domingo, 28 de fevereiro de 2010
Homenagem a João Silva Maia
POEMAS DO ESTORIL, de João Silva Maia
Conheço João Silva Maia desde os bancos da Escola Salesiana do Estoril, onde ambos estudámos na década de 50, onde partilhámos ambições e, já nessa altura, fomos adestrados na vontade de pôr os nossos préstimos ao serviço dos outros. Recordas-te, João, que pertencemos à Companhia da Imaculada Conceição, sob a sábia orientação espiritual do Padre Heitor Calovi, recentemente falecido (honra à sua memória!).
Do João recordo – eu era mais puto que ele, apesar de ser mais velho que eu apenas três anos e pico – que pertenceu a essa plêiade de estudantes que, pela primeira vez, se abalançaram a fazer um jornal. Havia também aí o José Luís Encarnação, hoje catedrático jubilado da Universidade de Darmstad, na Alemanha, e uma das maiores sumidades, a nível mundial, no campo da computação gráfica. Desse jornal, saíram uns quantos números – uma lança em África na Escola!... – uma devoção respeitosa de nós, os mais pequenos do 2ºano para com os do 5º, que tão bem sabiam escrever! Fizeram um jornal! Creio, aliás, que este terá sido o embrião do que é hoje o semanário «Jovens» da mesma Escola, a que, mais tarde, o Padre Miguel meteu ombros, nomeadamente para relatar as actividades da sua gloriosa equipa de hóquei, a Juventude Salesiana!
Acabados aí os estudos, seguiu cada qual o seu rumo. O João foi para Económicas e Financeiras, que terminou em 1964, exactamente no ano em que eu entrava em Histórico-Filosóficas, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Como economista, demandou Angola, Moçambique e, depois de nova passagem por Portugal – o bicho das viagens nunca o largou! –, aí vai o João para o Luxemburgo, onde se mantém até 1986, data em que inicia o seu trabalho de vinte anos (até 2006) no Parlamento Europeu, como economista.
Reencontro-o, pois, esgotados os nossos caminhos por aqui e por ali, de novo no rincão que a nossa meninice e juventude acolhera. Creio que numa iniciativa cultural da Câmara Municipal de Cascais. Reconhecemo-nos (o João manteve sempre o mesmo ar, a mesma fisionomia, a mesma placidez…) e começámos a trocar informações de índole cultural e outra, dando-me ele conta, amiúde, das suas idas aqui e acolá, em passeio ou, por exemplo, em missões de observação eleitoral como delegado da União Europeia. Mandava-me, de quando em vez, os textos que incluía no jornal do Cercle Littéraire des Communautés Européennes, o livro «Se houver porto e houver chegada» e agora este – que me pediu para apresentar, o que muito me honrou, acreditem!
Direi que estamos perante um livro… simbólico.
Primeiro, porque o João quis fosse colocada na 4ª capa uma fotografia: «O autor com a Presidente de um centro de voto no dia das eleições, distrito de Itezhi-Tezhi, Zâmbia, Setembro de 2006». O mesmo ar descontraído, à-vontade, nem dá impressão de que lhe pesa (ou pesou) sobre os ombros bem espinhosa missão. Cá está aquele espírito de serviço de que atrás se falava, haurido, sem dúvida, na Escola Salesiana. Num sorriso!
Depois, o simbolismo da ilustração primeira – a eloquente fachada das cocheiras de Santos Jorge, um património, um património em risco, um património com sugestivas carrancas irónicas e, no cimo, a águia em jeito de se abalançar a voo – ou a ataque sobre incauta presa ao alcance?
Não posso deixar de sublinhar, perdoem-me, que esse foi o simbolismo escolhido para outro livro de poemas, de Maria Amélia Brandão de Azevedo, «Costa do Estoril, Tempo de Poesia», publicado pela Associação Cultural de Cascais, de colaboração com a Junta de Freguesia, em 1993. Aí, deixámos o monumento como fundo e puxámos para primeiro plano a carantonha matreira!...
Acontece, portanto, que são ambos livros de poesia. E ambos encaram o Estoril como fonte de inspiração, dir-se-ia: Maria Amélia Brandão de Azevedo fala em «Tempo de Poesia» e noutro livro chama-lhe mesmo «Paraíso das Musas».
