sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Um poema, uma espada!...

             Não. Breves embora, passíveis de plantação em rego seguido sem a cesura do verso, os poemas de Fernando Miguel Bernardes são poesia mesmo e não prosa! Que eu declaro «poesia» essa forma incisiva de, mesmo em vestes ralas, se querer abrigar o Mundo, desvendar as almas, rasgar horizontes – qual fulgente espada!
            «Notas de viagens» sugeriria, como título, apontamento de etnógrafo, impressões de viajante mui deslumbrado com as aparências do típico, obediente ao que ao guia lhe apetecesse mostrar: Torre Eiffel, pirâmides de Gisé, oloroso casbá de Marraquexe, o Nilo, o Douro e o Sena… Não há guia aqui, porém, a não ser a águia de olhar bem perspicaz, Homem inteiro de visão bem funda, Irmão que sente e que pensa!
            «Ritmos e mitos».
            O ritmo é o que cada qual lhe quiser dar – que o Poeta é livre e quer libertar também. Preferirá, sem dúvida, um caminhar sereno, a saborear palavras, a degustar sentimentos…
            Os mitos são os de sempre: por labirintos de Creta nos levam; de Cérbero, o cão, há que libertar-nos; por Fénix renascida suspiramos…
            Viagem esta pelo mundo e pelo tempo, inebriada de pinceladas prenhes de uma Cultura sabiamente adquirida e mui oportunamente revisitada. Eterno convite!
            Que mais se aprecia? Não é nada fácil a escolha. «Tudo!» – resposta certa seria; mas ninguém acreditava, ainda que seja essa a verdade. Há, todavia, sementeira plena de reflexões maduras, com paragens onde a palavra é mais espada e mais célere, por isso, o sangue depressa ao coração aflui, num rompante.
            Tudo, afinal, é convocado por Fernando Miguel Bernardes. Os homens de antanho, sim; os homens de agora também. Filósofos, operários, crianças, o colibri, a codorniz, a andorinha, o melro, urubus (!), a flor do alecrim, a poderosa formiga que ousou passear-se por sobre a mesa em Havana, a banda e o coreto, moinhos de D. Quixote, o diamante e as minas, o Nero antigo das Twin Towers de agora… Tudo!... E da mais ínfima partícula jorram a inspiração e a voz. Sim, que versos destes são para ler com os olhos mas muito mais apetece gritá-los, atirá-los ao vento madrugada afora, gota feliz na pétala rubra da rosa! «Nasceu fulva a manhã nos teus cabelos…». Em bailia: «Abril bonito / Abril das rosas / pares no jardim / tardes formosas!...». «Passa lá um rio / Bate lá o mar»!
             A cereja: quem a tirou do cesto é dela merecedor? Assim venha por bem quem a semente quis regar na frescura do suor. Horror de mãos ocultas a colher doutrem as frutas!...
            A perdiz: mil tombaram na caçada! «Onde o frumento não nasce, a perdiz não pasce» – e o clangor ecoa «pela seca vasta planura alentejana». Tem de ecoar!
            Lapidar a legenda «para um portal no Bairro Alto»: «O mar ao luar tem cabelos de prata… Saudade doce mal… com absinto se trata!». Vês? Não há jeito assim – que não respiras a dizer e vai tudo de carreirinha! E não é!... São oito os versos e nem quadra querem ser. Ora vê:

O mar
ao luar
tem cabelos
de prata…

Saudade
doce mal…
com absinto
se trata!

            Tem outro condão, está claro. E desta sorte, com vagar, se vai sorvendo o absinto – que isso é a saudade nossa, lenta, doce e amarga, como outro Poeta falou…
            E é lindo o diamante em teu regaço; vertiginoso, o bólide leva ao rubro a multidão – já pensaste? Vê mais longe – que de tísica morreu o garimpeiro e de silicose o mineiro feneceu!...
            Abraçamos o mundo. Sentimo-nos gente no meio da multidão. Gente com nome. Pessoas!
            Por isso voluntariamente me deixei ferir, imolado, por esta espada fulgente!

                                       Cascais, 19 de Dezembro de 2013
                                                   José d'Encarnação                                    

            Prefácio a Notas de viagens – Ritmos e Mitos, de Fernando Miguel Bernardes, edição Mar da Palavra, Coimbra, 2015, p. 7-9.

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