sábado, 22 de novembro de 2025

O contra-ataque linguístico

            O abusivo recurso à terminologia inglesa está a gerar mui louvável contra-ataque linguístico. Ainda há dias, a local de um jornalista algarvio me obrigou a ir ao dicionário. 

Hugo Rodrigues não esteve com meias medidas e atirou:
«Pode ver nesta reportagem não só vídeos que provam a força da bezaranha que atingiu Faro, mas também fotografias dos estragos que esta causou».
 Claro, fui informar-me do significado: «vento forte e incomodativo». Mais: vim a saber que, durante a pandemia, os municípios da região algarvia criaram um programa cultural local que veio dar alento ao sector. E chamava-se… Bezaranha!
 Já sugeri a inclusão do termo no Dicionário online da Academia das Ciências de Lisboa e estou certo de que estamos felizmente a assistir ao saudável contra-ataque das línguas locais contra esta bárbara invasão linguística, qual epidemia.
E como, em relação a questões pertinentes não é raro termos a Real Academia Sueca de Ciências a dar prémios Nobel ex aequo a dois ou mais cientistas, que, sem saberem uns dos outros, chegaram a conclusões idênticas, também neste caso acabei por conhecer duas curiosas reacções linguísticas, uma na região saloia e outra nos arredores de Castelo Branco.
Celestino Costa escreveu A Fala da Minha Gente (Associação Cultural de Cascais, 2024) a mostrar como, foneticamente, as frases e palavras dos saloios assumiam formas estranhas, de acordo com a oralidade:

Ora acontece que, nas suas crónicas, o Doutor João Lourenço Roque vai pelo mesmo caminho. Assim, no mais recente volume Digressões Interiores 4, editado por Palimage (Coimbra, 2025) incluiu mais duas crónicas dedicadas a essa «Linguagem à moda antiga». E se Celestino Costa quis documentar, como se viu, o uso dessas expressões. o mesmo intuito teve João Lourenço Roque. Não me escuso, pois, a transcrever duas dessas suas expressões, não apenas pelo seu tipicismo, as também porque facilmente imaginamos as cenas referidas, que não deixam de nos fazer sorrir – função que muito nos agrada quando para tal, por toda a parte, bem escasseiam motivos:

José d’Encarnação

Publicado em Duas Linhas, 18-11-2025: https://duaslinhas.pt/2025/11/o-contra-ataque-linguistico/

 

 

Nota à margem d'«O Amansar da Fera»

     Uma pessoa conhece a trama da peça teatral a cuja estreia vai assistir, mormente se de Shakespeare, como é o caso de O Amansar da Fera. As artimanhas a pôr em prática para neutralizar ferocidades.

Sabe-se que é comédia e que, por definição, de vez em quando, no decorrer do espectáculo, alguém virá à boca de cena a contar, explícita ou implicitamente, da razão por que a esses estratagemas se houve de lançar mão.
 E, pelos dias anteriores à estreia, imagina-se encenador, ou seja, o responsável por fazer o enredo decorrer em determinado cenário. Pensá-lo-á à sua maneira, não lhe sendo obrigatório remontar à época em que a peça nasceu. Terá liberdade para lhe emprestar outra cronologia, mormente se o tema – como habitualmente acontece – é de todos os tempos. Além do espaço e do tempo, o vestuário, o guarda-roupa, a condizer com um e com outro. Na comédia haverá maior liberdade de ação.
Até à noite da estreia, a imaginação do futuro espectador deu cor, pensou movimentos, chegou mesmo a ‘ouvir’ os intérpretes nas cenas de maior realce.
 Se a peça, porém, vai ser estreada no Mirita Casimiro, pela gente do Teatro Experimental de Cascais,  desengane-se, amigo: por maior que seja a sua experiência teatral, quem teve a seu cuidado a dramaturgia, isto é, a necessária adaptação da versão original, trocou-lhe as linhas;  quem gizou o cenário deixou-o, a si, a inimagináveis léguas de distância; quem desenhou os figurinos – esqueça! – jamais suspeitaria, como espectador, o que é que dali iria sair.
 Já era assim com Carlos Avilez; foi assim agora com Cucha Carvalheiro; sempre foi assim e, mais uma vez, agora, com a exuberante fantasia de Fernando Alvarez no despido cenário relvado e na extravagância do guarda-roupa. Ficou-nos o bem colorido garridismo dos exuberantes trajes de inesperado recorte, a fazer fosquinhas aos mais originais costureiros em moda.
                                 
