terça-feira, 11 de abril de 2017

E uma pessoa sente-se abalroada!...

            Acedi de muito bom grado ao gentil convite que, por intermédio do seu dinamizador, Jorge de Castro, me foi endereçado pela equipa responsável, ao longo dos anos, pela manutenção destes regulares encontros, para prefaciar o livro que reúne, em jeito de balanço, o que foram cem sessões de Noites com Poemas.
            Acompanhara de perto a programação, ainda que não me haja sido possível dela beneficiar, senão mui raramente, mas… cri não ser complexo alinhavar considerações acerca, por exemplo, do papel da poesia na vida das pessoas e da comunidade, a poesia como deleite, a poesia como evasão e refúgio, pausa retemperadora, lugar ao sonho, arma, consciencialização, poesia-vida, vida em poesia!…
            «País de poetas» diz-se que é o nosso, pela facilidade com que, mesmo quase «virgens de letras» (mui sugestiva classificação do Prof. Ernesto Guerra da Cal a Isolina Salves Santos), pessoas ditas do ‘nosso Povo’ põem «o seu talento em cena» (Natael Rianço) e vão por aí adiante alinhando rimas e zurzindo, como quem não quer a coisa, na sociedade ímpia que os tortura.
            Imaginei-me, pois, a dissertar, em breves linhas, sobre esse papel catártico e subversivo da Poesia (aqui com letra maiúscula).
            Eis senão quando Jorge de Castro me atira para o computador, a 1 de Abril (e não era mentira!), o rascunho do alinhamento dos textos. 259 páginas! Arregalei uns grandes olhos de admiração e fui digitalmente folheando o volume. Daí o título destas minhas linhas: uma pessoa sente-se abalroada!...
            É que essas cem noites não foram aquele mero encontro, tertúlia de amigos e de curiosos que se deliciavam a dizer versos alheios e próprios, acompanhados, por vezes, de um toque musical para espairecer. Duas horas até à meia-noite, em jeito de eficaz pretexto para um suave adormecer em braços de fagueiras musas, na feliz expectativa de um ainda mais fagueiro amanhecer! Não! «Aquilo» – um mundo! – assumiu pouco a pouco tais dimensões que imaginamos contratorpedeiro gigante e somos abalroados mesmo, sem tir-te nem guar-te! Submersos, esmagados por tão fecundo caminhar, por tão variadas temáticas, portentoso manancial de ideias, personalidades, poemas, qual enorme biblioteca de estantes bem recheadas de preciosos livros, lombadas d’oiro, ricos pergaminhos … Mancheia de Cultura!
            Conta Jorge de Castro, em «alguma história», o que foi essa caminhada. Nada mais haveria, pois, a referir e, ao concluir a leitura dessa apresentação, olhei-me e perguntei-me que mais se poderia acrescentar, inclusive atendendo à forma sempre esbelta como sabe burilar as frases e as recheia de mui delicioso conteúdo. Estive para pegar no telefone e assinar desistência. Contudo, o cursor foi descendo, descendo e sempre a mostrar um crescendo de novidades e de temas permanentemente vestidos, no título, de mui sugestiva roupagem. E fui-me deixando ficar, na expectativa…
            Uma expectativa que não resultou gorada. Longe disso! O volume que ora temos nas mãos é muito mais do que esse repositório de afectos, cumplicidades e fraternidade. Relatos concisos, mas pormenorizados, de cada sessão, palavras elegantemente manuseadas, frases brandidas como floretes em rigorosa aula de esgrima… Que expressões culturais não foram aí abordadas? Mui difícil será dizê-lo! Que a poesia, afinal, constituiu pretexto para muitas viagens outras pelos mais variegados ramos do saber!
            Podia cá fora sentir-se aquela morrinha que nos entra, incómoda, ossos adentro; podia a jornada ter sido arduamente condimentada de fel e vinagre; podiam os noticiários ter-nos mimoseado mais uma vez, como é seu timbre, com os horrores de um mundo de marionetas manobradas por mãos esquivas e gigantes… Ali, porém, como que reunidos em torno de mui acolhedora lareira, os poetas deixaram tudo isso lá fora e a Cultura docemente os envolveu.
            Uma centena de vezes, aqui miudamente ora se conta.
            Relembrando os serões, reconfortamo-nos também.
            E brota-nos, espontâneo, inevitável, deliciado, ciciado e caloroso: bem hajam!

                                                                      José d'Encarnação
                                                   
Prefácio ao livro 100 Noites com Poemas, coordenado por Jorge de Castro. Edição de Apenas Livros, Lisboa, Abril de 2017, p. 12-13. ISBN: 978-989-618-547-3. Apresentado na Feira Medieval de S. Domingos de Rana, a 9 de Abril de 2017.

Da poesia dita popular

            Estava-se no pino do Verão de 1988. Chegara-me à redacção uma mancheia de versos. Considerei-os fora do comum, despretensiosos, mas acutilantes e eivados de comovente simplicidade. Dediquei-lhes uma página inteira – e tive o privilégio de receber, dias depois, uma carta do Prof. Ernesto Guerra da Cal, a aplaudir e a explicar o fundo significado daqueles ‘poemas’.
            Depois de Isolina Alves Santos, essa poeta ‘pastora virgem de letras’, vieram Celestino Costa, Natael Rianço, o alentejano «Carola»… e uma atenção especial, portanto, por parte da Associação Cultural de Cascais, em estreita colaboração com as juntas de freguesia do concelho de Cascais, a esses lídimos representantes do Povo, porque veiculam, ainda que em linguagem ingénua e em versos ‘de pé quebrado’, o sentir de todos nós – quais novos Aleixos dos nossos dias.
            Disso se falou. E do papel fundamental que, para o seu incentivo e divulgação, através de publicações condignas, detêm as associações de defesa do património – porque de património cultural imaterial se trata –, as juntas de freguesias, as câmaras municipais. E, claro, a imprensa local e regional, como repositório primeiro desses dolorosos gritos d’alma, desses confortantes regozijos, anátemas severos ou justificados encómios!
                                                                                  José d’Encarnação

É a síntese da intervenção feita nessa tertúlia a 16 de Janeiro de 2008, publicada no livro 100 Noites com Poemas, p. 94.  Na p. 95, «Nota biográfica».


 

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