quinta-feira, 9 de março de 2017

O sangue do dragão escorre em Cascais…

            ‒ E olha aquela árvore ali! Só tem ramos lá em cima, parecem longos dedos, não vês? Coisa do outro mundo deve ser! Vou cortar um!...
            Deu, porém, um largo passo atrás e decerto desataria a fugir se o companheiro o não parasse. É que, da ferida, começara a escorrer um líquido leitoso, sangue, como se a árvore fosse um ser humano que duende antigo nele o houvesse transformado!
            ‒ É um dragão, só pode ser! O melhor é voltarmos já para a praia!
            Assim imagino eu o primeiro encontro, no século XV, dos portugueses com a singular árvore do dragoeiro, ao penetrarem um pouco mais na vegetação da ilha da Madeira, tão estranha é, de facto, a sua configuração.
            Pouco a pouco, porém, os colonos que foram povoando a ilha, terão perdido o receio e arriscaram-se a observá-la mais de perto. Deitava um sangue bem vermelho; pelo estranho aspecto, parecia, de facto, poderoso dragão – daí o nome que lhe puseram. Tingia as mãos e as roupas, mas, afinal, não fazia mal nenhum. Antes pelo contrário! Por isso, o sangue do dragão, sanguis draconis, depressa começou, sem grande alarde, a ser usado em tinturaria e, até, em fármacos (ainda será possível, quiçá, encontrar em farmácias muito antigas um frasco com esse rótulo). Considera-se, por tal motivo, uma árvore protegida, por correr risco de extinção.
            Na Madeira, os últimos temporais (mormente os do Outono de 1982 e Fevereiro de 2010), arrancaram os dois exemplares seculares selvagens que haviam resistido à acção devastadora dos homens e das intempéries. Há-os nos Açores e nas Canárias, onde o dragoeiro chegou a constituir a árvore sagrada do povo guanche, assinalando os locais onde deveriam ser realizados, de preferência, os tradicionais rituais religiosos; é, também por isso, aliás, o símbolo da ilha de Tenerife

Uma mata desprotegida
            Pelo seu clima, Cascais assume-se como território propício à propagação do dragoeiro. Que eu saiba, existe um no jardim duma das vivendas do Bairro das Chetainhas, na Charneca; há outro, secular, na cerca do Hospital de Sant’Ana, na Parede; a Associação de Moradores da Quinta da Carreira (S. João do Estoril) adoptou-o como logótipo, por na Quinta existir um, vetusto também.
Dragoeiro da Quinta da Carreira (S.João do Estoril)
            Já aqui tive ocasião de me referir à mata de dragoeiros, que há à entrada do Parque Palmela. É a maior do País e será, porventura, uma das mais desconhecidas, inclusive das autoridades que pela sua preservação deveriam zelar.
            Explico-me.
            Vasco Manuel Almeida da Silva, do Centro de Ecologia Aplicada “Prof. Baeta Neves” (Instituto Superior de Agronomia), escreveu, numa revista especializada espanhola (Borteloua, 21, 2015, p. 123-133), o artigo «A mata de dragoeiros do Parque Palmela em Cascais (Portugal), contributos para a sua valorização. Aliás, já em nota inserida no Jornal de Cascais (28-03-2012, p. 4), eu me congratulara com o facto de ter sido, então, esse conjunto classificado como “de interesse nacional” pela Autoridade Nacional Florestal (Aviso n.º 5/2012).
Recanto da mata de dragoeiros do Parque Palmela
            Ora acontece que, apesar de havermos insistido, ainda se não deu à mata a atenção devida e não se logrou arranjar outra colocação para o painel publicitário que a oculta. Nesse sentido, enviou-me Vasco da Silva mais um alerta, a 19 de Janeiro último:
            «Quando passava no carro pelo Parque ia avistando intervenções na Mata e romanticamente visualizava uma pedra a ser arrumada no trilho, um pinheiro a ser desbastado em favor de um dragoeiro, a amontoa de terra no pé das eufórbias para sustentar o seu porte...
            Na realidade houve um corte (e bem!) de um pinheiro, mas de mais duas eufórbias que passaram a cepos... e os arranjos resumem-se ao cimentar das estruturas em pedra, paisagismo digno da década de 80...
            Tanta ignorância, Cascais! Quem acode ao seu património?».
            Entre os dragoeiros, havia, na verdade, quatro exemplares de Euphorbia piscatoria (Aiton), cuja classificação como ‘de interesse nacional’ também já fora proposta, dada a sua raridade; tem o nome comum de figueira-do-inferno e curiosas flores; agora, são cepos!…
Um painel publicitário que poderia mudar de lugar...
            E assim, por detrás de um painel publicitário que teima em ficar, vai escorrendo, ingloriamente, por Cascais, o precioso sangue do dragão!...

