terça-feira, 16 de outubro de 2018

Certo duas vezes por dia

              De repente, o Vasco disparou a pergunta:
              – Qual é a coisa, qual é ela…
            Que é, que não é. Surgiram as hipóteses mais absurdas, tudo na brincadeira, porque a ignorância da resposta era geral.
            O Vasco foi fazendo caixinha: «Então ninguém sabe?» «Vão ver que é fácil muito fácil mesmo!».
            Ninguém sabia.
            – Vamos, desengoma-te lá na resposta!
            – O relógio parado!
            Era mesmo!
            E o pensamento voou dali para outros horizontes:
            · A nossa preocupação, quando temos visitas, de parar o relógio de sala, que herdámos e tem mais de cem anos, para que o toque das horas e das meias-horas não incomode quem vai dormir no quarto ao lado…
            · A guerra com o padre da minha terra, porque o sino da igreja de S. Romão, erguida a meia-encosta no vale que vai de S. Brás a Loulé, tocava, às horas, o «Ave de Fátima» mesmo durante a noite.
            · A saudade, por vezes aliviada aqui ou ali, do toque das ave-marias ao amanhecer, ao meio-dia e ao final da tarde, a pautar as tarefas agrícolas.
            · A surpresa, em Marrocos ou na Tunísia, quando, de repente, ecoava o convite à oração proclamado pelo almuadem do alto da mesquita (agora já automaticamente difundido por adequada aparelhagem sonora)
            · O costumeiro toque da sirene dos bombeiros a lembrar que é meio-dia ou, como em Peniche, à uma da tarde.
            · O toque doutra sirene, a das fábricas, como se vê em filmes antigos, e as mulheres a saírem de seguida, para a refeição ou para outra faina, a doméstica.
            Os toques, o constante tiquetaque de um relógio que marca as horas todas e não apenas como aquele do Vasco, que estava parado. O incessante escorrer do tempo e a inevitável frase de Michel Quoist:
            «Tens muito tempo à tua disposição, mas passas o tempo a perder o teu tempo».

                                               José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 740, 15-10-2018, p. 11.

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