sábado, 24 de julho de 2021

Aquele estranho baptismo em Pax Iulia!...

       Estranha-se, de facto, aquele altar romano de calcário achado nos arredores de Beja – sem que se saiba exactamente onde e em que circunstâncias – dado a conhecer, pela primeira vez, por Leite de Vasconcelos, em artigo publicado no n.º XX (1935) da revista Brotéria. Todos os investigadores sublinham o seu carácter único e pressentiram haver ali, oculto, algo de misterioso. Não ousam falar de “sociedade secreta”; mas, muito provavelmente, é mesmo disso que se trata!... Vamos ver!
        Leite de Vasconcelos voltou a referir-se ao monumento em 1956, onde esclarece como é que veio parar ao Museu Nacional de Arqueologia. Um filho de Manuel Joaquim Duro, de Beja, vendera-o a Luís Reis Santos, que o levou para sua casa em Lisboa. Convidado para o ver a 21 de Novembro de 1933, Leite de Vasconcelos não resistiu e pediu-o para o (então) Museu Etnológico, “onde hoje está”. Tem o n.º de inventário E 7268.
        Interessante é também a informação dada por Leite de Vasconcelos: “O estrago que a lápide apresenta na parte inferior resultou de tencionar o seu primeiro possuidor adaptá-la piedosamente a lousa da sepultura do pai, porque Manuel Joaquim Duro negociara em cousas velhas (eu próprio lhe comprei algumas para o Museu Etnológico), e o filho entendia que prestava boa homenagem à memória do pai, cobrindo-lhe os restos mortais com uma pedra romana”.
        Com 80 centímetros de altura, 42 a 47 de largura e 20 a 38 de espessura, o altar apresenta na sua face dianteira uma inscrição latina que não oferece dúvidas de leitura, por felizmente ter chegado até nós intacta, sem beliscaduras, como se um enorme respeito despertasse ou dela se desprendesse algo de mágico – a preservar para todo o sempre. Neste caso, para nosso regozijo e por ainda mais nos espicaçar a curiosidade.
        Em português, como se poderá traduzir?
       Assim:
      «Consagrado à Mãe dos Deuses. Dois Irineus, pai e filho, ‘criobolados’ no dia do seu nascimento, sendo sacerdotes Lúcio Antístio Avito e Gaio Antístio Felicíssimo».
        Eu não disse que havia mistério?...
        A Mãe dos Deuses vem expressa em siglas – M ‧ D ‧ S – o que denota ser consagração comum, a todos compreensível. Aliás, o “S” final fazia parte do quotidiano epigráfico, quer nas inscrições votivas (dedicadas a uma divindade, como aqui) quer nos epitáfios. Desdobra-se e ‘S(acrum)’ significa “consagrado”, o que lhe atribui um caráter sagrado, inviolável.
        As siglas M ‧ D não oferecem dúvida: são também habituais para designar a Mãe dos Deuses (em latim, ‘Mater Deorum’), designação por que era conhecida Cíbele, uma divindade cujo culto, com raízes na parte oriental do Império Romano, cedo assumiu características muito próprias, secretas.
         Secretas?
         Sim.
      Os seus fiéis começaram a criar entre si laços de solidariedade, de camaradagem, unidos como estavam por interesses comuns. Esta é, de resto, uma tendência de todos os tempos, visível na actualidade: sob o manto de uma devoção específica, duma causa nobre, facilmente germinam também cumplicidades políticas e económicas, por exemplo. Daí que, para ingressar no grupo, o candidato haja de se submeter a rituais iniciáticos mantidos, por isso, no mais completo segredo.

UM BAPTISMO DE SANGUE?  

