quarta-feira, 4 de maio de 2016

Eu quero envelhecer contigo!

             Josefina e Manel têm filhos, têm netos. Os netos na escola; e os filhos, atarefados, de manhã à noite, horários sobrecarregados, responsabilidades acrescidas, férias organizadas, sem tempo para um telefonema ou um e-mail...
            Já entraram nos 70 e vivem, por isso, um dia após outro dia, a minimizarem os efeitos psicológicos de um mundo que ambicionaram bem diferente e para isso labutaram e nessa perspectiva deram exemplo aos filhos e aos que com eles privavam.
            Manel mantém-se activo, prosseguindo na investigação científica do que lhe dá prazer e num domínio onde acabou por fazer discípulos. Sente dificuldade, porém, em compreender os espartilhos hoje criados, por exemplo, para a publicação dos resultados da investigação, a obrigatoriedade de se escrever em inglês, sob o pretexto de que só assim (dizem!) se logra ser notável; a azáfama com que se programam «congressos internacionais», que acabam por ter apenas quatro gatos-pingados, mas que são «internacionais» e é isso o que conta nas estatísticas.... Custa-lhe compreender a tirania das estatísticas, tantas vezes obrigatoriamente falseadas…
            Josefina e Manel lembram-se, amiúde, daquela senhora, já viúva, que tudo preparou para a ceia de Natal em família e… não houve ceia nem família, porque os filhos, à última hora, tiveram outras preferências. E do estratagema daqueloutro, que teve de simular a morte por telegrama para reunir a família – e conseguiu! E do pai que, no banco do jardim, pergunta ao filho «Aquilo é um pardal, não é?» e o filho lhe responde num monossílabo, uma, duas, três vezes, dias seguidos, chateado, absorvido como está no seu tablet, até que, uma tarde, o pai rapa do diário e lhe mostra que era ali mesmo que o filho, em pequeno, lhe fazia a mesma pergunta e ele, pai, disponível, de sorriso nos lábios, lhe explicava tudo tintim por tintim sobre pardais…
            Manel tem mesmo, no computador, uma pasta de PowerPoints sobre velhos e sobre a velhice, que passa de vez em quando, para se edificar. Isso mesmo: para se edificar – e assim consegue manter de pé o edifício!…
            Josefina fez anos. Reviram, com gosto, as flores do jardim de que cuidam, aquele craveiro-do-ar que, este ano, lhes sorri com muitas flores; espreitaram da janela os pardais, as rolas e os melros a debicar, gulosos, as migalhas que lhes deitaram no canteiro…
            Entreolharam-se. De facto, apesar dos filhos e dos netos, o seu mundo cingia-se agora fundamentalmente às quatro paredes, ao jardim e aos animais que lhes faziam companhia... Abraçaram-se emotivamente e, como frase de parabéns, Manel não achou outra melhor:
            – Eu quero envelhecer contigo!
            – E eu também! – sussurrou-lhe a mulher, num beijo, surpreendida.
            Afinal, só os dois é que contavam!
 
                                                          José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 684, 01-05-2016, p. 12

4 comentários:

  1. É incomensurável a satisfação de lê-lo; mas, ao mesmo tempo, são verdades tão amargas!

    ResponderEliminar
  2. Agradeço a quantos tiveram, desde já, a gentileza de comentar esta crónica.
    Permita-se-me que junte aqui esses comentários:

    António Manuel Marques Lopes Ontem às 0:14
    É como eu com a minha Gena.

    Teresa Candeias Bento Ontem às 0:39
    Lindo ! Parabéns

    Isabel Maria Luciano Ontem às 1:58
    É um belo texto. Parabéns e um abraço.

    Domingos Barradas Ontem às 3:56
    Gostei deste belíssimo naco de prosa que nos prende do princípio ao fim e nos emociona, face à realidade dos dias de hoje.
    Professor e amigo dos tempos remotos a tua escrita é uma delícia.
    Um abraço de amizade e muita estima e admiração.

    Teresa Silva Ontem às 8:36
    Querido Professor, como dirá um bom português só faz falta quem cá está! Beijinhos dos amigos de Coimbra!

    Gloria Ferreira Ontem às 8:36
    adorei,

    Ana Ferreira Ontem às 9:56
    Lindo! Fiquei emocionada.

    Maria Glória Ximenes Ontem às 10:42
    Lindo. Prof. Vou levar!

    Mena Barata Ontem às 10:49
    Li, que beleza e poesia.

    António Barbio Ontem às 11:13
    Professor, para variar: MUITO BOM! Partilhei. Abraço Jd'E!!!

    Teresa Mascarenhas Ontem às 12:54
    Belíssimo, Senhor Professor, como tudo o que lhe sai das mãos e da alma! Beijo brande.

    Marici Magalhaes Ontem às 14:59
    Comovente José d'Encarnação!!! Parabéns! Bejinhos.

    Augusta Maria Melo 22 h
    Gostei mto do texto. Obrigada. Eu infeliz / já ñ tenho com quem envelhecer. Valia ter ido tb na mesma hora. A solidão é tramada .

    Maria Do Céu Campos 20 h
    Belo texto! Na teoria seria o desejo de todos nós, mas na prática, a vida por vezes é tão diferente!

    Maria Vaz 17 h
    Adorei. Vou partilhar

    Antão Vinagre Vinagre 15 h
    Belíssimo texto. Um abraço

    Maria Fernanda Frazão 8 h
    Obrigada. Lindo.

    ResponderEliminar
  3. Ana Teresa, 7/5 às 19:33~h
    Ó Professor, que bonito texto! Comoveu-me a mim e a meu marido, com quem partilhei. Enquanto tivermos alguém com quem envelhecer junto...

    Gosto · Responder · 7/5 às 19:33

    ResponderEliminar
  4. É verdade José D'Encarnação - permite-nos uma reflexão espectacular sobre a Vida. Mas leva-nos a outra - os que por estranhos desígnios do Destino, foram vivendo, construindo a sua Vida "sòzinhos"mas sempre acompanhados,por Amigos, por colegas de trabalho,por familiares,por vizinhos, por simples conhecidos... De qualquer modo sempre motivados pelo cumprimento do dever, pelo sentido de solidariedade, na ansia de converter os seus ideais em algo de palpavel, algo de positivo,minuto a minuto, ano a ano, neste movimento imparável que conduz ao ponto FINAL da Vida. E pode surgir a pergunta -o que deixei eu para trás, depois desta longa corrida para o Infinito?

    ResponderEliminar