domingo, 5 de junho de 2011

Ir à praça - um ritual que vai reviver

Ir à praça a Cascais, nas décadas de 60 e 70, era um dos rituais semanais a que os vizinhos não faltavam. Ia-se comprar legumes, peixe e até carne; à quinta (nessa altura, era à quinta), tinha-se a feira onde se comprava de tudo. Todavia, a ida não era apenas por questões de mercancia: a praça era ponto de encontro, onde se sabiam as novidades, num mundo – apesar de tudo – ainda muito pequeno, em que quase todos se conheciam.

Era o mercado saloio. A freguesia de Cascais não conhecera o surto urbanístico que viria a ocupar os muitos terrenos de cultivo, nomeadamente hortas nos vales irrigados, por exemplo, pelo Rio dos Mochos. Couves, nabos, cenouras, árvores de fruto e flores, muitas rosas… faziam parte integrante de uma paisagem, em que o rio, transbordando no Inverno, generosamente a fecundava.
Aos saloios de Birre, Torre, Areia e Cobre se juntavam, naturalmente, os da Malveira da Serra e de Almoçageme, numa época (explicite-se) em que essa era a única praça existente.
Acompanhei minha mãe muitas vezes. Cheguei mesmo a ir com ela ao que funcionou no local onde mais tarde se fez o Pavilhão do Dramático e os feirantes se aninhavam junto ao muro da Parada… Mas aquele de que mais me lembro é o da Ribeira das Vinhas.
E aí encontrava minha mãe as amigas. Iam e vinham nas mesmas camionetes (como se dizia) – e os responsáveis da Palhinha sabiam bem que, nesses dias, haviam de fazer desdobramentos quer de manhã cedo quer a partir das onze horas. Comprava as batatas sempre à mesma senhora, creio de Almoçageme, conhecida de longa data; a carne no talho de sempre (o dono já sabia bem de que é que ela gostava); os alhos num vendedor, as laranjas noutro… Enfim, dava a volta à praça toda e perguntava pelos preços (não estavam nunca marcados, não havia esse hábito) e regateava, naquele jeito de algarvia com costela de moira, sempre pronta a não ficar na mó de baixo…
Um mar de gente – o rico e o pobre, a senhora e a criada, o forasteiro e o cascalense…

O peixe
O peixe merece lugar à parte.
Era sobretudo ao sábado que mais se pensava nele. E também na ‘praça do peixe’ havia varinas preferidas: para o berbigão, a caldeirada, o patarroxa (para a sopa de cação), a sardinha, a sarda…
Dizia-se, há pouco, da Palhinha. Nessa altura, as varinas que, durante a semana, demandavam os lugares rurais serviam-se da carreira para lá levarem a canastra. Era a «menina Sara» que fazia o giro da Torre e Birre; a Carolina que depois passou a ir para a Malveira (salvo o erro)... Carreiras havia a da Torre, uma das primeiras que se criou para os arredores da vila, após a construção do «bairro», que, na década de 60, trouxe para ali muita gente e a abertura do prolongamento da Rua Joaquim Nunes Ereira desde o vale do Rio dos Mochos até à Torre, porque, antes, nós íamos por atalhos matos fora. E havia a do Guincho, mais rara, mas a única que servia Birre e Areia.
Peixe tinha-se sempre de comprar na praça e a garantia de ser fresquinho sabia-se, porque a lota no-la dava. (Hoje, as vendedeiras queixam-se, porque o projectista se esqueceu de… ir ver como era e calculou mal a altura das bancadas… Acontece – a quem cria em gabinete fechado!...).

As cheias
Foi o mercado novo, nesta sua configuração circular, inaugurado em 1952.
Não havia, nessa altura, a forte consciência que hoje se tem da preservação do meio ambiente, da necessidade de não ocupar o leito de cheia, porque… não se ocupava, pronto! Não era preciso e as pessoas ainda ouviam a voz da razão e a dos antepassados. Vozes que se reergueram contra a localização numa baixa, nomeadamente por se ter encanado ainda mais a Ribeira das Vinhas. Na verdade, não haveria grande problema se se mantivessem permeáveis os solos a montante…
Tal não viria a acontecer e as cheias de Novembro de 1983 mostraram que a opção não fora, de facto, a melhor.

A nova face do mercado

Em Dezembro de 2005, atendendo a que importava renovar estruturas, a Câmara lança, para esse efeito, um concurso público de ideias, a nível internacional, com vista a obter propostas para a requalificação do mercado e sua zona envolvente, de forma a se proceder, assim, «à sua valorização e animação, numa perspectiva turística e cultural».
Refere-se – e muito bem – a «perspectiva turística», porque, na verdade, em todos os desdobráveis da assassinada Junta de Turismo da Costa do Estoril o mercado saloio era apresentado como um dos ex-libris da vila.
A 28 de Junho de 2006, dava a Câmara a conhecer os resultados desse concurso, destinado (repetia-se) a revitalizar «uma área nobre do centro histórico da vila, cuja reconversão tem um forte potencial». Declarando que «os critérios de avaliação dos projectos assentaram em factores como a qualidade, a complementaridade face aos objectivos indicados e a exequibilidade da proposta», o resultado do concurso, homologado em 30 de Maio de 2006, colocou em 1º lugar Marco Neri; em 2º, a empresa Arkibyo – Arquitectura e Urbanismo, Lda; e, em 3º, Bernardo Almeida Lopes. Em Setembro, fez-se no edifício do antigo quartel dos bombeiros a exposição do projecto ganhador – e aí se fala também em «Parque Urbano da Ribeira das Vinhas»!…
Em finais de Abril de 2009, já o mercado se apresenta «de cara lavada» – para usarmos a expressão de um dos periódicos locais – com nova pintura, novo pavimento e, sobretudo, embelezado com grande painel de azulejos encomendado à Cerâmica de Bicesse.
São esses azulejos – concebidos por Teresa Posser de Andrade, que os pintou juntamente com Susana Bretes e Carlos Ramiro – que hoje podem constituir também um dos motivos de superior encanto do mercado, ainda que, na verdade, se nos afigure que poderiam ser mais publicitados.
Há, na sua concepção, um misto de ingenuidade e de cor local, pois não se objectivou ser rigoroso do ponto de vista histórico ao conceber as cenas e os edifícios aí representados: por exemplo, o vendedor de castanhas está numa esquina do edifício dos Paços do Concelho, mas vêem-se, do lado esquerdo (e devia ser por detrás), os edifícios sobranceiros à ‘muralha’ da Praia dos Pescadores. Mas há cor local: o palácio dos Condes de Castro Guimarães; o farol de Santa Marta e a Casa de Santa Maria; a Praça 5 de Outubro; uma panorâmica idealizada da vila, porventura a partir da Rua Marques Leal Pancada. E a leiteira, o vendedor de perus, o saloio da Malveira e o seu burrico e os moinhos de vento de velas enfunadas nas colinas…
Se o ritual da ida à praça vai reviver? Claro que vai! Os tempos que correm suscitam cada vez mais esse retorno à compra e venda directamente ao produtor. E as hortas vão renascer!

Publicado na revista Sekreta (Cascais), Janeiro 2011, p. 8-9 [ver reprodução a seguir]


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