quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Santo António nos cantares da Beira Baixa

       Prossegue António Salvado na sua mui louvável saga de publicar em livro o que despretensiosamente intitulou de «Leituras». Ecos, na verdade, de leituras feitas, mas que vale a pena partilhar, por serem reflexões oportunas.

            Desta vez, o nº XII da série, traz a chancela da Universidade Sénior albicastrense, por ter sido aproveitado já em Julho deste ano de 2020 para uma palestra no seio dessa instituição, evocando, em 30 páginas, Santo António, aqui considerado não apenas como homem, orador e santo, mas também como «personagem» na poesia popular da Beira Baixa.

            Traça-se, por conseguinte, mui brevemente, a biografia de Fernando Martim de Bulhões, nascido em Lisboa pelo ano de 1190, que viria a falecer em Pádua em 1231.

            Num segundo apartado, revela-se a sua cultura, os dotes oratórios que pôs ao serviço da comunidade, destacando o autor «o combate aceso às injustiças sociais, o elogio da humildade, a veemência posta na expressão da paixão apostólica; o calor humano, enorme, continuamente enriquecido no testemunho do amor por todos aqueles que mais sofrem na sua miséria quotidiana» (p. 10).

            Merece referência especial o quadro do século XVI que retrata o santo e que se mostra no Museu Tavares Proença, atribuído a Grão Vasco ou a Francisco Henriques.

            Ao santo milagreiro de todos bem conhecido – mormente activo em questões amorosas, que chegou a ser elevado ao posto de coronel, pelo incontestável apoio dado às tropas portuguesas, nomeadamente ao Regimento XIX de Cascais, na batalha do Buçaco, e como tal recebia tença – dedica António Salvado maior atenção, por não estar ausente na poesia popular da Beira Baixa.

            Desde logo, num bem curioso “romance” recolhido na Sertã, em que o Santo contribuiu para mostrar a inocência de um presumível assassino já condenado. Depois, o responso, dito por todo o país, quando algo se perdeu e quer achar. António Salvado transcreve a versão de Vila Velha de Ródão e a de Proença-a-Nova. Finalmente, algumas das muitas quadras dedicadas a Santo António em voga por Idanha-a-Nova.

            Apresenta o autor, a terminar, um conjunto de 80 frases retiradas das OIbras Completas editadas pela Lello e Irmão, do Porto, em 1987, na tradução de Henrique Pinto Rema. Uma selecção naturalmente «muito difícil», devido à «inexcedível, singular e diversificada riqueza dos conteúdos dos textos».

            Óbvio é, no entanto, que por elas perpassa também o pensar do seleccionador, a sua alma de poeta, de filósofo, de interventor. Quando lemos «O adulador serpenteia, o detractor injecta veneno» ou «A rapina respeita às pessoas altamente colocadas; o furto, às de baixa condição», frases lapidares até a lembrar a escalpelizadora poesia de um António Aleixo, não estaremos longe da verdade se ali escutarmos também o cúmplice enleio de um outro António (e vão três!), o Salvado!

            Desde muito jovem que me habituei a recrutar das leituras as frases para mim mais significativas e sinto-me contente por, já então, a minha noção histórica (digamos assim) estar alerta. É que dos livros indiquei sempre a data e local de edição, assim como a página donde retirei a passagem. E porque é que falo nisto? Porque – devido a, na Internet por exemplo, encontrarmos sentenças célebres dos mais variados autores – nada se explicita do livro ou circunstância em que a sentença foi escrita ou proferida.

            Dou um exemplo: ainda não consegui saber qual o autor da conhecida máxima do homem, da árvore, do filho e do livro. Lê-se num dos diálogos entre Jacinto e Zé Fernandes, em A Cidade e as Serras, romance publicado em 1901:

                « – É curioso… Nunca plantei uma árvore!

                – Pois é um dos três grandes actos sem os quais, segundo diz não sei que filósofo, nunca se foi um verdadeiro homem… Fazer um filho, plantar uma árvore, escrever um livro. Tens de te apressar, para ser um homem».

                Por conseguinte, ou porque desconhecia mesmo ou porque não lhe apeteceu investigar, Eça preferiu escudar-se num vago «não sei que filósofo». Uma coisa fica certa, porém: antes de 1901 já o dito era comum e, por isso, não pode ser atribuído a personalidades do século XX!...

            Não vou ao extremo de solicitar, neste caso de «Leituras XII», que de cada frase se tivesse indicado a página, porque se menciona a edição. Foi mero aparte meu, embora não estejamos livres de, mais dois menos dia, «O adulador serpenteia, o detractor injecta veneno» venha a ser considerado ‘dito popular’ sem autoria atribuída! Sinal de que o Povo o adoptou – e é um bom sinal; sinal de que a sua autoria se perdeu ‘na noite dos tempos’ – e, do ponto de vista histórico, esse não é um bom sinal. Lá teve o Eça de se escudar num vago «não sei que filósofo»!... Aqui, sabemos que foi Santo António!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado no jornal Reconquista (Castelo Branco), 20 de Agosto de 2020, p. 27. 

 

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