João Silva Maia reuniu aqui trinta e cinco poemas, datados de entre 21 de Dezembro de 2005 e 27 de Maio de 2006. Ontem, numa mensagem por correio electrónico, dizia-me o Autor que, se eu quisesse, o poderia interrogar. E interrogo-o mesmo, porque me dá a impressão de que são estes seis meses como que… o repouso do guerreiro! Acabara as funções no Parlamento Europeu, novas perspectivas poderiam existir no horizonte; mas, entretanto, o Estoril precisava de ser saboreado, o Estoril convocou-o para o retiro, a reflexão sobre o que vira, o que viu, o que passara, ele e os outros.
Transcreve Júlia Néry, na antecâmara do seu livro «O Segredo Perdido» (Bertrand, 2005, p. 7), uma passagem de José Luís Borges (in «História da Noite»), que reza assim:
«Um facto qualquer, uma observação, uma despedida, um encontro, um desses curiosos arabescos em que o acaso se compraz pode suscitar uma emoção estética. O destino do poeta é projectar essa emoção, que foi íntima, numa história ou numa cadência»
O destino do poeta é projectar essa íntima emoção numa cadência…
E que me seja permitida nova alusão, agora a um autor também de minha especial predilecção, José Gomes Ferreira. No livro «Poesia – III» (Círculo de Leitores, Lisboa, s/d., p. 23) escreveu a «canção daquela borboleta verde que vi, há momentos, aturdida num passeio de Campolide»:
Borboleta verde,
Aqui não há flores.
– Procuras nas pedras
Jardins interiores?
Borboleta verde,
Aqui não há zumbidos.
– Procuras nas pedras
Perfumes dormidos?
Borboleta verde,
Aqui só há calçadas.
– Procuras nas pedras
As flores geladas?
Borboleta verde,
Chama quase morta.
– Também eu, também,
Aos tombos nas pedras,
Não encontro a Porta.
Um pouco como o «Diário» de Miguel Torga…
Assim entendo eu a Poesia: a frase lapidar, bonita, que faz pensar, mensagem para a eternidade – qual epígrafe a dar voz à frieza do mármore polido…
Todos somos poetas um pouco; «Portugal, um país de poetas» sói dizer-se, ao ouvirmos, por exemplo, o «Lugar ao Sul», de Rafael Correia (programa que nos preenchia as manhãs de sábado na Antena 1 e que, inopinadamente, deixou de existir na Primavera passada), e a facilidade com que algarvios e alentejanos alinham num ápice aquelas décimas obrigadas a mote!...
Aqui, porém, não há décimas, mas sim sextilhas (35 sextilhas) e o mote… são uma catrefada deles! No fundo, um olhar para a vida, dedicado a «todos aqueles que, em qualquer parte do mundo em que estejam, não esquecem o Estoril» – que o Estoril não se esquece nunca, João! Este mar, este anfiteatro voltado à planura destas águas. Mas – curioso!... – tu não dedicas uma sequer dessas sextilhas aos encantos desta terra!... Porque outros a têm cantado, decerto; mas também – aposto! – porque do Estoril se capta aqui não tanto palmeiras e vivendas entre pinheirais, o lúgubre rolar da bola na roleta, o brilho esfusiante de milhões de lâmpadas do Salão Preto e Prata, mas… a alma! Aquilo que, ao fim da tarde, no remanso do paredão, nos entra bem adentro de nós:
Onde o mar me afaga as ideias
escrevo livre o que penso sem peias.
Onde o vento me acaricia os versos
descrevo os meus sonhos transversos
– e em conluio comigo mesmo subtil.
em terra os pés, lhes chamo poemas do Estoril.
27 de Maio de 2006
E assim termina o livro.
Permita-se-me, porém, que eu não termine ainda, porque apresentador que se preza deve aliciar à leitura da obra, não a despindo, é certo, em jeito de desfile de moda no Estoril… mas, se calhar, sublinhando uma que outra roupagem, chamando a atenção para um que outro dos airosos modelos que desfilam. Tanto mais que – e aqui está outro simbolismo – o lugar para esta apresentação não podia ser mais adequado: o Museu dos Exílios… Ponto de encontro foi o Estoril das mais desvairadas gentes… Temos aqui memória…
A 6 de Janeiro, Dia de Reis, escreveu João Silva Maia (p. 25):
A ascese da pedra lascada
levou ao gozo da pedra polida.
A pedra evolui com os humanos,
como os humanos.
