segunda-feira, 29 de setembro de 2025

O encantamento

            «A Lara Bacelar encantou-se na noite passada, depois de uma longa espera, sem que saibamos qual a sua ligação ao mundo». 
Assim me escreveu a Maria, explicando-me que poderá ter sido a doença das vacas loucas a destruir-lhe as ligações nevrálgicas/neurológicas que a faziam corpo activo e presente. Faleceu, depois de muitos meses sem dar sinal de conexão com a vida. Encantou-se.
            – “Encantou-se”, Maria? Que queres tu dizer com isso?
           – No Nordeste do Brasil, quando alguém morre, diz-se que se encanta. Passa a ser pessoa encantada, como as nossas princesas encantadas. Adoro essa ideia. Pensar que minha mãe está encantada e que me vê quando estou na casa dela é maravilhoso!
            Guarda o léxico brasileiro, como é sabido, muitas palavras quotidianas herdadas de tempos idos, verdadeiros fósseis envoltos de eternidade. Ao chegarmos a um aeroporto, buscamos aí as bagagens depositadas numa esteira rolante e não no tapete; ‘esteira’ é muito mais nosso, próximas das nossas raízes, da palavra latina storea… E, sabe-se, é nos ambientes concretos, rurais que  de ‘esteira’ se fala.
            Tanta vez que há referência às vetustas histórias das mouras e das princesas encantadas. Dormem um sono eterno, que só por milagre junto delas chegará o príncipe capaz de as desencantar. O beijo que há milénios está a tardar!
            E porque será que descobrimos, um dia, quantas histórias estão ligadas entre si, qual invisível cordão umbilical transmissor de Sabedoria?
            «Quando se ama uma flor plantada numa estrela, sabes, é um encanto, à noite, olhar para o céu: todas as estrelas estão floridas!» – explicava o Principezinho à Raposa.
            Um encanto.
            Encantamento.
            Uma outra dimensão, de que, afinal, tão poucas vezes nos apercebemos.
          Agora, foi o encantamento da Lara Bacelar. Um murro no estômago, porque diariamente se esperava um milagre. Os que de perto com ela conviveram poderão aperceber-se, agora, que o milagre foi outro: acutilante, eloquentemente loquaz na branca suavidade do silencioso encantamento.

                                                                                  José d’Encarnação

                        Publicado em Duas Linhas, 27-9.2025:
                        https://duaslinhas.pt/2025/09/o-encantamento/

 

 

1 comentário:

  1. De: M. Conceição Lopes
    Enviado: 29 de setembro de 2025 10:59
    Pois é,
    Quando encontramos o vocábulo encantamento para a partida não há retorno. É esse o termo; esse mesmo.
    Guimarães Rosa, no discurso de posse da Academia Brasileira de Letras disse: “A gente não morre, fica encantado”. Ele é o mesmo homem que disse que Tudo o que muda a vida vem quieto no escuro, sem reparos de avisar.
    Ainda bem que também adoptou o termo; afinal é só uma partida para outra dimensão.
    Um pouquinho da ligação com D. Sebastião:
    Há quem defenda que O fenómeno do "encantamento” poderá estar ligado à lenda do rei D. Sebastião, que desapareceu em Alcácer-Quibir. A crença de que ele estava "encantado" e voltaria para salvar Portugal criou uma forte tradição de esperança e de crença num retorno milagroso. Essa crença espalhou-se pelo Brasil, particularmente no sertão nordestino, onde D. Sebastião jaz encantado, na Pedra do Reino de S. José de Belmonte, na Paraíba (local fantástico).

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