domingo, 3 de agosto de 2025

Conversar com flores

 

Reparaste em mim. Fico feliz. Viste as minhas florinhas? Sabes, ninguém repara nelas e a mim custa-me! Ah e a mim cortam-me! Nunca me deixam crescer. É raro eu conseguir mostrar a beleza das minhas corolas. Qualquer gretazinha em muro ou no chão me serve para eu me aninhar e viver. Vivo de pouco e cá vou ficando, enquanto me deixam. A ver as pessoas que passam. Tenho sempre um medo terrível que me pisem.

Vejo o teu cão, vejo os pardais e as rolas e os melros a beberem e, por vezes, a tomarem banho na pia que lhes destinaste. É a vida à minha volta. Eu gosto. Depois, aqui escondida na dobra deste degrau, sinto quantos entram e saem da tua casa. Apressados, uns; mas, de um modo geral, tranquilos, sem correria. Oiço o trinco do portão a avisar-me: «Vem gente!». Eu fico curiosa: «Quem será?».

 

Fotografaste-me com a sábia aplicação identificativa de plantas e, já percebi, ficaste a saber tudo sobre mim. Até deste um pulo – bem eu vi! – quando, arqueólogo como és, te apercebeste do meu nome: ruínas! E a seguir vem informação sobre o cientista que, pela primeira vez, me identificou: o botânico alemão Philipp Gaertner (1754-1825). Chamou-me cientificamente, em língua latina (fiquei toda babada): Cymbalaria muralis! Já viste? Nome bonito. Muralis, porque o meu reino é o dos muros, como tu, que gostas de encontrar as estruturas arqueológicas. E cymbalaria é giro, não é? Nada tem a ver com o cimbalino do pessoal do Porto, nome de bica por lá, devido à máquina La Cimbali que o prepara. Mas, se calhar, até tenho algo a ver com isso, porque… Olha lá o que diz o dicionário acerca de cymbalum, o címbalo: «Instrumento musical constituído por dois pratos ocos, de metal, que soam quando batem um no outro». Eu acho que não emito som nenhum. Mas gostava. Já viste o que era eu a saudar melodiosamente quem pisasse o degrau e viesse visitar-te? Já agora, diz-me lá o que mais dizem sobre as minhas características.

Está bem, faço-te a vontade, embora esta linguagem dos botânicos seja um tudo -nada hermética: «Erva vivaz, de glabra a pilosa, de caule até 60 cm». Puxa! Cresces bastante! Bem vejo as tuas amigas ali adiante a ganharem cada vez mais espaço, como quem se espreguiça na praia… Olha, diz aqui que as tuas flores parecem um rosto, de palato amarelo! É verdade: lembram-me as flores das orquídeas em miniatura muito miniatura. Vou mostrar aos meus amigos.

Bem hajas! Fico mesmo muito contente por teres conversado comigo. No fundo, sabes, é bem triste a vida de uma… ruínas! Acontece-lhe com muita frequência o que às outras ruínas, as das casas, sabes, acontece: deixam-nas arruinar-se ainda mais e lá vem o dia em que tudo arrasam, sem sequer fazerem o desenho do que restava. Hoje, porém, deste-me uma alegria… Obrigado!… Espera aí, não te vais embora ainda, porque tenho mais um segredo para te contar: é que eu pertenço à família das escrofulariáceas! Sabes porquê? Porque, outrora, os antigos, que percebiam dessas mèzinhas, usavam-nos para tratar das escrófulas, aquelas inflamações ulcerosas que tanto molestavam as pessoas, davam uma comichão danada e mau aspecto. Ora aí tens mais uma novidade para contar. Vês como, afinal, mesmo assim pequenina até eu servi para alguma coisa?!…

                                                                 José d'Encarnação

Publicado em Duas Linhas, 3 de Agosto, 2025: https://duaslinhas.pt/2025/08/conversar-com-flores/

sábado, 2 de agosto de 2025

O imprevisível «apoio ao cliente»

            Nunca se sabe o que vai acontecer quando recorremos ao serviço de apoio ao cliente obrigatoriamente disponível em todas as empresas. É imprevisível.
Eu não hesito em contactá-lo, sempre que se me afigure de interesse. Interesse meu ou também de eventual interesse para a empresa.
Exemplifico.
Mudaram o sistema de abertura da embalagem de um produto de meu uso habitual. Uma mudança errada. Chamei a atenção. Alteraram. Congratulei-me.
Outro caso: sem razão plausível, o cereal dum lote chegou-me estragado. Tomei nota. Fotografei. Contactei. Pouco tempo depois, recebi uma embalagem em ordem, com o agradecimento da empresa. Eu próprio agradeci. Continuei cliente.
Duma outra empresa fui recebendo brindes por ser cliente fiel. Preparei com eles, em casa, um recanto simpático, que se me afigurou passível de também ser simpático para a empresa. Nada lhe pedi em troca; limitei-me singelamente a dar-lhe conhecimento do que preparara e que nos dera gozo criar. Certamente pensaram que desejávamos contrapartidas e nem sequer acusaram a recepção da foto enviada.
 
Muitas das embalagens de uso cotidiano apresentam, num canto, a expressão «Abertura fácil». Por experiência, afigura-se-me que nem sempre é fácil de todo. Achei, porém, a embalagem de um produto nacional em que – pasmei! - a abertura era mesmo extraordinariamente fácil! Dava-me gosto abri-la os tais dez minutos aconselháveis antes do consumo. Confesso que fiquei tão contente com a escolha que fizera – andava há muito tempo à procura de um enchido saboroso e simples para o pequeno almoço… – que me decidi comunicar o meu contentamento à empresa, salientando o caso da abertura fácil com que vivamente me congratulava. Nunca recebi qualquer eco.
Além do livro de reclamações, começou também, não há muito, a disponibilização de um livro para o elogio: «Aqui também pode elogiar!». Suspeito que de pouco servirá. Elogiar? Que é que isso interessa? É pena não haver esse hábito do elogio saudável e sincero. É pena o algoritmo do serviço de apoio ao cliente também não estar preparado para responder ao elogio, à sugestão construtiva. Urge fortalecer uma mentalidade em que o relacionamento com o cliente seja efetivo, eficiente e agradável.

Publicado no jornal Renascimento (Mangualde), nº 880, 21-07-2025, p. 10.

                                            José d'Encarnação