fim-de-semana, a festa promete continuar na Feira Medieval!

                               José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, edição de 09-04-2015:


 

 

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Memórias do Casino vão agora reviver!

            Rodeado por todo o elenco d’A Noite das Mil Estrelas, Filipe La Féria manifestou o seu contentamento por voltar ao Casino Estoril, na conferência de imprensa que serviu, ao final da tarde do dia 7, para apresentar o novo espectáculo a servir no Salão Preto e Prata, com estreia no dia 9, e depois semanalmente, de quinta a sábado, às 21.30 h., tendo, aos sábados e domingos, uma sessão às 17 horas.
            Estava francamente satisfeito por recordar o que foi o passado desta casa e as «mil estrelas» que por aqui passaram desde os tempos do senhor Teodoro dos Santos até mui recentemente, quando o Casino era o palco invejado de todas as estrelas do music hall internacional. Poucas terão sido, de facto, as que por aqui não passaram e não arrecadaram triunfos. Filipe La Féria evocou também as imagens que guardava da sua infância: a girafa do Dali em tempo de animado corso carnavalesco, por exemplo.
            O certo é que, garantiu-nos, a sua gente – também todos eles visivelmente deslumbrados com a nova oportunidade que iam ter e, além disso, vestidos a rigor, para ‘revista’ ver e futuros espectadores apreciarem!... – a sua gente vai fazer reviver esses grandes nomes com uma maestria sem igual. Conhecendo nós como conhecemos o rigor de La Féria e o profissionalismo de uma Alexandra (oh! a Alexandra!), de um Gonçalo Salgueiro, da Vanessa, do Pedro Bargado, do Rui Andrade, do David Ripado, da Dora (pois, da Dora!), do João Frizza, da Cláudia Soares, da Catarina Mouro e da Inês Herédia, estamos bem cientes de que nos vão, sem dúvida, encantar.
            Marco Mercier desenhou as coreografias; Mestre José Costa Reis esmerou-se nos figurinos, que muito gozo lhe deram criar. E, aliás, também agradaram sobremaneira aos intérpretes, pois vários deles (sobretudo elas!) não hesitaram em apresentar-se já com a imagem que deles o programa mostra.
            Prometido está que o glamour vai voltar ao Salão Preto e Prata. Sim, tive de escrever glamour, que é a palavra que melhor se entende nestas andanças. Porque embora o Dicionário da Academia nos diga que é anglicismo a substituir por encanto, eu acho que, também neste caso, «encanto» é pouco e «sedução» é susceptível de nos levar a pensar noutras coisas… E glamour é assim como que uma sensação boa, «está-se bem», a melodia agrada-me, a vista regala-se, a emoção desabrocha e o pensamento voa!...
            Foi glamorosa a apresentação, com as tasquinhas de «comida de rua» por fundo, e viemos de lá com uma vontade danada de ir reviver as noites grandes d’outrora!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, edição de 08-04-2015:

