terça-feira, 7 de maio de 2024

As bicadas de Camilo

            Houve um sábio que escreveu: “Temo o homem dum só livro". Já se não sabe bem quem foi; a máxima não deixa, contudo, de ser válida, independentemente de quem a concebeu. Plasma a frase a convicção de que se tratará de alguém cabeçudo, avesso à pluralidade.
Gosto, porém, de pensar que tem cada um de nós um livro de cabeceira, de leitura frequente, ainda que não única.
Aconteceu-me que, ao dar uma vista de olhos pela estante, Noites de Lamego me chamou a atenção e decidi voltar a ler, agora, evidentemente, com olhos bem diferentes dos que eu tinha em Julho de 83.
          Interessaram-me, sobretudo, as bicadas de Camilo Castelo Branco. E de duas delas, de carácter político, ora se dá conta, ainda que sabendo ser A Queda dum Anjo, o suprassumo da sua sagacidade.
Sagrara-se vitorioso o Duque de Saldanha, arauto da Regeneração. E logo “todos os talentos e capacidades se identificaram com a regeneração; triunfaram em 1851 às ideias de 1846”. Gonçalves Basto, porém, que, no seu jornal, tanto apoiara o  “dadivoso duque”, foi esquecido pelas suas mãos-rotas, ele que até já fora cônsul em Vigo e condecorado na Ordem de Nossa Senhora de Vila Viçosa!
Do comendador Inácio José Leituga, do concelho de Cinfães, “pessoa abastada, bom vizinho e de mui sãos costumes e notória cristandade” conta Camilo que, após ter dobrado, em doze anos, a sua fortuna, “a consideração pública no seu concelho tocou o apogeu. Foi juiz ordinário em 1841, administrador em 1844, presidente da Câmara em 1845 […], foi comendador da Conceição em 1852 e eleito deputado […] em 1854”.
Nessa condição, acreditado “pela modéstia e sisudeza do silêncio”, “conseguiu empregar uns dezanove parentes que tinha em dezanove lugares. Virtude rara! Porque há deputados que fazem despachar dezanove parentes para trinta e oito lugares.”

Estava-se em meados do século XIX.

 

José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 864, 01-05-2024, p. 10.

 

1 comentário:

  1. Tudo proporcional aos tempos, mas as misérias humanas são intemporais.
    Atrás do ganhador alinham-se mil sorrisos para a foto, ou para garantia de que lhes será devido um lugar (há sempre quem seja vítima da ingratidão).
    Depois o milagroso poder da fortuna, capaz de transformar pedras em santos adorados num raio de muitas milhas.
    Finalmente the jobs for the boys do ramo familiar, biológico, ou de amiguismo. E era nesta vertente que eu apoiava a opinião de que tudo é proporcional aos tempos...
    Hoje é preciso alimentar mais bocas "famintas".
    Finalmente é bom revisitar Camilo, um génio.
    Grande abraço.

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