quinta-feira, 12 de junho de 2025

Um mosaico romano com história para contar

Difícil será que alguém nunca tenha ouvido falar que, nos começos de 1976, se descobriu na Rua Infante D. Henrique, antiga Rua da Carreira, na capital algarvia, um mosaico romano de características deveras singulares.

O seu primeiro estudo foi publicado nas páginas 219-230 do nº X dos Anais do Município de Faro, datado de 1980, e ficou a dever-se a uma equipa interdisciplinar: Adília Alarcão e Carlos Beloto, do Museu Monográfico de Conímbriga, museu que detinha, na altura, importante escola de tratamento dos mosaicos romanos; Maria Manuel de Almeida, assistente da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, que se iniciava então no estudo especializado desse tipo de vestígios deixados pelos Romanos; e eu próprio, José d’Encarnação, epigrafista, porque o mosaico apresentava uma inscrição, cujo significado e integração histórica seria de interesse assinalar.

Vamos dedicar, mui possivelmente, mais do que uma crónica a tal descoberta, atendendo a esse  seu valor histórico-documental.

Propor-se-á, por hoje, uma primeira reflexão que de imediato surgiu, a propósito da toponímia do arruamento onde a descoberta ocorreu.

Rua da Carreira se chamara a rua, depois baptizada com o nome do impulsionador dos Descobrimentos. Dir-se-á, desde logo, que esse baptismo ocorreu antes de haver sido descoberto o mosaico, o que não deixa de ser coincidência, dirão uns, ou um ‘sinal’, dirão os que acreditam (como eu acredito) que o acaso não existe. Dum lado, o mosaico com a representação de Neptuno, deus do mar, segundo a crença dos Romanos; do outro, o Infante, qual arauto da expansão portuguesa pelos mares além. Coincidência? Quem o saberá?!

Acontece, porém, que, antes, o arruamento, como se disse, Rua da Carreira se designava. Seguramente os estudiosos locais – mormente os dados a estas questões da toponímia – já explicaram tudo a esse respeito, a razão da designação, e eu me renderei ao que vierem elucidar-me.

Sabe-se, contudo, que, quando ainda não existiam eventuais comissões municipais de toponímia nem mui sábias reuniões camarárias em que o assunto viesse a lume, o grande mestre para dar nome às veredas, aos atalhos e às ruas era… o Povo! As pessoas que, no dia-a-dia, chamavam os sítios pelos nomes que mais lhes soavam e mais se coadunavam com o seu viver quotidiano.

Neste caso, permita-se-me a elucubração (se o é…), ‘carreira’ poderia ser, nos finais do século XIX, princípios do XX, o sítio onde se apanhava a ‘carreira’, ou seja, aquele transporte público que levava os farenses até às aldeias vizinhas, a S. Brás de Alportel, por exemplo.

E aí está, a título de exemplo, a imagem duma das carreiras da Empreza Central de Transportes, Limitada, de José da Cruz Costa, que, em 1927, fazia as ligações entre S. Brás de Alportel, Loulé, Faro e Olhão.

Mas ‘carreira’ é também ‘caminho’. E, neste caso, se havia uma Rua da Carreira, poderia ser porque ela consubstanciava precisamente a ideia de ser esse o caminho principal para entrada e saída da povoação. Lembro que esse papel cabe habitualmente à «Rua Direita», que é, em boa parte das povoações, a rua do comércio, por se tratar da rua ‘directa’, de saída e entrada, «direita» que de direita geralmente nada tem, como a ‘vereda’ que se preza nunca é direita também, mas aos rr e ss…

Lembro, ainda, que, em Toulouse, para se manter a memória, as placas toponímicas das ruas mantêm os dois nomes das ruas, em língua francesa e na língua tradicional (hoje já não falada), o occitano, de modo que pode ler-se, numa placa, Carrièra d’Austerlitz.

E, entre nós, não se tornou usual a expressão «nau da carreira das Índias»? Portanto, um nome com história!

É dedicado ao Oceano o mosaico romano achado na Rua da Carreira. Coincidência, decerto, não será, porque, apresentando a elegante imagem da cabeça do deus Oceano, de carreiras e de comércio vamos ter de falar. Fica a promessa!