As dificuldades do aprender português

             Pasmei, a 14 de Março passado, quando, no Castro de S. Lourenço (Vila Chã – Esposende), vi dois painéis explicativos. Num, o título era ‘setor’; noutro, ‘sector’. No primeiro, o texto era em língua portuguesa; no segundo, em inglês. Nunca como nesse momento me apercebera do disparate que é – em minha opinião, de septuagenário, entenda-se! – obrigar a escrever segundo as normas do chamado «Novo Acordo Ortográfico».
            Setor em português, sector em inglês. Pasmei! E perguntei-me a mim mesmo como será doravante ainda mais difícil ensinar a nossa língua, se essas novas regras vierem a ser efectivamente tornadas ainda mais obrigatórias do que ditatorialmente hoje já são.
            A reflexão impôs-se no meu espírito, ao receber o livro Português, Meu Amor, apresentado em Hamburgo – a cidade alemã mais portuguesa – a 1 de Abril.
            Reúne o volume 49 artigos publicados ao longo dos últimos anos pelo Dr. Peter Koj no boletim da Associação Luso-Hanseática, de Hamburgo, Portugal-Post [Correio Luso-Hanseático].
            Peter Koj veio para Portugal, em comissão de serviço, ao abrigo do acordo cultural existente entre os dois países, como docente do Instituto Alemão, de Lisboa. Instalou-se, em 1976, no Estoril e, por sugestão de uma amiga comum, bateu-me à porta com a seguinte proposta: eu ensino-te alemão e tu ensinas-me português. Recordo-me que lhe disse que isso venha mesmo a calhar, porque acabara de receber uma carta inteiramente redigida em alemão e aproveitava para lhe pedir a tradução, mesmo por alto. Verifiquei, porém, que, para compreender o princípio, Peter tivera que ler até ao fim; eu, que, embora tivesse aprendido latim e soubesse que a do alemão era uma estrutura frásica semelhante, retorqui-lhe, pois, com um provérbio: «Sabes, burro velho não aprende línguas!».
            Recusei a aprendizagem, não a leccionação. E, ao longo de todo o período em que Peter Koj esteve connosco, com ele fui aprendendo muito, porque, aluno extraordinariamente diligente, me punha questões que me obrigavam a estudar. Uma aprendizagem mútua, que, por vezes, nos deu enorme ‘gozo’, quando, por exemplo, decidimos fazer o rol (imenso!) das palavras e expressões que têm o significado de bebedeira ou, ainda, os sinónimos de «fugir». Quando vimos as múltiplas formas de dizer «fugir» até pensámos: se calhar, é essa uma característica portuguesa!...
            A odisseia das formas verbais; este hábito horrendo de comer tudo (não se diz ‘têlêfôná’, como os brasileiros, mas ‘telfuná’!...); os idiotismos; os provincianismos e as diferentes pronúncias locais… – tudo foram escolhos a ultrapassar, até porque Peter Koj, além de ter percorrido o país de Norte a Sul, fazia questão em ler os jornais e estar ao corrente dos livros mais ‘badalados’. Repito: foi para mim uma grande aprendizagem.
            Aliás, em Cascais, incrementou largamente o intercâmbio entre estudantes: alunos de escolas alemãs estavam uma temporada em casas dos pais de alunos portugueses e, depois, eram os portugueses que iam a Hamburgo.
            No livro, Peter Koj debruça-se sobre as diferenças – para os estrangeiros, deveras curiosas – de identificação da ‘imperial’, da ‘bica’…; o universo das siglas; os particípios activos e passivos (há muita gente que não sabe que se diz ‘ter matado’, ‘ter aceitado’ – e não ‘ter aceite’…); a diferença entre ‘ser e ‘estar’; os aumentativos que têm valor de diminutivo; o uso constante do «mais ou menos»; o amplo significado do advérbio «oportunamente»; a história da presidenta...
            Creio, por conseguinte, que mesmo para os «portuguêsfalantes» (!) o livro constituirá uma aventura curiosa, até porque, nesse jeito de ‘saber sorrir’ que Peter Koj de nós aprendeu, há dispersas pelo volume caricaturas de… «partir o coco!».
            Também na medida em que fui parte dessa aprendizagem, não posso deixar de me regozijar com a iniciativa, sobretudo, no momento em que a invasão dos anglicismos ameaçava afundar a enorme riqueza de uma língua falada por mais de 240 milhões de pessoas (há que repeti-lo!), a 5ª língua europeia mais falada no Mundo.
            Acrescente-se que a Peter Koj, hoje com a bonita idade de 76 anos, foi atribuído, em 1996, o Prémio da Fundação da Casa da Cultura de Língua Portuguesa, pelo seu dinamismo em divulgar a nossa língua. E se ora lhe não posso eu dar um prémio, aqui fica o meu enorme aplauso por este livrinho de 164 páginas – que depressa carecerá de nova edição, estou certo!

                                                                        José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol – Jornal Regional dos Concelhos de Oeiras e Cascais, nº 87, 08-04-2015, p. 6.

 

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Agora, os jacarés são outros!...

