Perdoar-se-me-á,
tantos são os textos que nos atafulham a caixa do correio electrónico a propósito
do que estamos a atravessar. Perdoar-se-me-á se também eu me decido a escrever
sobre o assunto. Não decido propriamente. Sou obrigado a isso, tão impositivo
esse momento é.
Escrever
que ninguém estava à espera constitui lugar-comum. Ninguém estava, a nenhum
nível. Mesmo os senhores que mandam no Mundo – política e economicamente – por
mais videntes que tivessem ao seu serviço, nenhum deles adivinharia que um vírus
tudo viesse virar do avesso, obrigando a todos, sem tir-te nem guar-te, a
mudarem por completo o seu paradigma de vida. Corria-se, voava-se, hoje estava
em Lisboa, amanhã em Berlim, no dia a seguir no Rio de Janeiro? Esquece! Isso
acabou mesmo! E tens de parar.
Não
foram precisas bombas nem ameaças nucleares! Um simples vírus, por ter determinado
a reclusão, vai alterar por completo e tão eficazmente um modo de encarar a
vida que nenhuma religião, por mais prédicas que fizera, haveria de conseguir.
E
o cronista tem, obrigatoriamente, de se fazer eco do que se passa à sua volta.
Para que conste – se é que, depois disto, ainda haverá quem venha a estar preocupado
com o que o final do ano de 2019 da era cristã nos veio proporcionar. Pelo sim,
pelo não, documente-se.
Não,
não vou referir que, por ter havido suspeita de infecção,
o talho do meu bairro, aonde todos agora íamos às compras, se viu forçado a
fechar com polícia à porta. Prefiro – desculpe-me, Amigo! – dizer-lhe que o meu
cão me levou a passear hoje, logo de manhãzinha, pelos arredores de minha casa,
em bairro da periferia urbana de Cascais, onde as casas ainda se escondem, aqui
e além, sob frondoso pinheiro manso ou mui altaneira
araucária.
Dizia-me
ontem uma vizinha que tem também casa perto da Torre Eiffel, desejosa de voltar
para cá, mas não a deixam: «Oh! passear nestes dias nos Campos Elísios é uma sensação nova, que, ao longo de tantos anos de França, eu
nunca tivera! Sentir o perfume das flores e não o fumo dos carros!...».
Eu
também. Neste quase romper da manhã, o ar estava recheado dos arrulhares – um
daqui, outro dali, um outro mais além… – dos casais enamorados das rolas ou dos
machos em busca de aconchego. Era só isso. Mais aqueles dois melros, a fugir de
ramo em ramo, ela a fazer-se esquiva e ele em perseguição…
Duas lagartixas estendiam-se, de olhos fechados, no murete de um jardim.
Naquela travessa, onde as vizinhas põem comida para os gatos, lá estavam eles,
estirados no alcatrão, a gozar do sol, na certeza de que, num silêncio tal, não
haveria carro que por ali passasse em breve. No talude da nova avenida, uma
papoila solitária interpelou-me: «Não vês como se realça o meu vermelho em meio
do verde rasteiro à minha volta? Sei que não vou durar muito, mas, entretanto,
toda me quero pavonear aqui. Não achas que tenho um vermelho bem bonito?». Achei
mesmo. Ela fez-se à câmara e não resisti a fotografá-la. Ainda nesse mesmo
talude novo, uma mata. Bem, mata não é nem matagal. Mas achei-lhe piada. Não é
que por ali cresceu uma ‘floresta’ de cardos! Picam, bem no sei. Contudo, assim
juntos, selvagens, gritam que é bom
ter liberdade de crescer!
José d’Encarnação
A natureza encontra o seu lugar sempre, redefine-o constantemente, e o homem, agente máximo da transformação natural, nos seus piores mas também melhores pontos, tenta compreender e lutar contra pulsões naturais, exacerbadas ou não pelas culturas onde se inserem, esquecendo talvez que dentro da identidade social, cultural humana ao contrário das leis da natureza, há sempre espaço para a escolha, é isso que faz do homem o Ser Humano, poder escolher.
ResponderEliminarMais um estupendo e oportuno texto. Escutar as linguagens da Natureza em quase silêncio? Sim, maravilhoso, mas a feia apreensão cerca-nos de todos os lados e não sabemos se estamos a combater o inimigo sem rosto. Só que eu conheço e admiro o cronista. Sei-o também poeta. Por agora quer exortar a que demos atenção às pequenas grandes coisas, para esquecer o pior. Sejamos então como a papoila, vibrante na vida efémera entre tantos cardos por aí espalhados. Grande abraço.
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