quarta-feira, 31 de maio de 2017

Os olhos ternos da felicidade

            Desta vez, preciso de pôr a data e contar do ambiente, para que se não pense que inventei, como aqueles escritores que desenrolam, com minuciosos pormenores, toda uma trama mirabolante que hauriram, garantem, em pretenso e secular manuscrito amarelecido, de muitas páginas, perdidamente encontrado em gaveta de segredo e decifrado ao longo de inúmeras noitadas...
            Não. Não vou por aí.
            Foi mesmo no começo da tarde de 20 de Maio do ano da graça de dois mil e dezassete, no comboio das 13.24 para o Cais do Sodré, em carruagem tranquila de quem já almoçou ou tem o estômago a dar horas e prefere, por isso, manter-se em jeito de letargia vital.
            Exacto. Ferrenho defensor das viagens em comboio, esse ambiente sempre foi para mim, há décadas, fonte de inspiração.
            Admiravam-se os meus estudantes, quando eu lhes dizia que escrevia no comboio os meus artigos ou aí preparava as lições ou, simplesmente, me encontrava comigo mesmo.
            E, por sinal, por uma daquelas inexplicáveis circunstâncias que a um suposto «acaso» se atribuem, caiu-me sob os olhos numa das estantes cá de casa o livro de David Kundtz, «Parar» (Lisboa, 2004), onde explica, a dado passo, que aproveita um intervalo, ainda que curto, para andar, «embora algumas vezes», confessa, «vá até a um café e, na companhia de uma chávena de chá, me ponha a observar as pessoas» (p. 86).
            Gosto de observar as pessoas. Ainda no dia anterior, estava com tempo e fui a pé do Cais do Sodré até ao Espaço Europeu, no Largo Jean Monnet, e o que eu aprendi acerca do povo que ora Lisboa tem!...
            Pois, nessa tarde de 20 de Maio, no curto trajecto entre Cascais e Carcavelos, onde eles saíram, senti a necessidade obsessiva de escrever (ando sempre com um bloquinho no bolso e lápis…) o que à minha frente se passava. E eu que, amiúde (confesso o pecado), não acredito na felicidade, dei comigo a pensar: ela está ali! Pode ser efémera, mas eu sinto-a e bem a senti, aliás, no olhar que, a certa altura, serenamente, se cruzou e fixou no meu.
            E até me deu vontade de criticar Saint-Exupéry: num dos planetas que o Principezinho visitou, ele deveria ter visto o que eu agora vi. Foi falha tua, Antoine, embora eu bem te compreenda, porque a «flor» que deixaste na estrela tal não te proporcionou. E foi pena! Podias ter posto um planetazinho mais, dedicado à Felicidade!
            Transcrevo, pois, sem correcções de agora o que então saltou ao correr do lápis:
            Deliciou-me ver aquele casal de namorados, de sorriso sereno, olhares serenos trocados, plenos da felicidade imensa de estarem juntos nesta viagem de comboio. Ele, cabelo encaracolado, barba e bigode e brinco de azeviche na orelha direita; ela, de olho azul regado pela serenidade dum céu sem nuvens, cabelo apanhado em carrapito; na orelha direita, uma argolinha e uma espiral dourada pendente; na esquerda, um «botão» negro apenas. Encostou agora a cabeça no ombro do seu amado, no fingimento dum adormecer, deliciada com as carícias que ele lhe não poupou.
            Saíram em Carcavelos; mas deram a impressão de não saber exactamente para onde ir, porque olharam para um lado e para o outro e decidiram sentar-se num banco, para mais calmamente resolverem que fazer.
            Haviam partilhado um pacotinho de bombons de chocolate. Levavam mochilas às costas. Estrangeiros seriam, em viagem de amor.
            Se a Felicidade tivesse rosto era o daqueles dois jovens o que eu imaginaria.
            Dulcificaram-me a tarde soalheira deste sábado, porque a maior parte dos outros rostos que iam na carruagem carregavam um ar tão sorumbático… Dir-se-ia que concentravam em si todas as preocupações do mundo inteiro. No mais completo contraste com os dos dois jovens que em Carcavelos deixei.
                                                                      José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal [Cascais], nº 189, 31-05-2017, p. 6.

6 comentários:

  1. Joao Paulo Gomes
    Quando viajo de comboio, e que é muito raro, vejo sempre alguém que, quando sai da carruagem, dá uma mirada nas janelas do comboio para ver não sei bem o quê... Achei quase estranho: um jovem por volta dos 15 anos com as calças a fugir das cuecas/boxers, e, após olhar para a janela duma carruagem, decidiu puxar as calças ainda mais para baixo! Aí está uma atitude que, no mínimo, acho estranha/bizarra... Ele há cada moda! ��

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    1. Há gente assim! E o comboio é um mundo mesmo! Um amigo meu mostrava sempre - no tempo dos bilhetes... - o bilhete errado ao revisor. Interpelado pelo filho, respondeu: «Já viste, filho, como é monótona a vida destes senhores, se não tiverem à noite nada para contar? Assim, este pode dizer: «Hoje, houve um tipo que me quis aldrabar mostrando-me um bilhete errado! Mas eu topei-o!»...

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  2. Aurora Martins Madaleno
    Como me soube bem a leitura deste texto, Senhor Professor!

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  3. Domingos Barradas
    Excelente e delicioso texto.
    Um abraço.

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  4. Edgar Valdez, 1/6 às 22:57
    E estavam mesmo felizes, caro Zé Manel! E ainda bem. Obgº por este magnifico exemplo de partilha. Edgar

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