             Mais horripilantes, perigosos, insistentes. Perseguem por dentro, dia e noite, noite após noite, pesadelo! Vivido em acabrunhante silêncio e só de quando em vez gritado.
            Os Olhos do Jacaré é mais um desses lancinantes gritos, a chamar a atenção para uma realidade que importa consciencializar, a fim de, na medida do possível, a tornar menos dolorosa. O fantasma de uma guerra imposta, bem no sabemos – que não vale a pena dizer mais.
            Rogério Pires de Carvalho, de gata ao colo e olhar quase macambúzio na capa, conta-nos como é. Se em Alenterra (2010) nos fez mergulhar nas mágoas de campanhas na frente de combate, aqui as magias são outras, em olhar bem acutilante sobre quem estamos a ser depois disso, a tentar-nos safar-nos, como o homem dos escorpiões, que já foi vendedor de uma catrefada de coisas e, se calhar, um dia, até vai vender banha-da-cobra; a tentar sobreviver («ó meu furriel, então o que é que faço aqui com o coto, que esta porcaria nem para tocar-ao-bicho serve, só serve mesmo para fazer cornos aos outros quando afinal quem foi corneado pela sorte foi aqui o nove, foi ou não foi meu furriel?» – p. 83); a tentar recordar mas em catarse («quem é a besta do teu capitão, ó cabo?» – p. 47); a tentar gozar com superstições e esquemas; a sentir-se, afinal, monstro que a longa noite gerou («A metamoforse», p. 85-89).
            Contos, no geral, breves, cativantes, muito do nosso dia-a-dia. Avesso a teorias, eu, não sei filiar Rogério Pires de Carvalho em determinada corrente literária ou se copiou doutrem a sua moda de escrita. Nem me interessa, confesso. Sei que gosto, exactamente por isso, por ser «muito do nosso dia-a-dia», tu cá tu lá, sem pretensos rodriguinhos literários, ainda que – hemos de reconhecer! – há densa literatura ali.
            O fino e mui atento escalpelizar de vidas quase paradigmáticas já, todos conhecemos algo de parecido, onde um certo ‘realismo mágico’ acaba por ser uma forma de cada um de nós, em determinado momento, fugir da realidade e inventar uma outra, em que demos largas à imaginação. Facilmente nos metamorfoseamos!...
            O conto «O nove» pode constituir o exemplo de como se diz tanto em tão poucas páginas (p. 81-83), a linguagem oral ganha relevo e a pontuação, a pôr-se, só iria mesmo atrapalhar. Ora imagine-se o pobre do já referido moço a quem o deflagrar de uma mina apenas deixara dois dedos na mão e a ter que fazer a continência. Assim:
            « ó pá, meu furriel, o major veio de lá furioso, aos berros comigo, a insultar a minha mãezinha, a dizer que eu estava a gozar com a hierarquia, o major berrava pela PêÉme, um alvoroço em Santa Apolónia que só visto, e eu a gozar o pratinho por dentro, por fora sem desfazer a continência, só os dois dedinhos espetados junto à testa […]» (p. 82-83).