Das interpretações de actores antigos e novos escusamo-nos de repetir que deram o seu melhor. Flávia Gusmão, a protagonista, demonstrou bem quanto superou, largamente, as lições aprendidas na Escola Profissional de Teatro de Cascais. É uma estrela. Renato Godinho também. Todos!
Sim, as interpretaçõesespantam-nos; mas se já estávamos habituados a que, de vez em quando, os lugares reservados aos espectadores não eram os expectáveis, desta feita, todo o espaço se alterou por completo, de forma a melhor se conseguir dar ao público a ilusão de ser mesmo interveniente, estar por dentro daquilo, porque, dum momento para o outro, o actor pode saltar de trás de si ou passear-se-lhe pela frente.
 Louvor maior para o desenho e operação de som, a cargo de Hugo Neves Reis. Parabéns!
 Saímos consoladamente bem dispostos e até aceitámos o discurso final da Catarina (Flávia Gusmão), sabendo que nos quer inocular o contrário do que está a dizer.
Assinale que a estreia,  no dia 13, em que se comemoraram os 60 anos de vida do Teatro Experimental de Cascais, teve a presença discreta de Marcelo Rebelo de Sousa. Francisco Kreye e Noel Rog Menezes, respectivamente, presidente e vogal da Junta de Freguesia Cascais Estoril, foram os únicos representantes presentes das entidades autárquicas. Esteve também Paulo Raimundo, mui discretamente, na assistência.
João Vasco, de fala angustiada, evocando Carlos Avilez e congratulando-se vivamente com o prestígio já alcançado por muitos dos seus antigos alunos, não deixou de alertar para a necessidade de se preservar o espólio do Teatro Experimental de Cascais e de se olhar com outros olhos para a Escola Profissional de Teatro.
 
                                    José d'Encarnação 

Publicado em Duas Linhas, 17 de Novembro, 2025: https://duaslinhas.pt/2025/11/o-amansar-da-fera/

 

Ironia do Destino!

             
               Quando algum acontecimento inopinadamente sobrevém e acarreta com ele consequências, à primeira vista, inesperadas, mas que confirmam uma secreta suspeição – a exclamação surge, espontânea: «Ironia do Destino, amiga, ironia do destino!»..
            Demonstra, primeiro, a crença de que, querendo ou não, sempre houve uma qualquer Entidade superior a nós que outras malhas teceu; depois, que, mais tarde ou mais cedo, o carro da vida acaba por voltar ao carril certo, desde há muito traçado.
Ironia assume, desse Destino, o lado mais jocoso, sublinhado com um sorriso malandro do jeito «Eu não te disse? Tinha que ser!». Fado, ao invés, prefere vestir-se de negro: a má sorte. Nas tragédias gregas, o coro acentuava esse lado lúgubre, acabrunhado; daí que, amiúde, se atribua ao nosso fado esse ar de tragédia sem mezinha.
Lembrei-me de me embrenhar no significado da palavra. Vim a saber, em primeiro lugar que, em peças teatrais gregas, houvera o personagem «eiron, que dissimula e aparenta menos inteligência que possui — triunfando, assim, sobre seu oposto, o alazon, fanfarrão, vanglorioso». Sim, nós temos o alazão, que os dicionários dizem ser derivado o árabe «alhisan», aplicado sobretudo ao cavalo, com o significado «de cor de canela». E não poderia, ao invés, ter vindo do grego? Quando exclamamos «eu não te dizia?» perante a tal ocorrência inesperada, «por ironia do Destino», não assumimos esse ar de vitória? Assumimos.
Seja como for (e, amigo, não vale a pena embrenhar-se em elucubrações: ironia dramática, ironia cósmica, ironia verbal, ironia romântica…), a ironia é, acima de tudo, uma arma, a espada de gume afiado que os parlamentares argutamente manejam a seu bel-prazer e que surte, habitualmente, o efeito de mui salutar e demolidora gargalhada.
Casos há, porém, em que não dá vontade nenhuma rir, mesmo que a frase o possa dar a entender:
– Estás a brincar comigo, é?
Se dita pela mulher ao marido, a martelar as palavras, olhos bem abertos, tom ameaçador… mais vale o visado pôr o rabinho entre as pernas (como o gato) e… mudemos de assunto! Ela não está a brincar!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 348, 20-11-2025, p. 13.

