terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Longevidade

             No mais rasgado elogio alguma vez feito à benignidade do clima de Cascais e à excelência da qualidade das suas águas, afirmou solenemente Frei Nicolau de Oliveira, num livro publicado em 1620:

            «E assim é a mais sadia terra que se sabe em Portugal e em que os homens mais vivem e mais sãos e donde de todo está desterrado um mal que a tantos consume a vida, que é a melancolia».

            Estava eu, pois, embalado nesta doçura e esperançado, até, duma vida sadia até para lá dos cem anos, quando me começa a bater à porta, por via do Notícias de S. Brás, a informação de que, ora num mês ora noutro, a informação de que Dona X festejara os seus 101 anos e Dona Y já ia nos 103. Ainda na edição de Dezembro se contava, logo na 1ª página, que «a sambrasense D. Maria da Conceição completa 112 anos em 22 de Dezembro» e, na p. 2, que Apresentação Dias festejara, a 21 de Novembro, o seu 104º aniversário. Abençoadas!
            Mas, por outro lado, essas notícias caíram-me mal, porque me instilaram a dúvida: errou o frade em relação a Cascais? Afinal, também erraram meus pais também, quando se decidiram a ir para as bandas de Lisboa, quando os ares de S. Brás eram, muito mais benfazejos?
            Agora, paciência! Está feito, está feito e vai ser difícil optar por um regresso ao cheirinho bom das flores de alfarrobeira, à maravilha dos campos de amendoeiras floridas.

            Que, pois, sejam outros são-brasenses – e os muitos forasteiros que por aqui, cada vez mais, se estão instalando – os beneficiários, em pleno, desses bons ares e dessas boas águas – no voto de que todos compreendam quão necessário é lutar pela biodiversidade, pela preservação da qualidade do lençol freático e dos nossos poços e nascentes.

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 338, 20-01-2025, p. 13.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

Tema obrigatório?


            Resisto habitualmente a escrever sobre tema de calendário.
            O Natal, por exemplo, não me inspira, inclusive porque, nessa época, tanta gente o analisa que se corre sério risco de ser banal e desprovido de interesse.
            Por outro lado, embora seja festa, a todos os títulos, justificável, não me encanta por aí além, nomeadamente pela ensurdecedora algazarra comercial que a sufoca e por o presépio tradicional estar, também ele, sufocado pela árvore e por aquele senhor que supostamente vem da Lapónia.
            Abro uma excepção, neste ano dos meus 80. Primeiro, em acção de graças; depois, porque não enjeito o halo poético de que a festividade se envolve.
            Recordarei sempre João Baptista Coelho: anualmente me fazia chegar um poema, amiúde apenas simples quadra, onde superiormente lograva condensar sábios objectivos desejavelmente concretizáveis pelos humanos sapientes.
            Este ano, foi a vez de Aurora Madaleno me obsequiar com o livrinho, de sua autoria, «Momentos Meus de Natal», onde compendiou breves trechos e os versos com que, desde 2004, tem presenteado os amigos. Transcrevo uma dessas quadras singelas:
 
                   Reine paz, reine alegria,
                   Brilhem luzes como estas.
                   Quero cantar neste dia
                   Boas Festas! Boas Festas!

            Paz, alegria, luzes, canto – as palavras necessárias, as palavras urgentes.

            As palavras a viver todos os dias!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 873, 20-12-2024, pág. 10.

 

 

sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Vítor Barros, o filho e o poeta

            

            Voltei a saborear «As mãos murchas«, o texto com que Vítor Barros, na edição de Setembro, quis homenagear a sua mãe.
            Se a sua rubrica se chama «Cem textos de solidão» e nela se têm integrado crónicas de grande valor sentimental e literário, emprestando sólido colorido ao quotidiano do nosso Barrocal, este – de maior solidão ainda, devido ao facto de ser a despedida de sua mãe – reveste-se de bem inegável beleza, ao evocar, ali, junto do caixão, toda uma vida, que será, naturalmente, a de muitas, senão todas as mães nascidas na primeira metade do século XX:
            «Vi cântaros de barro cheios de água torturando os frágeis ombros, vi alguidares de roupa branca perfumando o ar. Vi terras suadas, gretadas pelo calor do sol, embaladas pelas cantigas da foice, vi o sol esconder-se no horizonte refrescando um peito arfante e rouco de cansaço...
            E então nessas minhas mãos murchas, começaram a florescer flores. Flores vermelhas. Milhares de flores vermelhas. As flores do teu quintal… as nossas flores vermelhas».
            Um hino à Vida no momento em que ela já não existe. Ou melhor, no momento em que subiu para outro patamar, o da eternidade, sabendo nós que o falecimento não é mais é do que o momento da passagem, que importa envolver em ternura, em gratidão, em vontade de continuar a plantar flores, vermelhas, brancas, azuis, no sorriso de cada um, no sorriso em direcção àquele ou àquela com quem nos cruzamos e que, porventura, é capaz de vir acabrunhado sob o peso não dum cântaro físico mas dum cântaro sofredor. Olá! Sorria para mim, responda ao meu «bons dias!», deixe da mão a nuvem negra, sopre-a já para longe.
            Murcharam as mãos que tanto labutaram. Também as nossas, um dia, vão murchar. Até lá, porém, temo-las, temo-las para um abraço, um caloroso aperto de mão, para a suave carícia no rosto duma criança ou na face da pessoa com quem vivemos o Amor. Mãos calejadas serão, decerto já não da enxada; os calos serão doutro género, porque nossas mãos diariamente muito souberam e continuarão a saber escrever, saudar, comunicar. Murcharão, sim; mas continuarão a falar!

