quinta-feira, 8 de abril de 2021

O Sonho ao leme do teu batel!

 
          Silêncio. Embala-me o cadenciado e metálico tiquetaque do relógio, pêndulo a marcar, inexorável, os segundos do meu viver. Tenho o olhar fixo na distância. Não mo cativa nenhum dos objectos da sala e, nessa distância, com ele o pensamento voa. E sonha. Sonho que é, neste caso, fuga da realidade invisível, por se querer alojar onde sinta o aconchego.
              Vibrou a meia-hora.
            Ao jantar, eu remirei a cortina presa daquela tela antiga, de 1996, de Nélio Saltão. Saltei por cima da romã e do marmelo e parei na cortina da janela. Ilusão minha até hoje: não é branca nem pura, como eu sempre a vira – povoam-na, afinal, indefiníveis reticulados, a catapultar-me para um outro mundo. Esse, o do sonho. Onírico, dirão os estetas da linguagem.
            Daquela natureza morta dos primeiros anos, zarpou Nélio Saltão, de rumo bem definido.
            A cor.
            As cores.
            Sem regra, sem régua. Sem forma legível. Não são quadros para ler – são veículos para sonhar. Tu imaginas. Tu navegas nessas pretensas geometrias e vais além. Além!...
            Manchas de cor? Não! Mancha é palavra negativa e, aqui, o impulso é positivo.
          Imagino Nélio Saltão diante da tela virgem. Que irá sair dali? ¿Terá sido o desabrochar lento, carmesim, dum botão príncipe negro a inspirá-lo agora e, impossibilitado de ali espelhar o seu bem sedutor perfume, deixou a trincha mergulhar, delirante de prazer, nesta cor e mais naquela e naqueloutra?
          Júlio Pomar, em Da Cegueira dos Pintores (p. 127), fala da «motricidade corporal do gesto: movimento do dedo, do punho, do cotovelo, do ombro, o golpe de rins, o corpo todo do pintor na refrega».
            Não imagino Nélio Saltão em refrega. A serenidade que das suas telas se desprende (ou serei eu que, sereno, me deixo embalar por elas?), tal serenidade não requer luta nem labuta mas sentimento!
            Sem títulos as pinturas. Nem os poderiam ter. Têm nome os sonhos? Não podem.
         Horas infinitas tentaram perceber o sorriso da Mona Lisa. Outras mais, ininterruptamente, a esmiuçar pormenores da Última Ceia de Leonardo ou do Guernica de Picasso. Os quadros de Nélio Saltão não são para perscrutar nem permitem esmiuçamentos – contemplam-se!
 
«Pintura sem prazo certo e sem destino». Óleo sobre tela.

          
            Senta-te aí, tranquilamente; deita os olhos a passear pelas cores; abstrai-te do resto do mundo – e o Sonho tomará posse de ti e sentir-te-ás a navegar, suave, num pélago multicolor, onírico…
            Depressa compreenderás que é ele, o Sonho, que está, na verdade, ao leme do teu batel!

                                                      José d'Encarnação                                              

Publicado no catálogo SALTÃO – Geometria Imperfeita. São Mamede Galeria de Arte, Lisboa, Maio 2021, p. 78.

 

1 comentário:

  1. Serenidade, é como posso traduzir os últimos minutos embalada pela beleza lírica deste texto. Com ele visualizei a "motricidade corporal do gesto" nos quadros de Nélio Saltão. Fui o Tempo (porque nós somos o Tempo, povoamo-lo) nestes momentos de deleite que o texto proporcionou. Nunca tinha reparado, ou não me lembrava, que podemos facilmente entrar noutra dimensão mergulhando os olhos numa tela, Fazêmo-lo através da composição, da cor e dos sentimentos que afloram. E a copa da ramagem lá fora pode esperar enquanto o sonho dura. Um grande abraço, querido Amigo. O texto é maravilhoso.

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