 

terça-feira, 4 de novembro de 2025

Não cruzar os braços

            Decerto lhe despertou invulgar curiosidade quanto leu. Sempre apreciou antigas lendas e «coisas velhas» a veicularem memórias de outrora. De facto, sempre nos causa admiração verificar como tantos pormenores com que, no quotidiano, nos vamos cruzando, na pressa em que se nos vai a vida, nos passam totalmente despercebidos, sem que, alguma vez, houvéssemos pensado na hipótese de, também eles, esconderem uma história ou serem testemunhos de mensagem, um dia, pensada como transmissível aos vindouros por um dos nossos antepassados.

Por isso também nem a toda a gente se pode entregar tal tarefa:

«Parte-me por aí nesse concelho, à cata de tudo quanto vale a pena assinalar e conta-nos depois como foi!».

José Carlos Santos tem esse perfil bem adestrado. O livro que ora acabou de folhear é boa prova disso, estou seguro: texto e imagens lhe proporcionaram inesperado percurso pela História desde os tempos mais antigos até quase à actualidade; deram-lhe a conhecer recantos, edifícios, monumentos cujo interesse jamais lhe haviam chamado a atenção. E devo confessar que, tendo acompanhado a par e passo a sua incansável actividade, apreciei deveras a sua enorme capacidade de trabalho, o seu apurado espírito de observação, a par da larga experiência de análise do terreno por estas paragens singulares adquirida, nos últimos anos. De tudo José Carlos Santos meticulosamente deu conta, nestes anos de mui intenso labor. As dificuldades aguçaram-lhe o engenho. Jamais ousou cruzar os braços! E, perante o panorama traçado, facilmente se deduzirá que, como sói dizer-se, em boas mãos esteve o pandeiro: boa melodia dele mui briosa e inteligentemente soube arrancar.

A cada um dos leitores terá naturalmente interessado mais esta ou aquela passagem. Diversas, as reacções. E até a identificação de vestígios arqueológicos ou históricos de relevo pode provocar duas reações visceralmente opostas:

– Sim, é importante, vamos preservar, enobrecer, estudar!

– Chatice! Logo à minha gente deu na veneta ir comprar aquela terra que já os Romanos haviam cobiçado! Azar!

De facto, sabemo-lo bem, qualquer dessas reacções pode pecar por excessiva: nem tudo é para preservar e nem tudo constitui empecilho à justa obtenção de dividendos. Fica aí, no entanto, uma série de pistas susceptíveis de posterior desenvolvimento: os menhires a jazer em sítios quase inóspitos; aquela ara de Longa cujo interesse histórico há a realçar; as inúmeras sepulturas cavadas na rocha; as antigas calçadas e os marcos que delas se registaram; esses silhares almofadados dispersos por aqui e por além; as insculturas em penedias (como a do Penedo Rachado); os capitéis coríntios no muro do cemitério de Santo Aleixo; e, de modo especial, os 39 marcos a assinalar antigas propriedades da Universidade de Coimbra…

Um mundo descoberto, sim; mas também, um mundo ainda por melhor descobrir! Sem cruzar os braços.

 

                                               José d’Encarnação

 

Posfácio ao livro Carta Arqueológica de Tabuaço,  de José Carlos de Jesus Santos. Câmara Municipal de Tabuaço, Outubro de 2025, p. 305-306.

domingo, 2 de novembro de 2025

O recheio da casa

             Não, museu não era. Pairava, porém, sobre ele um génio diferente: tudo aquilo… falava! Tudo aquilo, cada um dos objetos, mesmo o aparentemente mais insignificante em tamanho, uma simples rolha, a boneca de trapos, o rádio do tempo dos afonsinos… carregavam em si uma história.

                                          

        Gabriel Pereira (1847-1911), notável homem de cultura do seu tempo e de todos os tempos pelos testemunhos que nos legou, foi chamado, um dia, a avaliar o recheio de uma casa. O que viu e como o viu fez com que ele sentisse a obrigação de o partilhar por escrito. Li essa partilha e não a quero, pois, só para mim. Vou contar. Iam ser feitas partilhas, os herdeiros decerto iriam preferir dinheiro a antigualhas.

