quinta-feira, 2 de março de 2017

O espremedor de sumos

       Já percebi que me não posso dar ao luxo de ter tudo à mão de semear. É bonito ter os vários dicionários a jeito para só virar a cadeira e pegas num e fica a dúvida resolvida. Ou então, já tens prática de ir ao Google, sabes usá-lo com perícia e são critério e tens tudo à distância de um clique. Podes, por conseguinte, passar a manhãzinha sentado diante do ecrã do computador (já mudaste de óculos, para não cansar a vista…), sem teres de te levantar para ir à prateleira buscar o cartapácio, que, aliás, o Google também já fez o favor de digitalizar para ti e a ele acedes, por isso, num ápice.
      És capaz de, ao levantares-te para o almoço, sentir assim como que um tolher de pernas, a necessidade de te espreguiçar, mas dizes logo que isso passa. Passa hoje, passa amanhã, passa semanas a fio. E, de um momento para o outro, ai que tenho de ir para o ginásio, que já não me aguento bem nas pernas!...

Apesar da sua (relativa) provecta idade, o Baltazar
dá o exemplo: uma boa caminhada diária pelo jardim...
      Temos, na verdade, nós, os escritores, a vida bem simplificada, mormente se soubermos lançar mão a todos os recursos que o dia-a-dia nos oferece, desde que, repita-se, se não descure o físico, o movimento até à estante, o esticar as pernas durante uns dez minutos para ver – nós, os burgueses… – se o jardim está mais florido ou se as lagartas andam por i ou se o sr. Baltazar (o cágado) decidiu já hibernar ou quer comida…
      Deu-me para aqui, hoje, amigo leitor, e peço desculpa, porque necessito de lhe dizer que é bem verdade aquele aforismo que reza assim: «Aprender até morrer!». E eu, esta semana, aprendi duas coisas – e depois chamei-me de estúpido.
      Primeira: esqueci-me da palavra-passe para aceder às mensagens do telefone fixo; não a apontara em sítio nenhum e já estava a dizer para comigo: «Ora, se precisarem de mim, voltam a telefonar e escuso-me de me ralar. Acabaram-se as mensagens!». Levanto-me e olho para o miserável do telefone e leio, escarrapachado a branco sobre o negro, com todas as letras: MENSAGENS. Para as ouvir, bastava carregar na tecla! Tenho o aparelho há anos e lá estava eu sempre a discar o código!
      Segunda: gosto de beber, pela manhã, o meu sumo de laranja natural. Teoricamente, o espremedor tem quatro ventosas na base, que o mantêm quietinho e eu, com mãos ambas, acaricio a metade da laranja até nada lhe restar senão a casca. Aconteceu, porém, que as ventosas entraram em greve e o espremedor deu em dançar e eu a aborrecer-me com a dança. Até que descobri: agarra-me no espremedor com uma das mãos e espreme a meia-laranja com a outra, daáã!... Fácil, não é? Demorei anos a descobrir! Como, só agora que as cruzes começam a dizer que existem, é que lembro do exercício físico e da vantagem de ir vasculhar as estantes de quando em vez!

                                                          José d’Encarnação
 
Publicado em Renascimento [Mangualde], nº 703, 01-03-2017, p. 11.

7 comentários:

  1. Silva Pina, 3/3 às 8:31
    Como diz a música; "a vida é assim...". Acho que o meu amigo está em muito boa forma... na prosa. Forte Abraço!

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  2. Teresa Silva, 3/3 às 9:02
    Ah, pois! O perpétuo movimento tem o seu fundamento! Toca a mexer!

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  3. Joaquim Carvalho, 3/3 às 9:39
    Pessoas especiais como você têm em si a essência da amizade, para perfumar o mundo com amor verdadeiro. Pessoas especiais são como anjos, com dedos de condão, para tocar com magia o semblante dos que amam. São dádivas de Deus, e eu tenho a sorte de o ter como amigo em meu caminho. Grande Abraço.

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  4. Margarida Lino, 3/3 às 15:32
    Interessante, como sempre! Bj.

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  5. Fernanda Valdez Carreiro, 3/3 às 22:16
    Caro Zé Manel
    De manhã é que são elas - tudo anda à roda e são precisos mais sumos de laranja para pôr tudo em ordem! Pelo menos comigo assim se passa. Um abraço Edgar.

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  6. Aurora Martins Madaleno, 3/3 às 23:39
    Acontece termos à mão e ao pé sem vermos nadinha... Depois, rimo-nos de nós próprios. É um sabor esta vida! Gostei de ler "O espremedor de sumos", claro. Isto faz bem à alma.

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