segunda-feira, 13 de maio de 2019

De comer e chorar por mais!...


            Elevada a Património Cultural Imaterial da Humanidade, a ‘dieta mediterrânica’ ganhou valor a partir do momento em que os organismos nacionais e internacionais chamaram a atenção para o facto de também a alimentação constituir algo de típico a preservar.
Perante o poder do fast food, criou-se, paralelamente, o movimento do slow food; cada região começou a pensar no que deveria ser o seu prato característico; no quadro do «Projecto Comunidade-Escola», os docentes incitaram os seus alunos a entrevistar avós e bisavós, fazendo depois exposições e editando opúsculos com as receitas tradicionais; as autarquias apoiaram a edição de obras onde a gastronomia tinha também papel relevante; e as próprias instituições museológicas acabaram por dar relevo a esse elemento, hoje imprescindível, do património local.

Uma questão de identidade
            «Um povo que defende os seus pratos nacionais defende o território. A invasão armada começa pela cozinha», escreveu um dos mais conceituados autores portugueses, Fialho de Almeida (1857-1911). E, mais perto de nós, o sociólogo Boaventura Sousa Santos proclamou:
«Do mesmo modo, à medida que se globaliza o hamburguer ou a pizza, localiza-se o bolo de bacalhau português ou a feijoada brasileira no sentido de que serão, cada vez mais, vistos como particularismos típicos da sociedade portuguesa ou brasileira».
É, pois, na sequência dessa consciencialização que, a exemplo do que noutros países ocorria, o Conselho de Ministros aprovou a resolução nº 96/2000, de 26 de Julho, que «considera a gastronomia portuguesa como um bem imaterial integrante do património cultural de Portugal»:
«Entendida como o fruto de saberes tradicionais que atestam a própria evolução histórica e social do povo português, a gastronomia nacional integra pois o património intangível que cumpre salvaguardar e promover».
E aí se acrescenta, desde logo, em termos de programa:
«O reconhecimento de um tal valor às artes culinárias cria responsabilidades acrescidas no que respeita à defesa da sua autenticidade, bem como à sua valorização e divulgação, tanto no plano interno quanto internacionalmente», reconhecendo-se que «neste sentido, tem vindo a ser desenvolvido há já alguns anos um conjunto de acções visando inventariar, valorizar, promover e salvaguardar o receituário português, com o objectivo primeiro de garantir o seu carácter genuíno e, bem assim, de promover o seu conhecimento e fruição, por forma, ainda, a que se transmita às gerações vindouras».
E preconiza-se o levantamento do receituário tradicional; a criação de uma base de dados; a identificação das características que devem ter os produtos para serem devidamente certificados; a promoção com finalidades turísticas; a organização de concursos a nível local, regional e nacional…

As iniciativas e… uma sugestão!
Por toda a parte e sob (dir-se-ia…) todos os pretextos, nasceram dezenas de confrarias, com os seus rituais devidamente calendarizados, os seus trajos típicos, as mais diversas designações – Confraria do Queijo da Serra da Estrela, Gastronómica do Leitão da Bairrada, do Bolo de Ançã, Confraria Gastronómica do Bucho de Arganil… – cujo objectivo é preservar, divulgar e valorizar determinada iguaria regional ou local.
Surgiram as semanas ou as quinzenas gastronómicas. Criaram-se os concursos das «7 maravilhas» da mesa, das sobremesas… Cada localidade chamou a si o nome de «capital» de determinado alimento: Sever do Vouga, capital do mirtilo; Santa Luzia (Tavira, Algarve), capital do polvo… Redescobriram-se as ervas aromáticas: o poejo, os orégãos, o alecrim, o rosmaninho, o tomilho… De novo, se deu importância aos coentros, à salsa, à hortelã, inclusive porque se chegou à conclusão que, além de emprestarem novos sabores aos alimentos, poderiam dispensar facilmente o sal, por exemplo.
Hoje, a gastronomia ocupa, por conseguinte, papel relevante em cada localidade, sendo bem aproveitara para a sua promoção turística tanto internacional como nacional. Não é raro ouvirmos alguém dizer-nos que á capaz de percorrer cem quilómetros pata ir… a Almeirim, comer a sopa da pedra! Ou à Bairrada saborear um leitão assado! Ou a Montemor-o-Velho à Festa da Enguia!...
Eu fico-me, por agora, no meu Algarve e sugiro:
– como entrada, pãozinho caseiro com azeitonitas temperadas, a que não podem faltar os orégãos; e um pratinho de carapauzinhos alimados;
– uma sopa de beldroegas (uma daquelas ervinhas humildes que têm bem requintado sabor);
– um jantarinho de grão, que é a versão algarvia do cuscuz berbere (e não é a língua árabe a maior fonte de inspiração para os vocábulos gastronómicos portugueses?...);
– à sobremesa, arroz doce, bem polvilhado de canela (sim, essa especiaria que os Portugueses trouxeram do Oriente); ou, se se preferir, uma laranja, que não há outras iguais às do Algarve – e como é que se diz ‘laranja’ em língua grega? Exacto: πορτοκάλι!
– após o café, como digestivo, um licor: de poejo ou amêndoa amarga!
De comer e chorar por mais!
Bom proveito!

                                       José d'Encarnação

Portugal-Post (Correio luso-hanseático) [Hamburgo], No. 65, Maio de 2019, p. 20-23. Texto em português, com tradução para alemão por Karin von Scheder-Schreiner)


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