                                                                     José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal, nº 177, 09-03-2017, p. 6.

 

12 comentários:

  1. Estive a observá-los esta semana. São árvores raras, que merecem um painel adequado com a narrativa aqui exposta pelo José d'Encarnação.

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  2. Aurora Martins Madaleno 9/3 às 1:42
    Vale a pena divulgar que há dragoeiros nos Açores e nas Canárias, "onde o dragoeiro chegou a constituir a árvore sagrada do povo guanche, assinalando os locais onde deveriam ser realizados, de preferência, os tradicionais rituais religiosos; é, também por isso, aliás, o símbolo da ilha de Tenerife".

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  3. Aurora Martins Madaleno 9/3 às 1:44
    Gostava de partilhar esta questão dos dragoeiros de Cascais.

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  4. M. Teresa Guimarães 9/3 às 7:24
    Havia um em S. João do Estoril, que é o símbolo da AMQC - Associação de Moradores da Quinta da Carreira.

    O meu comentário (J. d'E.): Há e é mesmo, como se diz no texto, o logotipo da Associação de Moradores. De resto, pus a respectiva foto a ilustrar o texto.

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  5. Miguel Lacerda, 9/3 às 7:44
    Parabéns, Professor, sempre atento e oportuno. Bem haja!

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  6. Maria Conceicao Neves, 9/3 às 9:23
    Por este andar, se não se apressam a divulgar a importância desta árvore, que pelos vistos é desconhecida, pela sua raridade, já lhe cortaram o mal pela raiz.

    Meu comentário (J. d'E.): Estes comentários vão contribuir, sem dúvida, para valorizar essa pequena e simpática mata.

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  7. Rui Aço, 9/3 às 9:41
    Meu Caro José d'Encarnação, permita acrescentar que o Dragoeiro faz parte da heráldica militar da República de Cabo Verde. Projecto de medalhística que dirigi. Abç Rui

    Meu comentário (J. d'E.): O que a gente aprende! Bem haja, Rui!

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  8. Manuel Rei Vilar 9/3 às 11:37
    Tens toda a razão em chamar a atenção para essa mata de dragoeiros. De facto se não cuidarmos do nosso património natural ninguém o vai fazer em vez de nós. A Câmara Municipal tem a obrigação de o fazer, mas talvez lhe falte a sensibilidade ou será mesmo por ignorância. Esperemos que tu os consigas sensibilizar para arrancarem o painel de publicidade e indicarem a existência deste pequeno tesouro que dignamente está instalado na nossa Terra. Muito obrigado por o teres feito!

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  9. Jesús Rodríguez Morales, 9/3 às 13:20
    Dónde hay que firmar para que lo quiten?

    Meu comentário: Bem hajas, Jesús! Creio que, por enquanto, não será necessário fazer uma subscrição pública, pois, como se aproximam as eleições, é natural que também este seja um gesto inolvidável!

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  10. Norma Musco Mendes, 10/3 às 1:00
    Muito bacana!!! Não conhecia esta árvore.
    Meu comentário: Pois é, querida Norma, ta´mbém por aqui - e não apenas no bem fecundo Brasil! - temos árvores... bacanas!

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  11. Rui Pais de Amaral, 11/3 às 10:56
    Só mais uma "achega": O dragoeiro da Quinta da Carreira encontra-se protegido como "de interesse público", conforme o DR nº 233 de 1995set26, com Declaração de Retificação no DR nº 100, de 2002abr30. Abraço.

    Meu comentário: Boa achega, Rui! Bem haja!

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  12. Ana Teresa 12/3 às 13:29
    Curioso! Desconhecia completamente, agora vou ficar mais atenta ao Parque Palmela!

    Meu comentário: Reserva-nos o Parque Palmela muitas surpresas! Vale a pena dar um passeio por lá. E descobriremos medronheiros, alfarrobeiras... Recantos de flora mediterrânica mesmo à beirinha do Atlântico! E lá dentro, em meio das árvores, quase nem se dá pelos «monstros arquitectónicos» que lhe plantaram ao lado!... :)

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