            Amigo Vítor Barros, bem hajas!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 337, 20-12-2024, p. 17.

 

segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Património urbano de Viseu

          

            
Tem-nos brindado Alberto Correia, sem interrupção, com publicações da mais variada índole, a chamar a atenção para as tipicidades – físicas e imateriais – de Viseu e do seu distrito. Envergando, desde a juventude, o traje do Património e da História, encanta-nos – além disso – com a sua esmerada prosa, bem alimentada de localismos (para que se não olvidem!).
            Desta feita, o livro mais recente tem o significativo título de Urbanidades, pois que nos leva a passear pela freguesia de Viseu, a mostrar-nos o sentido íntimo de cada edifício. Vem na página da esquerda a foto, a preto e branco (como convém, para que melhor se sinta, sem distracções, a nudez do testemunho); na da direita, a explicação.
            Logo o título sonhado para cada texto nos enleva e nos seduz, sem que seja possível passar além, sem paragem de mui atenta leitura.
            Ora veja-se:
            – Viseu. A estranha leveza da História.
            – O Pórtico do Fontelo. Porta do Céu evocada.
            – Palacete dos Silva Mendes. Uma serena memória.
            – Igreja da Misericórdia. Hino de amor.
            Dá gosto passearmo-nos assim, envoltos neste sereno halo de poesia. Falam essas pedras seculares; mas nem todos se apercebem da mensagem transmitida, nem todos param, em admiração, a ler esses ecos d’outrora.
Pela mão sábia de Alberto Correia nos deixamos ir:
«Quem olhar numa manhã de luz mansa a frontaria da Igreja da Misericórdia recortada num céu de poente julgará estar defronte de uma gigantesca mansão fidalga e quase esperará ver assomar à varanda distantes figuras de damas e cavalheiros distraídos de uma festa».
Demoremo-nos, então, a ver se as damas assomam!

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 872, 26-11-2024, p. 10.

domingo, 24 de novembro de 2024

Apanhar uma aberta!

             – Olha, apanhei uma aberta e escapei-me!
            Atentei no que acabara de dizer e pensei em dois aspectos do nosso quotidiano, para além da natural alegria de termos chuva num Algarve que dela tão precisado andava:
– Primeiro, no significado da palavra «olha», neste contexto, que não é propriamente o do verbo ‘olhar’, mas sim, neste caso, uma palavra-bordão, daquelas que usamos para iniciar uma conversa, sem terem um significado preciso, uma locução verbal, poderia chamar-se; noutras circunstâncias, porém, «olha» funciona como chamada de atenção: «Olha lá, não te molhes!».
– Depois, no significado da palavra «aberta», intervalo se imagina curto entre duas chuvadas; não se apanhou nada, concretamente, como quem apanha uma sova ou um graveto do chão, mas aproveitou-se.
Ambos os exemplos me levaram a duas outras reflexões: à necessidade de continuarmos a usar as nossas palavras lídimas, as que os nossos avós nos transmitiam e a ensiná-las às nossas crianças; e, por outro lado, a uma preocupação de irmos explicando essas palavras à comunidade estrangeira com que já diariamente convivemos.
Quantas das nossas crianças saberão hoje o que é uma morrinha, cacimbar, «agora, está sereno», chuva de molha-tolos? Se, nesse âmbito, quisermos ir mais longe, até poderemos falar do tempo de cacimbo em África; ou da «morriña» galega, aquela tristeza que, qual saudade, por nós perpassa quando sentimos a falta de alguém.

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 336, 20-11-2024, p. 13.

