sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Aquele toque incessante…

             Saboreava eu frugal merenda. O Spike adormecera no chão, num respirar mui sereno. Aquele toque chamou-me a atenção no silêncio enorme da sala, que a serenidade exterior complementava. Nem um raminho do pitósporo bulia. Eram os segundos do relógio de parede. Um após outro, um após outro. Divertia-se o ponteiro, achei eu, a dar saltinhos a cada segundo que para mim deixara de existir.

            Dei comigo a pensar nos monges de antigamente. Havia as Laudes, logo pela manhã. Se calhar, ainda há, nomeadamente em mosteiros de clausura. Laudes, o começo da jornada, a louvar a alegria de estar vivo, de ter um dia pela frente. Cantavam as Vésperas ao cair da tarde. Vinham depois as Completas, a concluir o ciclo diurno.

            E lembrei-me do toque das ave-marias, a regular a labuta nos campos, do nascer ao pôr-do-sol, com a necessária pausa do meio-dia. Mesmo nos meios urbanos, os párocos fazem questão nesse toque das Trindades, como para lembrar que há tempo para além do tempo. Ao meio-dia, junta-se ao Angelus, em muitos sítios, o toque lancinante da sirene dos bombeiros. «Já é meio-dia, senhores?! Como o tempo passou depressa!».

            Ainda bem se a sensação é essa – que, para idoso num lar sem visitas nem gente que o possa acarinhar, dar-lhe a mão, fazer-lhe uma carícia e ele a sentir-se ainda gente… para idoso assim, que martírio esse lento e taciturno escorrer monótono das horas, pautadas somente pelo ritual das refeições…

            Tanto que tenho lido – e até escrito! – sobre o tempo, que, felizmente, desde moço me habituei a usar bem! No colégio, era meia-hora para as abluções matinais, dez minutos para o banho de chuveiro semanal, meia-hora para as ‘ocupações’… ‘Ocupações’: curioso nome dado às tarefas diárias, por que todos tinham de passar, a fim de perceberem como se faz.

            Lembrei-me, por isso, do anúncio do filme «Mãe Fora, Dia Santo em Casa», de Ludovic Bernard, que começa com o pai a dizer à mulher que ela é uma felizarda, porque põe os putos na escola e fica livre o dia todo. Ela tira, portanto, dez dias de folga e a família fica… sem mãe! Coitado do senhor, que nem calculava a quantidade de voltas que uma «dona de casa» (!) tem de dar! E ia deitando fogo à casa, o pobrezinho!...

                                                                                  José d’Encarnação

                Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 785, 15-10-2020, p. 11.

 

 

3 comentários:

  1. Lembro-me perfeitamente de ter comentado este texto: por ser belíssimo, por falar das divisões monásticas do tempo (decorei-as para compor um livro meu) porque nessa divisão a referência ao Angelus me lembra a hora do almoço, na infância, e as Trindades o momento de recolher. Gostei muito da referência a esta particularidade do "lento e taciturno escorregar das horas" (que lindo) para pessoas com muita idade, pouco afecto e deprimidas...Gostei por ter aprendido que aquele arbusto de que eu gostava por causa do aroma, tinha o pomposo nome de pitósporo...E gostei porque os relógios de parede me fizeram lembrar uma frase de Mário Quintana, que também referi no comentário que voou: "o mais feroz dos animais domésticos é o relógio de parede: conheço um que já devorou três gerações da minha família"...Bem hajas, querido Amigo, por esta forma tão fluida de comunicar.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Lembro-me perfeitamente de ter comentado este texto: por ser belíssimo, por falar das divisões monásticas do tempo (decorei-as para compor um livro meu) porque nessa divisão a referência ao Angelus me lembra a hora do almoço, na infância, e as Trindades o momento de recolher. Gostei muito da referência a esta particularidade do "lento e taciturno escorregar das horas" (que lindo) para pessoas com muita idade, pouco afecto e deprimidas...Gostei por ter aprendido que aquele arbusto de que eu gostava por causa do aroma, tinha o pomposo nome de pitósporo...E gostei porque os relógios de parede me fizeram lembrar uma frase de Mário Quintana, que também referi no comentário que voou: "o mais feroz dos animais domésticos é o relógio de parede: conheço um que já devorou três gerações da minha família"...Bem hajas, querido Amigo, por esta forma tão fluida de comunicar.

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