Publicado em Sul Informação, Fevereiro 25, 2025:

https://www.sulinformacao.pt/2025/02/um-mosaico-romano-com-historia-para-contar/

José d'Encarnação

Nota: Esta é a primeira crónica do professor José d’Encarnação no Sul Informação, um novo cronista que nos levará, com regularidade, a viajar pelo mundo da arqueologia.


terça-feira, 3 de junho de 2025

O rebuçado

        Longe de mim estava, bem longe, a ideia de que, ao começar a ler A Capital, de Eça de Queiroz, logo as primeiras páginas me induziriam a escrever esta crónica.
 
        
        Na Nota Introdutória à edição que tenho, ao caracterizar-se a situação desta obra póstuma no percurso literário de Eça de Queiroz, explica-se, sem o menor rebuço e com toda a clarividência:
        «Em A Capital, Eça retrata duramente a fauna dos salões onde Artur Corvelo, vindo de Oliveira de Azeméis, se perde e se arruína na tentativa vã de encontrar a fama como literato e a fortuna, que se julga poder fazer escrevendo».
        Antes, porém, de Vasco, o protagonista, demandar essa capital, ele frequentou as estouvadas literárias e outras da Coimbra dos estudantes e passou férias, a determinada altura, em casa das tias, em Oliveira de Azeméis, o ambiente naturalmente provinciano de então, que Eça não hesitou em descrever com as tintas mais carregadas.
        Engraçou com Vasco o farmacêutico local e, um dia, após filosófico diálogo sobre a família, “instituição responsável”, “num reconhecimento às Corvelos, por possuírem um sobrinho de tanta virtude doméstica, pesou um quarto de rebuçados, encartuchou-os e exclamou:
          – Para as senhoras suas tias, da minha parte. Compreendo o gosto que fazem em Vossa Excelência”.

 

        Surpreendeu-me, confesso, o cartucho de rebuçados. Não havia motivo para surpresa, disse de imediato de mim para comigo; era natural a oferta dum cartucho de rebuçados nesse final do século XIX.
         De facto, nesse caso o cartuchinho de rebuçados desempenhou bem e a preceito o seu papel; contudo, pensando melhor, acabei por verificar que, afinal, o rebuçado – ou arrabuçado, como, por vezes, se dizia – sempre estivera bem presente na minha vida. Ainda na semana passada, ao tirar dum púcaro a fatura do restaurante, para pagar o jantar, dei com dois rebuçadinhos no fundo. Saboreei-os com gosto, achei simpático o gesto da gerência e não me surgiu nenhuma reflexão a esse propósito.
        A frase do Eça não. Fez-me voltar aos tempos de criança: «Se fores ali à venda fazer-me este mandado, eu dou-te um rebuçado!»; «Toma uma coroa para comprares rebuçados»…
        Por vezes, nessa vontade de amealhar uns tostõezinhos, ou não se compravam os rebuçados e se punha a moedita no migalheiro, ou gastavam-se apenas dois tostões e guardava se o resto. Doutras vezes, não havia moedas para o troco, ou fingia-se que não havia, e lá iam os rebuçadinhos para o bolso. Poderiam até servir para colher as boas graças daquela de que – em miríficos sonhos de criança… – já antecipávamos noiva…
        Outra imagem me surgiu forte neste queiroziano cartucho de rebuçados: o Padre João de Moura Pires. Foi diretor da Escola Técnica e Liceal Salesiana do Estoril, quando, em meados da década de 50, eu lá fui aluno. O Padre Pires não perdia o recreio da hora de almoço, passeava-se pelo pátio, falava com este e aquele, conhecia pelo nome todos os alunos, aplaudia as boas raquetadas do ténis ou o bom bolar do vólei e, sorrateiramente, lá tirava um rebuçado do bolso da batina e distribuía por quem estava por perto. A imagem acabada do sistema preventivo de Dom Bosco, que preconizava a maior convivência entre docentes e estudantes, mormente nas horas de recreio. Era um mimo, esse rebuçadinho, que sabia mesmo bem e detinha um significado que ultrapassava de longe o docinho concreto a derretidamente deliciar paladares…
        Tiveram o desejado efeito os rebuçados do cartucho oferecido às Corvelos pelo boticário. Agradam-nos os rebuçados verdadeiros que de doçura vão salpicando os nossos dias. Entre os grandes do nosso tempo também oferendas de rebuçados se fazem. Na intenção e no concreto porém, essoutros são mesmo rebuçados no verdadeiro sentido da palavra: têm rebuço, onde sempre alguma manigância se esconde…
 
                                                                                                 José d'Encarnação
 
Publicado em Duas Linhas, 3 de Junho, 2025: https://duaslinhas.pt/2025/06/o-rebucado/