        Como sempre, o mistério desperta a imaginação, suscita interpretações variadas e quem, por qualquer motivo, ou não é aceite ou perfilha outras ideias não perderá nunca a ocasião para denegrir o “inimigo”. Não chegou a dizer-se que os cristãos “comiam criancinhas”, sarcástica explicação do ritual da comunhão?
          Lê-se na inscrição de Pax Iulia que os dois Irineus foram ‘criobolati’ e ingressaram, desta sorte, na comunidade dos crentes devotos da Mãe dos Deuses, considerando, pois, esse o dia do seu nascimento verdadeiro – ‘natali suo’, vem no texto. E então o que é que lhes fizeram?
O crinobólio dos dois Ireneus, reconstituído por José Luís Madeira!...
      Foram submetidos a um cerimónia iniciática, presidida, como convinha, por sacerdotes: Lúcio Antístio Avito e Gaio Antístio Felicíssimo, possivelmente irmãos. Chamava-se a essa cerimónia o ‘crinobolium’, palavra habitualmente aparentada com ‘taurobolium’. Embora ‘crinon’, em latim, significasse “unção”, o certo é que se costuma considerar que o ‘crinobolium’ esteja ligado ao sacrifício de um carneiro, como o ‘taurobolium’ ao sacrifício de um touro.
         Dizia-se atrás das maledicências. Foi isso, de facto, o que aconteceu.
        Dado que a cerimónia era secreta, um escritor cristão do século IV, Prudêncio, achou por bem “descrever” à sua maneira, num dos seus poemas, o quadro sanguinolento em que tudo isso, na sua versão, ocorreria. Assim, em relação ao ‘taurobolium’ (e decerto dessa forma se passaria também em relação ao sacrifício dum cordeiro), narra Prudêncio, segundo Emílio Espérandieu, que o iniciado descia a um fosso coberto por um estrado esburacado. De tronco nu, levava na cabeça uma coroa de ouro, uma mitra aureolava-lhe a fronte, vestia túnica de seda cingida à cintura. Amarrado em cima do estrado, o touro era então mortalmente trespassado por longo cutelo, o sangue escorria pelo estrado e regava o corpo do iniciado. Ao subir, aclamavam-no os correlegionários, qual neófito! Era como que um baptismo de sangue. O ‘natalicium’, a regeneração pelo sangue!

EM CONCLUSÃO

        Tivesse sido esse ou não o cerimonial a que pai e filho de bom grado se sujeitaram, o certo é que por aqui se vê como a população da romana Pax Iulia, além de estar bem dentro dos costumes oriundos doutras áreas do império, tinha uma vida social bem activa.
        Perguntar-se-á: como é que, apenas através duma inscrição tão pequena, se chega a essa conclusão? Não será generalização despropositada?
        Creio que não.
        É altar, este, de pequenas dimensões, sim; e único; mas, por detrás da concisão do seu texto, há, naturalmente, todo esse mundo a movimentar-se!
        Não foi seguramente resultante de mero acaso desprovido de intenção o facto de, um dia, há mais de 2000 anos – a inscrição deve ser de meados do século II da nossa era – alguém se ter lembrado de imorredoiramente nos comunicar, gravando-o na pedra, o que lhe acontecera e que fora, para si, motivo de grande júbilo.
        Não sabemos exactamente o que foi. Envolto ficou em mistério. Mas que aconteceu, aconteceu!... Os dois Irineus entraram jubilosamente na comunidade dos devotos da Mãe dos Deuses, a magna Cíbele!
 
                                                                           José d'Encarnação

     Publicado em Diário do Alentejo, nº 2046, 09 de Julho de 2021, p. 13.

6 comentários:

  1. Obrigada, Professor por este ensinamento.
    Será que o Homem não consegue deixar de ser " sanguinário" e substituir o secretismo por outra opção,melhor?

    Votos de descanso neste tempo que chamamos de férias!

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  2. Que interessante...como se busca desde sempre o mistério...e se quer mergulhar nele.
    Haver quem se embrenha em o descodificar é tambem3 um mistério..e felizmente que nós temos a sorte de participar nessa descberta ( lendo...)

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  3. Que texto fabuloso. E a propósito de um altar romano de calcário, de "pequenas dimensões", até, encontrado nos arredores de Beja! As palavras inscritas também não são assim tantas, mas por elas o autor consegue a fascinação de descerrar uma cortina sobre a História e fazer-nos viajar para trás, no Tempo. São As Pedras Que Falam, título do fascinante livro de José d´Encarnação que tenho o prazer de estar a ler...

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  4. Que bela lição de Epigrafia!

    Nada sabia sobre a pedra de altar de Pax Julia e fiquei esclarecido com a tua fascinante explicação.

    Bem-haja. Um forte abraço.

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  5. Muito elucidativo, muito conhecimento e uma ótima aprendizagem.

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