O retiro

            Está a ouvir-se bastante esta palavra ‘retiro’.
            No tempo da minha formação, ‘retiro’ significava a semana em que um grupo de jovens, devidamente orientado, se retirava para um lugar isolado – amiúde, um convento ou mesmo uma ‘casa de retiros’ – para, em reflexão, pensar no seu modo de vida e na forma de o melhorar e mais confortavelmente corresponder ao que almejavam ser os objectivos das suas vidas.
            Ouvi-a, há dias, no programa do Herman: Cuca Roseta preparava-se para ir fazer um retiro na Índia. O Oriente, berço de religiões como o Budismo, o Bramanismo… parâmetros de vida em que se privilegia o autodomínio, o pensamento disciplinado a disciplinar os nossos gestos e emoções.
            O Prof. José Mattoso, após uma vida bem activa de historiador, antecedida, como foi, da reclusão monástica, retirou-se para uma aldeia perdida nos arredores de Mértola. Meu amigo e colega João Roque, aposentação chegada, regressou à terra natal, Calvos, bem no interior beirão, para viver o contacto diário com a Natureza e a agricultura – e desse gozo nos dá conta nas suas crónicas.

            Soube o imperador romano Augusto, no século I, rodear-se de poetas para lhe amenizarem as dores da governação. E lá esteve Ovídio, por exemplo, a cantar as delícias do campo, mezinha segura contra as irrequietas maleitas urbanas. No século IV, isso compreenderam melhor os cidadãos romanos e deram em refugiar-se nas suas casas de campo, as villae, bem adornadas de mosaicos com requintadas cenas da mitologia antiga para lhes dar recreação e redobrada atenção aos agrícolas lavores. Muito mais tarde, não foi ao seu retiro de Vila Viçosa que os conjurados de 1640 tiveram de ir buscar o Duque de Bragança, que aí procurava pôr em prática o que D. Francisco Rodrigues Lobo preconizara no seu livro A Corte na Aldeia, publicado em 1619?
E não estão agora de moda, nas televisões, os programas a mostrar famílias que decidiram aproveitar os campos de seus antepassados e aí cultivarem, aperfeiçoando procedimentos ancestrais, não apenas o que era habitual mas também produtos inovadores? E não se mostram imagens serenas desse novo viver, em que não falta uma carícia aos animais que, serenamente, ali com os humanos agora convivem? E há um lento passeio de burro ou a caminhada logo pela manhã ou quase ao sol-pôr a ganhar forças ou a sorver, a longos haustos, a pureza de um ar despoluído…

                                                    José d’Encarnação

Publicado no jornal Renascimento (Mangualde), nº 871, 15-11-2024, p. 10.

sábado, 19 de outubro de 2024

Os nomes das ruas

             Não, longe de mim a ideia de substituir-me a António Cabral, que, mui religiosamente, mantém a sua oportuna rubrica «Olhar a toponímia» no nosso Notícias de S. Brás. Oportuna, porque ajuda a criar comunidade, na medida em que, recordando os nomes das ruas e das terras, as pessoas sentem tudo muito mais próximo, muito mais nosso.
            Permita-se-me, porém, que, como historiador da cultura, realce a importância que a cronologia detém neste âmbito; ou seja, a resposta à pergunta:  por que razão a esta rua foi dado esse nome?
Repare-se, a título de exemplo, no caso citado pelo nosso prezado António Cabral na edição de Setembro: Maria Bárbara Louro morreu em 1929; o seu nome foi dado à rua em 12-01-2016, quase 100 anos depois! Porquê? Que é o que diz a ata nº 1/2016, da reunião camarária em que tal decisão se tomou? Só tantos anos passados se lembram da senhora, porquê?

            Veja-se o exemplo desta rua de Beja, que a figura mostra.
Século XIX adiante, ainda não havia placas nos arruamentos, era a Rua dos Mercadores. Ali se faziam os negócios, ali se ajuntavam os burgueses. Mais tarde, os mercadores perderam o seu ar de ambulantes e estabeleceram-se; vai daí, o povo deu em chamar-lhe a Rua das Lojas. Vieram depois as danças e contradanças da I República, hoje está no poder um partido, amanhã está outro, e a população acaba, em determinado momento, por depositar em Afonso Costa as suas sempre adiadas esperanças. Vitoriaram a sua subida ao poder e nada melhor do que afixar o seu nome na artéria mais frequentada da cidade, que se tornou, por isso, a Rua Dr. Afonso Costa. E não se esqueceu o seu título académico, como garantia de validade!
Está a tornar-se comum esta mui louvável atitude de dar conta dos nomes antigos. A praça principal de Coruche tem, na sua placa toponímica, um bonito azulejo: Praça da Liberdade / antiga / Praça 5 de Outubro / e / Praça do Comércio. Em três penadas, mui incisivo registo da história local: o ponto de encontro dos homens de negócios do século XIX saudou a implantação da República e proclamou a Liberdade que 25 de Abril lhe concedeu!

                                                           José d’Encarnação 

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 335, 20-10-2024, p. 13.