Por cada pedra polida havida
há uma pedra lascada deixada.
A ascese que leva ao gozo.
Uma evolução que - bem no sabemos, mas esquecemos tantas vezes!... – das opções do nosso dia-a-dia se constrói. Algo há que deixar para trás, ainda que nos custe, ainda que o hábito nos haja longamente seduzido…
Por cada pedra polida havida
há uma pedra lascada deixada.
E se uma característica perpassa pelos poemas de João Silva Maia é a sua melodia, o seu brincar com os sons – e amiúde nos ecoa por entre as linhas, quase inevitável, Eugénio de Castro, simbolista, «na messe, que enlouquece, estremece a quermesse»… O ritmo, o embalar – quais ondas a espraiarem-se pelo Tamariz…
Quando o pomo da discórdia como
nem porquê nem como o como sei,
ou mesmo se só o engulo em seco.
Não sei nada, nem sequer se apenas peco
e, se deveras peco, como me salvarei.
A discórdia me consome enquanto como o pomo.
23-05-2006
«Nem porquê nem como o como sei»…
Pois é, João: a onda espraia-se, mas há logo outra que, impetuosa, vaidosa, se lhe encavalita atrás, a querer espraiar-se também. Discórdia! Quantas vezes a não palpaste? Quantas vezes a não engoliste em seco e a perguntar-te porquê? Estranho este mundo, João! Discórdia será pecado, sim, consome-te, consome-nos, e – não tenhas dúvidas! – frequentemente nos perguntamos numa confissão:
Não sei nada, nem sequer se apenas peco
e, se deveras peco, como me salvarei?
Voltaste, João – pronto, todavia, para novas viagens. De longe e de perto, sentes o Estoril debruçado sobre o Atlântico, em ânsia de partir. Ou de ficar?
Contra ventos, contra marés
esta pátria nave navega,
embora mais pareça que deriva.
Bem ou mal no chão assentes os pés,
cada luso em vão se imagina o estratega
de relançar capaz a Pátria viva.
25-04-2006
Pois bom profeta me saíste, Amigo! Não da desgraça, mas, como os profetas, de pés bem assentes na terra, que assim é preciso, para que se não ande à deriva. E tens razão! Tinhas razão em 25 de Abril de 2006 (um aniversário talvez já triste, nesse ano, não recordo, porque os rumos se desnortearam, bem sabes…). Tinhas razão nesse 25 de Abril de há três anos e tens razão agora:
Cada luso em vão se imagina o estratega
de relançar capaz a Pátria viva.
Não quer ser estratega o Poeta; no entanto, decerto a sua leitura repousada e quente nos abalançará a navegar com mais segurança contra ventos e contra marés. Essa, a missão do Poeta e, com estes trinta e cinco poemas de um semestre, João Silva Maia cabalmente cumpriu a missão acometida!
Bem hajas!
Post-scriptum
Quando, a 31 de Março de 2009, almocei com o João, a seu convite, prometi-lhe que lhe passaria a letra de forma o texto ora transcrito, que, manuscrito, pejado de siglas e de abreviaturas, me servira para a apresentação do seu livro, a 29 de Janeiro de 2009, no Espaço dos Exílios, no Estoril, em cerimónia presidida pela vereadora da Cultura, Dra. Ana Clara Justino. Não havia pressa e o manuscrito foi ficando em cima da secretária, à espera da melhor oportunidade. E quando, a 2 de Fevereiro de 2010, por ocasião dos 25 anos do Pisão, me encontrei com sua mulher, Helena, vim a saber que o João falecera, inopinadamente, no Panamá (mais uma viagem!...), a 19 de Setembro. De nada eu soubera, nada soou na Comunicação Social local, e fiquei estupefacto, enorme nó a apertar-me a garganta, até porque, dias antes, falara dele na Escola Salesiana, em vista do reencontro, que se está a preparar, dos ‘jovens’ dessa década de 50. 68 anos feitos, nascera a 19 de Abril de 1941. Aqui fica, pois, a minha bem sentida homenagem.
Helena mostrou-me um poema datado de ‘Luxemburgo, Março de 1983’, em que o João escreveu, a dado passo:
O poeta deve morrer em silêncio,
única forma de ser consciente no momento preciso
[…]
O poeta deve morrer.
E que a sua mensagem fique.
A sua mensagem ficou!
Que ora descanse em paz!
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