domingo, 9 de janeiro de 2011
As casas, as gentes, as histórias…
«Um dia, quando Amaro Moleiro deixar de plantar as suas alfaces e as suas couves nos alfobres que rodeiam a azenha ou deixar de colher os figos das grandes árvores que ali existem, tudo desaparecerá, tudo ruirá e poucos se lembrarão da azenha, tal como tem acontecido a outras do nosso concelho. Nada mais restará do que este apontamento e as fotografias que tirámos».
O desabafo, legítimo, de homens que têm consciência da importância do que chamamos de «património» e dos maus-tratos que, pela inconsciência de muitos outros, esse património vai sofrendo.
Fica a azenha em Manique. O que resta de uma actividade... eu ia a escrever «do passado»; hesitei, porém, porque, nos tempos que correm, mui provavelmente a essa e a muitas outras actividades somos capazes de ter de voltar, pela força das circunstâncias, em consequência de más políticas. Não se noticiava, há dias, que, em determinada terra do nosso País, já cada família recomeçara a cozer o seu pão, a cultivar a sua horta? Não estão as encruzilhadas dos arredores da capital pejadas de pequenas hortas agora?
Percorreu Guilherme Cardoso, de lés a lés, a freguesia de Alcabideche, a maior e a mais rústica do concelho, de máquina fotográfica em punho, a captar tudo aquilo que (sabia!) pouco haveria de durar. De bloco de apontamentos sempre pronto para anotar pormenores, fixar testemunhos, na certeza plena de que «velho que morre é biblioteca que arde». Vasculhou, claro, ele e Jorge Miranda e Carlos Teixeira, documentação de arquivo, livros antigos… mas, que há aí de mais eloquente que a tradição vivida e a ruína miudamente perscrutada?...
E foram historiadores, etnógrafos, arqueólogos, que, de olhos bem abertos no presente, já sabem perscrutar o futuro e, porque leram nos livros e na experiência, não resistiram, aqui e além, a deixarem umas linhas argutas, entenda-as quem as quiser entender:
«É mais fácil destruir do que conservar. Colocamos a nossa memória a substituir a de antanho, como se isso fosse o princípio de tudo»! – a propósito do prémio que a Associação Cultural de Cascais atribuiu à reconstituição fiel de dois casais saloios em Manique de Baixo.
Até finais dos anos 50, podia-se ir apanhar lenha e pinhas à Serra, em determinados dias da semana. Havia alguns abusos, é certo; mas a Serra era, assim, limpa. Quis-se cortar o ‘mal’ pela raiz, era mais fácil: proibiu-se!
«O mato deixou de ser limpo, as agulhas dos pinheiros acumularam-se e… o fogo deu-se! Os incêndios continuaram a fazer-se sentir ao longo dos anos e, como o pinheiro era de crescimento lento, houve quem se lembrasse de semear mimosas, que eram de crescimento rápido. Infestante como é, disseminou-se a grande velocidade, ganhou terreno e desenvolveu-se cobrindo tudo. Para eliminar as mimosas, utilizaram-se herbicidas e outros químicos poderosos. O que não resultou, deixando a serra contaminada de químicos que lentamente vão sendo absorvidos pelas águas pluviais (…)».
Os responsáveis pelo primitivo Gabinete de Arqueologia camarário lutaram para que se preservasse, em Bicesse, como memória, o portal da Vivenda Galinha. Luta difícil, vitoriosa, enfim – a determinar, porém, mais um desabafo contra «a sanha destruidora que grassa por todo o concelho e que interesses económicos individualistas tendem a intitular, num eufemismo tacanho, de modernização».
Realça-se o fundamental papel das colectividades, ora, infelizmente, moribundas em grande parte, a não possibilitarem essa transmissão de ‘herança’ que se impõe, porque, escrevem os autores, a par da importância das culturas das diversas comunidades étnicas existentes, «mais importante se torna não deixar morrer o conhecimento cultural autóctone, que se perde todos os dias um pouco, quando, a exemplo da globalização, os netos são colocados em infantários e os avós, os detentores do património cultural do seu povo, em lares de terceira idade».
