O
livrinho apresenta uma introdução ao
texto do albicastrense Frei Manuel da Rocha (19/11/1676 – 16/11/1744) – que professou
no Mosteiro de Alcobaça e chegou a lente de Teologia na Universidade de Coimbra.
Chama-se Portugal Renascido, e consta
do volume de 1730 da Colecção dos Documentos e Memórias da Academia
Portuguesa da História.
Aliás,
integrou Frei Manuel da Rocha o núcleo inicial de académicos fundadores, em
1720, e, em nota (p. 7 a
10), António Salvado faz-se eco do importante trabalho inicial levado a cabo
por esta Academia, que deve a sua fundação a el-rei D. João V.
Como
era hábito no século XVIII, a seguir ao título da obra vinha extenso subtítulo
que patenteava, desde logo, a intenção do escrito. Neste caso: «Tratado histórico-crítico,
em que à luz da verdade se dão manifestos os sucessos de Portugal no século X
depois do nascimento de Cristo Senhor Nosso, tirados da confusão e descobertos para
glória deste Reino por escrituras autênticas e inteligência genuína dos autores
de melhor nota».
Todo
um programa, portanto!
Nessa
introdução, portanto, António Salvado, após historiar a traços largos a vida e
obra de Frei Manuel da Rocha, aponta a sua preocupação em basear-se em documentação
fidedigna; mostra como Portugal Renascido
foi bem aceite por credenciados autores; e acentua a ideia de que, para
Frei Manuel da Rocha, a independência de Portugal radica na «contínua e persistente
diferenciação humana e territorial, lenta embora, da região portuguesa» (p.
14).
Como no fragor da batalha também há beleza!
O ponto 7 da
introdução embala-nos para o que, no fundo, foi o propósito de António Salvado,
ao afirmar que a selecção das passagens do Portugal
Renascido que escolheu para transcrever em Leituras IX «obedeceu muito mais a um propósito estético que a uma
intenção… historiográfica». E, na verdade, embora declare, linhas antes, que «a
persistente preocupação do historiador raramente permitiu expansão livre ao
artista da palavra que nesse historiador coexistia», o certo é que os excertos apresentados
primam pela elegância da forma.
Direi,
pois, que da leitura deste livrinho, sai deleitado o Poeta e… desejava mais o
Historiador!
As
duas partes em que Portugal Renascido
se desenrola são, no original, precedidas de uma súmula do que nelas se vai contar,
súmula que é completada no começo de cada capítulo. Antonio Salvado optou por apenas
transcrever as duas súmulas mais importantes e, por conseguinte, o leitor que
esteja mais interessado na parte histórica, é aliciado – e bem! – a ir ler as
cerca de 450 páginas do texto original, que hoje, digitalizadas por iniciativa
da Google Books, estão disponíveis na Internet.
Antes,
porém, de citar duas ou três dessas passagens em que se prova que até o fragor
da batalha se pode aureolar de beleza – a lembrar que até no lodo do Nilo
vicejam flores de lótus, como proclama um dos personagens do filme «Os Dez
Mandamentos» – permita-se-me que recorde uma das partidas maiores que, na actualidade,
o programa dos computadores nos prega, impedindo-nos de ver as gralhas que os
nossos textos apresentam. Neste caso, a revisão confiou no programa, que não
sabe distinguir quando é que, por exemplo, se deve usar o itálico, e não alinha
em nomes estranhos: quem é que disse que se escreve Ordonho? É Ordenho, claro,
forma do verbo ordenhar!...
Deliciei-me
como esteta, portanto, ao ler passagens como estas, de antologia, pelo sábio
recorte da frase, pela força que delas se desprende:
D.
Ordonho «mostrava-se prudente nas resoluções, atento nas causas, justo nas sentenças,
compassivo para os súbditos, para os indignos severo» (p,. 21). Quem não gostaria
de ter um retrato assim?...
«De
uma e outra parte se deu sinal para acometer; sucedeu ao sinal o furor, ao furor
o estrago» (p. 27).
«Entre
chuveiros de setas que, despedidas do arco, turbavam os ares, se empenhava com
acordo a espada e se brandia a lança, não se percebendo já mais do que gemidos tristes
dos que, sendo alvo de tão feroz impulso, soltaram em ais os últimos alentos»
(p. 28).
«[…]
Infundindo mortal assombro nos inimigos, lhes fazia desmaiar no coração os
alentos, no braço a força, na mão a lança» (p. 29) – Um assombro de síntese!
«Chegou
enfim a hora em que a aurora, com boca de riso, ordena às estrelas que se
recolham, manda às sombras que desapareçam; e ao mesmo ponto deram ordem também
os generais católicos aos seus soldados para se disporem novamente à batalha»
(p. 37). Desta feita, porém, o inimigo escapulira-se pela calada da noite;
assim não fora, e voltaríamos, pelo jeito, a ter descrição bem poética das
espadeiradas brandidas, de modo a que os vencidos haveriam de levar «nas
feridas as melhores testemunhas do bem que cortavam as suas espadas» (p. 30)…
Fica-nos
da amostra a vontade de «ler mais» – qual convite actual nas redes sociais… Saber
como foram realmente essas lutas dos séculos IX e X, integradas na Reconquista,
que viriam patentear a individualidade portuguesa, a desembocar na criação do
Condado Portucalense. Será o Condado esse Portugal
Renascido?
José
d’Encarnação
Publicado em: Gazeta do Interior (Castelo Branco), nº
1645, 01-07-2020, p. 6; e em Reconquista (Castelo
Branco), nº 3877, 02-07-2020, p. 27.
Um belo texto, este, sobre LEITURAS IX, de António Salvado, que se ocupa do PORTUGAL RENASCIDO de Frei Manuel da Rocha, do núcleo fundador da Academia Portuguesa de História. Quando Historiador e Poeta convivem na mesma pessoa, é difícil que o segundo não se sobreponha ao primeiro, pela beleza estilística do discurso. E as passagens aqui apresentadas por José d`Encarnação ilustram-no muito bem. Prosa poética da melhor, embora fique o apelo para revisitar os momentos que à História dizem respeito. Gostei muito desta leitura, a que não falta o toque de humor sobre o tão extenso (mas tão limitado, às vezes) conhecimento das novas tecnologias: Ordonho? Não...o que é isso! Ordenhe é que fica bem...
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