Cenas da guerra e do pós-guerra
            Rogério Carvalho retrata cenas da guerra, cenas do após-guerra, a vida na cidade, a vida no campo, tudo com um olhar certeiro, numa minúcia de pormenores que não escapam a quem passa pela vida sem dela desprezar um ápice e de tudo se dando conta:
            «Os panos-higiénicos estavam pendurados num estendal improvisado, uma corda de sisal unindo duas palmeiras, uns estreitos rectângulos de pano turco com duas tiras de nastro cosidas nas extremidades. Cheiravam a lixívia e as mulheres estendiam-nos às escondidas para evitarem as perguntas embaraçosas dos miúdos» (p. 115).
            E o retrato da vida na caserna em «Os dois Rogérios» (p. 53-56), onde uma frase martelada aparece num crescendo, como que impertinente refrão no final de cada parágrafo:
            «Que a hierarquia queria uma carne obediente»
            «A hierarquia queria que a carne fosse rija»
             «... para a hierarquia, a carne se queria ousada»
            «… nestas coisas dos sonhos, a hierarquia não sabia de que forma impregnavam as carnes»
            «Que a hierarquia queria uma carne afinada»
            «Que a hierarquia queria a carne temperada neste vaivém»
            «Tinha razão a hierarquia, que sabia não ser a carne toda igual»
            «Porque como as hierarquias tinham premeditado, a carne passara a ser dócil e servil».
            Quatro páginas, em que – está bem de ver-se!... – os vocábulos ‘hierarquia’ e ‘carne’ reflectem superiormente uma obsessão.
            Da biografia do autor vamos sabendo aqui e além, mormente no último conto «Página em branco», que traz, por exemplo, a referência ao Natal, «indigestão dos fritos e das hipocrisias»… Rogério escreve ‘ainda’ com caneta de tinta permanente, na mão direita, «sentado a uma velha mesa de mogno escuro com pernas torneadas e quatro gavetas de tamanhos diferentes emparelhadas duas a duas» (p. 121); foi, dos dois, o Rogério «de baixo»; e furriel miliciano enfermeiro…
            Os Olhos do Jacaré, edição da Sinapis, Janeiro de 2015, 126 páginas. ISBN 978-989-691-333-5.
                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, edição de 06-04-2015:

domingo, 5 de abril de 2015

A Paixão dos Cristãos

              Em despacho datado do dia 3, de Nairobi, capital do Quénia, a Agência Noticiosa Salesiana comenta o ataque do dia anterior contra estudantes da Universidade de Garissa, culpados apenas por serem cristãos, pois o comando terrorista escolhera intencionalmente dentre os estudantes os que eram cristãos, manteve-os como reféns e depois executou-nos.
            “Há, na população há um grande medo», comentaram os Salesianos que têm escolas no Quénia, que acrescentaram:
            «Hoje, aqui, só se fala nisto. Os terroristas ameaçaram fazer novas carnificinas. E os cristãos, especialmente agora, têm medo também de participar das Vias-Sacras ou das funções da Semana Santa».
            De acordo com informações não-oficiais, teria sido «perto de 200 os mortos, além de uns 70 feridos e há cerca de 300 alunos de que não se tem notícia».
            A mesma agência noticiava, a 17 de Março passado, que em Lahore (Paquistão), Akash Bashir, um jovem ex-aluno da Escola Técnica Salesiana, impediu que o comando suicida do grupo “Jamaat ul Ahrar” entrasse na igreja católica de ‘St. John’, repleta de fiéis para a Santa Missa. Quando o comando se aproximou da entrada, tentando transpor com violência os dois jovens guardas, foi por eles detido. Apercebendo-se, porém, da carga explosiva que o invasor trazia por debaixo do estranho pulôver, Akash Bashir abraçou-o. A explosão subsequente decepou-lhe a parte inferior do corpo, mas graças à sua morte o balanço das vítimas não foi tão elevado quanto estava programado. Akash Bashir, na qualidade de “security guard”, estava com o colega à porta da igreja, a controlar as entradas. – J. d’E.
 
Publicado em Cyberjornal, edição de 05-04-2015:

quarta-feira, 1 de abril de 2015

Diário de um senhor em ‘dia não’

             – Toma o pequeno-almoço em silêncio.
            – Rejeita a hipótese – por que tanto ansiara! – de ir fazer uma caminhada e, de passagem, comprar a planta desejada.
            – Nenhuma das ementas dos restaurantes próximos lhe agrada e declara que não quer almoçar. A companheira, porém, numa de faz de conta, prepara almoço a contar com ele – que, no último momento, sem uma palavra, se decide a comer também. Se o petisco estava bom ou não – nada diz.
            – No momento de sair às compras, olha para a companheira: «Já viste como estás? Isso nem é trajo de ir prá praia! Ou te mudas ou não vais comigo!». A companheira foi mudar-se.
            – Ao pegar no carro, não mede bem as distâncias e bate com o retrovisor na parede: «Qualquer dia, o carro vai prá sucata!», diz-lhe a companheira mal-humorada.
            – Na estrada: «Já viste a que velocidade vais?».
            – Para cúmulo, na única compra que foi fazer sozinho, nem reparou no que comprara. Só em casa é que se apercebeu que a mercadoria vinha trocada.
                                                                            