        «Senti a poesia dolorosa do desastre. Sozinho entre preciosidades acumuladas em sucessivas gerações, que me pareciam contar histórias, invadiu-me uma saudade indefinida, motivada pelo conjunto de recordações. Iam abandonar-se, partir em diversos rumos aqueles móveis e quadros, por tantos anos companheiros».

        Poderíamos ficar por aqui – que, em catadupa, quantos casos desses conhecidos nos viriam à cabeça e, porventura, até antojaríamos que esse é capaz de vir a ser o nosso também. Nesse dia, porém, algo de aparentemente inesperado aconteceu para Gabriel Pereira:

        «De súbito, um minuete estalou o silêncio triste: um belo relógio de carrilhão anunciava o meio-dia com a sua fina sonoridade. Na ocasião, pareceu-me ver no relógio uma implacável ironia. Acabou o minuete, soaram no timbre, espaçadas, as doze horas, agudas, cruéis; e esmoreceu lentamente a última. O tempo! O tempo que tudo vai mudando e gastando».

                                           

            Parei. Ainda me parece estar a ouvir o som metálico do relógio, a lembrar-me que, afinal, iria ser verdade: que também o relógio do minuete iria partir, incógnito, para outras paragens.

            Enlevo, felicidade! – para isso contribuem (queremos que contribuam!) os quadros que comprámos ou nos ofereceram com dedicatórias até; os móveis utilitários; aquele sofá preferido para uma leve sesta; os dois ou três livros a ter sempre à mão, basto sublinhados a lápis eles estão!…

            Enlevo, felicidade, património. Valor venal, valor de memória, de valor impessoal algum dele – a ultrapassar as soleiras daquela porta e a merecer, quiçá, um dia, lugar de relevo em museu.

                                                                    José d'Encarnação

  Publicado em Duas Linhas, 2.11.2025: https://duaslinhas.pt/2025/11/o-tempo/

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Nam botes qu’eu nam bebo!

             

             A frase goza de um sentido claro: a pessoa não tem o hábito de beber (e, geralmente, o referente é o vinho) ou achou, naquele momento, que já bebera o bastante.
 Claro, claro não é, porém, tal sentido em contexto barrocalense, onde, em tertúlia de amigos, o dito significa exatamente o contrário, naquela entoação irónica que é timbre nosso.
 Surgiu-me, de repente, o idiotismo e decidi ir ver mais acerca do verbo “botar”, pois se usa também, por exemplo, assim:
– Vê lá, não botes má figura que me deixas ficar mal!
Por conseguinte, dois significados:
– um, físico; o deitar;
– outro, figurado, o de ‘aparentar’, ‘fazer com algum aparato’.
O verbo ‘botar’ tem, afinal, bem ancestrais raízes. Dizem os entendidos que pode assinalar-se como seu antepassado *bōtan, vocábulo do germânico antigo (uma das variantes do vetusto indo-europeu que está na base de todas as línguas europeias), que primitivamente significaria ‘golpear’. Daí terá vindo ‘botare’ no chamado «baixo latim», ou seja, no latim aculturado já com os linguajares locais, e também o provençal ‘bouter’, empurrar.
Na tertúlia de amigos, porém, o ‘nam botes’ nada tem de empurrar ou golpear – é, simplesmente, tomar cuidado, não vale derramar, que todas as gotas se hão de querer aproveitar em álacre companhia!

                                                           José d’Encarnação

 Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 347, 20-10-2025, p. 13.

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Animais romanos em Vila Moura

 

Parte inferior do formulário

Parte inferior do formulário

Que os Romanos, ao invadirem a Península Ibérica, tiveram em mira as nossas minas de ouro e ferro já o suspeitávamos. E que, ao sentirem-se bafejados por este clima tão ameno e águas tão prazenteiras, por cá se houvessem decidido a ficar, também não é de admirar. Por isso, quando, há anos, os arqueólogos toparam com ruínas de estruturas romanas em Vilamoura, surpresa nenhuma se fez sentir.

Panorâmica do sítio romano de Vila Moura

Começou-se por caracterizar o sítio como villa, que era o tipo de estrutura de povoamento habitual nestas paragens. Aliás, a villa romana já se apontou como sendo o antepassado do monte alentejano: junto à casa senhorial se alinhavam os banhos («termas» costumamos chamar aos dos Romanos), o lagar, o celeiro, as casas para os trabalhadores.

