quarta-feira, 1 de abril de 2015

E nós, a sentirmo-nos impotentes!

            «As coisas aqui por casa estão muito complicadas. O T… com um olho praticamente perdido... Vê luz, mas tudo desfocado. Vai agora, ainda sem data, ser operado ao outro, a uma catarata. O médico está preocupado, pois um azar deixa-o cego. Quanto a ele... nem te digo nada! Isto mais o stress de guerra dão cabo dele e de mim. Está muito complicado. Eu, que tenho (ou tinha!...) uma depressão, já nem sei, vou tentando aguentar o barco. O que me faz pior são os constantes gritos com tudo... As noites sem dormir... E as ameaças permanentes de suicídio. E, depois, não se deixa tratar.
            E sinto-me só».
            E nós, a sentirmo-nos impotentes!
            Passam ambos dos 65. Estamos, porém, em 2015, quando – de acordo com o que à nossa volta se observa – essa é uma idade em que ainda se não pensa em morrer e há toda uma experiência acumulada a partilhar. Mas… se não há filhos nem netos nem sobrinhos nem afilhados sequer! À volta, as moradias não têm gente durante o dia e, à noite, é uma lufa-lufa pegada, dá banho ao miúdo, que é que vamos preparar para o jantar, que queres levar amanhã na marmita, e tu, Pedrinho, guardaste a senha para a cantina?...
            Pensara a Margarida que, após os 65, mesmo que só fossem os dois, acabariam por ir aqui e ali, ele apoiaria os bombeiros como gosta, ela reuniria as memórias de tantos anos de ensino, talvez ainda tivesse paciência para umas explicações aos filhotes das amigas, e dava-lhe gosto escrever; se calhar, até conseguiria levar a bom termo aquele livrinho sobre África. Sim, poder-se-ia escrever também sobre a guerra, seria uma forma de catarse, de dar a volta por cima, de esconjurar esses medos, cuidado que está aí uma mina, bolas, que isto ia tudo pelos ares!...
            Mas não! Toda a família estava longe – se é que ainda a havia, porque foram perdendo os laços. As noites, infindáveis; infindáveis, por seu turno, os dias também – sem jeito sequer para preparar aquela caprichada sopa rica. Nem vontade para plantar cebolinho, vigiar as lagartas das couves, fazer apetitosa limonada...
            E nós, a sentirmo-nos impotentes!
                                                                                              José d’Encarnação

            Publicado em Renascimento (Mangualde) nº 658, 15-03-2015, p. 14.

 

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