A
muitos terá acontecido o mesmo. O silêncio a envolver-nos, em Março e Abril, determinou
retorno à infância.
De
casa de minha avó, no Cerrito, eu ouvia chocalhos de cabras no caminho, a guizalhada
do macho e, até, a falta de unto nos rodados da carroça… Ecoava pelo ar a buzina
do Ti Zé Lòsinho, recém-chegado da lota de Olhão. Bradava-se pela Ti
Marquinhas, cuja casa ficava na colina que é o núcleo central do sítio do Corotelo,
e ela ouvia e nós ouvíamo-la a ela. Automóvel que passasse – e era raro passar!
– a gente identificava-lhe o som. Era bem perceptível o zumbido do besouro em volta
dos vasos de flores…
Eu
dormia a sesta no sobrado, com tecto de canas. Adormecia ao som do que minha avó
chamava as costureiras. Nunca vim a saber o que eram; mas tinham mesmo o jeito
de serem mulheres a coser à máquina, a espaços. Não me assustava, mas tentava imaginar
como seriam, se grandes, que estavam a fazer, se roeriam as canas… Adormecia!
Esse matraquear compassado tenho-o bem presente na memória. Tantos anos
passaram!...
O
silêncio que, por força do vírus, nos envolveu teve esse condão mágico de
novamente me sentir menino…
José d’Encarnação
Publicado em Noticias de S.
Braz [S. Brás de Alportel] nº 282, 20-04-2020, p. 13.
O núcleo central do Corotelo, visto do Cerrito, a casa de meus avós |
De: Sofia Silva, 19 de Maio de 2020 12:30
ResponderEliminarGrata pela partilha!
Gostei muito!
Adoro essas partilhas de memórias que parecem simples do quotidiano das nossas infâncias mas que têm significado maior e nos permitem refletir a atualidade.
Que linda memória que o silêncio fez evocar, José. Até eu ouvi os chocalhos, a guizalhada dos machos, a buzina, os brados, o ruído do automóvel. E de um texto tão bonito, ficou-me ainda a imagem de um menino deitado no sobrado, e o zumbido dos besouros, lá fora, a namorarem as flores. Bem hjas.
ResponderEliminarDe: vitor barros terça-feira, 19 de Maio de 2020 12:44
ResponderEliminarMuito bom esse voltar à infância. Eu de vez em quando faço o mesmo e também vou dormir com o meu avô... vou à escola, à sociedade e espero pelo Zé Lozinho para falarmos de bola. E, claro, o Lázaro com a sua boina!
De: Vanda Maria Amaro Jardim Fernandes terça-feira, 19 de Maio de 2020 16:38
ResponderEliminarLindo! Comovente! Sereno! Bucólico!
Abraço de bons silêncios, com muita saúde!
Obrigada por me relembrar a minha infância! Lembro-me também da Ti Marquinhas, quem não se lembra. O som da máquina de coser dizia-se que era a costureirinha da sé... Beijinhos ;)
ResponderEliminarHelena Ventura Pereira
ResponderEliminar19 de maio às 14:46
Este Silêncios é um texto tão bonito que vale a pena ler. E ainda por cima é breve, intenso, diz muito em poucas palavras. Gostei tanto!
Pois, também eu me lembro da costureira! Nessa altura aparecia muitas vezes. As pessoas tinham-lhe um certo temor. Que era uma alma do outro mundo, diziam! Peso que seria algum bichinho a roer as canas que compunham os telhados algarvios, muito comuns outrora. Sobretudo nas casas mais modestas. Outros tempos1 Outros silêncios!
ResponderEliminarMina Rodrigues, 20 de Maio de 2020, às 14.53
ResponderEliminarNo jornal da nossa bonita terra li a sua crónica "Silêncios". Adorei, porque me revi nela. Conheci todas essas cenas e pessoas. BEM HAJA!