E, sempre que se encontravam mosaicos, villa tinha de ser, porque se imaginava logo a sala principal de recepção aos convivas com mui selecto e policromado mosaico, qual genuíno tapete persa ou requintado arraiolos dos nossos dias. Por isso, tendo-se descoberto mosaicos, Vilamoura villa romana (com dois LL, à moda latina) tivera que ser.

Antes, porém, de se dar conta dos resultados da nova investigação levada a efeito pela Dra. Ana Pratas, importa esclarecer o que está por detrás do topónimo Vilamoura.  Terá sido designação, creio, quase instintiva: há estruturas habitacionais, há mosaicos… portanto, villa há-de ser, que não se lhe vai dar nome de aldeia, lugar ou sítio, nomes vulgares.

Estava-se, então, ainda nos alvores das maiores descobertas romanas por essa Europa afora e, nas zonas balneares (Biarritz, Monte Estoril, Nice, Rimini, Constantza…), a vivenda de veraneio villa teria de chamar-se.

Por outro lado, para o português comum, ‘coisa antiga’ tinha de ser «do tempo dos Mouros»,  ainda por cima neste Algarve, onde as palavras árabes ocupavam porção importante do vocabulário quotidiano. Portanto, «moura» tinha de ser: Vila Moura!

Depressa, todavia, os resultados das escavações, cada vez mais cuidadas e sistemáticas, deram a entender que se estava perante estruturas a mais para singela casa romana, ainda que envolta em nada singela magnificência.

 

Sul Informação 

Um dos mosaicos romanos no Cerro da Vila, Vilamoura

 

Um vicus

Por isso, bem analisado o conjunto, optou a Dra. Ana Pratas pela classificação do sítio como ‘vicus’. Ainda que do vocábulo latino ‘vicus’ tenha vindo a palavra «beco», dela também deriva a palavra ‘vicini, os vizinhos, os habitantes do ‘vicus’. E como nós, hoje, gostaríamos de voltarmos todos a tratar-nos por ‘vizinhos’, os que vivemos na mesma rua, no mesmo bairro!…

Mas foi mais além Ana Pratas: dada a especificidade dos vestígios detectados, na sua maior parte ligados ao mar, Vilamoura (ou o Cerro da Vila como também é chamada) tivera de ser um «vicus maritimus». Vamos, pois, por aí.

Claro: conchas de moluscos marinhos encontraram-se em quantidade. Era normal, já se sabia, e, por tal motivo, Ana Pratas decidiu-se – e bem! – a minuciosamente estudar o que de vertebrados aí se encontrara.

Que o Romano deveria ter tido animais para a lavoura, para a caça, cães de guarda, ovelhas, cabras, o porco… De resto, em mosaicos de ‘villas’ doutras paragens, havia cenas de caça (como em Conímbriga) e, até, um senhor de Pompeios decidira mandar pôr à entrada da mansão a imagem de um cão de dentes arreganhados com a legenda CAVE CANEM, «Cuidado com o cão».

 

Sul Informação 

«Cuidado com o cão», em Pompeia

Teria havido cães romanos em Vilamoura? Houve. De acordo com os restos ósseos inventariados por Ana Pratas, na sequência das intervenções arqueológicas ao longo dos anos aí levadas a cabo, encontraram-se 30 testemunhos de Canis lupus familiaris, que é o nome científico do nosso cão, depois dos 111 referentes ao porco (o ‘sus’ científico), que ocupa o primeiro lugar.

Certo é que se trata de mero sinal, porque não só os 30 testemunhos são passíveis de não se referir a 30 animais, como se trata de testemunhos referentes a vários séculos. Que o cão esteve por ali, esteve, isso é uma certeza!

Enfim, teria sido nesses seculares tempos uma vida não muito diferente da que hoje por ali vamos tendo. E, como o sítio dispõe de Centro Interpretativo, porque não agendar para um dos próximos fins-de-semana uma ida até ao local, a fim de se apreciar com os próprios olhos o que mui sucintamente aqui e agora se anotou?

Além disso, o estudo da Dra Ana Pratas – acrescente-se – acaba de ser publicado no nº 29 (2025) da revista do Arquivo Municipal de Loulé (Al-‘ulyà), que tive o gosto de apresentar a 4 de Outubro.

                                                         José d'encarnação

Publicado em Sul Informação, Outubro 12, 2025:  https://www.sulinformacao.pt/2025/10/animais-romanos-em-vilamoura/