            Quanta vez, no final do dia, ao ajeitarmos o lençol sobre os ombros, se faz o balanço da jornada e nos damos conta de inúmeras cenas destas a polvilhá-la de pontos negros. Não daqueles, sebáceos, que nos aparecem nas costas e até proporcionam um minuto de mui terna atenção «espera aí, que tens aí um ponto negro e eu tiro-o!»; depois da extracção, «olha como era grande!» e um beijo grato. Não, os pontos negros, aqueles, são de outro género e, se nos descuidamos, se os não extraímos, vão sub-repticiamente crescendo, construindo um muro pedrinha a pedrinha. E nós somos contra os muros inoportunos, como o de Berlim e quejandos.
            Fala o Povo: «Grão a grão enche a galinha o sarrão». Uma concepção positiva. Mas também amiúde se exclama: foi essa a gota que fez transbordar o copo! Esta, uma conotação geralmente negativa – que, depois disso, veio a desgraça!...
            Moral das nossas pequeninas histórias diárias: há que encher o sarrão de coisas boas e pôr no lixo, higienicamente, o que, de facto, não presta!
                                                                      José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde) nº 659, 01-04-2015, p. 12.

 

E nós, a sentirmo-nos impotentes!

            «As coisas aqui por casa estão muito complicadas. O T… com um olho praticamente perdido... Vê luz, mas tudo desfocado. Vai agora, ainda sem data, ser operado ao outro, a uma catarata. O médico está preocupado, pois um azar deixa-o cego. Quanto a ele... nem te digo nada! Isto mais o stress de guerra dão cabo dele e de mim. Está muito complicado. Eu, que tenho (ou tinha!...) uma depressão, já nem sei, vou tentando aguentar o barco. O que me faz pior são os constantes gritos com tudo... As noites sem dormir... E as ameaças permanentes de suicídio. E, depois, não se deixa tratar.
            E sinto-me só».
            E nós, a sentirmo-nos impotentes!
            Passam ambos dos 65. Estamos, porém, em 2015, quando – de acordo com o que à nossa volta se observa – essa é uma idade em que ainda se não pensa em morrer e há toda uma experiência acumulada a partilhar. Mas… se não há filhos nem netos nem sobrinhos nem afilhados sequer! À volta, as moradias não têm gente durante o dia e, à noite, é uma lufa-lufa pegada, dá banho ao miúdo, que é que vamos preparar para o jantar, que queres levar amanhã na marmita, e tu, Pedrinho, guardaste a senha para a cantina?...
            Pensara a Margarida que, após os 65, mesmo que só fossem os dois, acabariam por ir aqui e ali, ele apoiaria os bombeiros como gosta, ela reuniria as memórias de tantos anos de ensino, talvez ainda tivesse paciência para umas explicações aos filhotes das amigas, e dava-lhe gosto escrever; se calhar, até conseguiria levar a bom termo aquele livrinho sobre África. Sim, poder-se-ia escrever também sobre a guerra, seria uma forma de catarse, de dar a volta por cima, de esconjurar esses medos, cuidado que está aí uma mina, bolas, que isto ia tudo pelos ares!...
            Mas não! Toda a família estava longe – se é que ainda a havia, porque foram perdendo os laços. As noites, infindáveis; infindáveis, por seu turno, os dias também – sem jeito sequer para preparar aquela caprichada sopa rica. Nem vontade para plantar cebolinho, vigiar as lagartas das couves, fazer apetitosa limonada...
            E nós, a sentirmo-nos impotentes!
                                                                                              José d’Encarnação

            Publicado em Renascimento (Mangualde) nº 658, 15-03-2015, p. 14.