E se se verbera o facto de, nalgumas dessas colectividades, uma estranha ‘euforia’ de Abril ter destruído a documentação existente, porque referente ao «antigo regime», também se pergunta por que razão o cruzeiro do Pai do Vento, em memória da morte de D. Maria de Mello, filha dos Condes de Sabugosa, é amiúde alvo de atentados:
«Nas épocas mais conturbadas da nossa sociedade temos notícias de actos de destruição contra antigos monumentos, sintoma colectivo da fobia de quem não tem coragem para atacar directamente os adversários, mesmo encontrando-se em desagrado, mas indirectamente nas obras produzidas por estes».
Quiseram os autores, despretensiosamente, manter no título do livro a palavra «apontamentos», na sequência do que se havia feito em relação a idêntico inventário das freguesias de Carcavelos e de S. Domingos de Rana . Não se procure, pois, aqui, uma história de capítulos sequencialmente cronológicos nem cuidada integração de factos narrados num contexto histórico regional ou nacional. Puseram-se, sim, em cima da mesa, todas as referências encontradas e registou-se em imagens tudo o que detinha interesse e, sobretudo, que corria o risco de desaparecer. Aliás, alguns desses recantos já hoje deixaram de existir! Tal como num outro livro, que João Cabral e Guilherme Cardoso fizeram, a pedido da Junta de Freguesia de Cascais, particular destaque se deu à arquitectura saloia, tão bem enquadrada na paisagem, tão eficaz no seu funcionamento.
Na década de 80, pôde a equipa de Jornal da Costa do Sol abalançar-se a essa imprescindível tarefa que incumbe à imprensa regional – quando a deixam e a apoiam – de dar a conhecer o que são as memórias locais. E fizeram-se, então, diversos suplementos dedicados expressamente a localidades ou grupos de localidades do concelho.
Vive este livro de muito do que então se publicou, mas não se esgota aí, porque se identificam lugares de que falam as histórias populares; se dá miúda conta das festividades em honra do Divino Espírito Santo; se sintetizam os resultados das escavações e sondagens arqueológicas levadas a efeito pela Associação Cultural de Cascais nas Branqueiras (Alvide), no Alto do Cidreira, em Miroiços da Malveira, no Casal do Geraldo…; se contam as peripécias das perseguições a Fausto de Figueiredo por agentes da Carbonária (uma história que ainda não fora bem esclarecida); diz-se do famoso «Homem-Macaco», um caso patológico a merecer, decerto, na actualidade, alguma investigação, dadas as suas características deveras invulgares; saboreamos a poesia de um escritor árabe do século XI, Ibne Mucana, natural de Alcabideche…
Propõe-se, pois, uma reflexiva panorâmica, de carácter histórico-cultural, sobre uma das mais típicas freguesias do concelho de Cascais. Tópicos que, reunidos aqui, poderão ser alvo de explanação mais alongada, pois, se algo se escreveu, muito ficou por escrever e muitas pistas de investigação há por desbravar! Aliás, este não é livro para se ler de uma assentada, mas para folhear de quando em vez, para que nos deixemos surpreender por aspectos inesperados… Tanta vez passei eu por ali e nem reparara nisso!... Essa, uma certeza que temos: este Registo, estes Apontamentos vão resultar num fecundo manancial de descoberta!
E bem andou, pois, a Junta de Freguesia em o ter patrocinado!
Cascais, 12 de Abril de 2009
Prefácio ao livro Registo Fotográfico de Alcabideche e Alguns Apontamentos Histórico-Administrativos, da autoria de Guilherme Cardoso, Carlos Teixeira e Jorge Miranda,
Junta de Freguesia de Alcabideche, 2009, p. 13-15.
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