quinta-feira, 20 de junho de 2019

As pègadas

             De pègada hoje se fala muito. Ele são as pègadas dos dinossáurios indelevelmente gravadas na rocha. Ele são as pègadas dos animais sabiamente procuradas na selva pelos especialistas que zelam pela conservação das espécies. E – claro! – a tal «pegada ecológica», definida como (imagine-se!) «a quantidade de terra e água que seria necessária para sustentar as gerações actuais, tendo em conta todos os recursos materiais e energéticos, gastos por uma determinada população».
            E a pègada que cada um de nós deixa e que todos desejamos seja boa. Como aquele desejo de um autor religioso: «Que a tua vida não seja uma vida estéril. Deixa rasto». Ou, como escreveu o imortal Antonio Machado,

                                   Al andar se hace camino,
                                   y al volver la vista atrás
                                   se ve la senda que nunca
                                   se ha de volver a pisar.

            Recorda-se, porém, inexoravelmente, a eterna «Balada da Neve» de Augusto Gil: 

                                   «E noto, por entre os mais,
                                   os traços miniaturais
                                   Duns pezitos de criança...
                                   E descalcinhos, doridos...
                                   A neve deixa ainda vê-los,
                                   primeiro bem definidos
                                   Depois em sulcos compridos,
                                   porque não podia erguê-los!...

            Estanquei na silenciosa serenidade da manhã. Apenas esparso assobio de melro pela encosta. Domingo. O parque, vazio. Viera ali passear com o «Spike». No saibro fino, nítidos e lentos (imaginei!) os rodados das viaturas. Uns por cima dos outros, num atropelo. Havia, no entanto, pègadas que particularmente me chamaram a atenção. De pombos ou, mui provavelmente, dos casais de rolas que amiúde se viam por ali. Nítidas também, muito nítidas. E lentas. Em passeio. Primeiro, afastadas; depois, como quem se enamora e vai encontrar-se…
            Na brandura da manhã, dei comigo a pensar, olhando o chão, na terna lição daquele casal. Eles pisaram os rastos dos automóveis, eles deixaram tranquila marca da sua presença…

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 756, 2019-06-15, p. 11.

1 comentário:

  1. Que lindo texto, tão poético, de respiração tão fresca. Já dei comigo também encantada com o que parecia um rosário imenso desenhado na areia, cada pegada, uma conta, três riscos em diferentes direcções, como trevo estilizado. É preciso madrugar para sentir a Natureza e os animais que a habitam. E deixam marcas...Como nós, seja qual for a força da incisão. Beijinhos e para béns

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