sexta-feira, 27 de junho de 2025

Estrafegar

            Sempre assim foi; contudo, há agora, cada vez mais, ao ouvirmos determinadas afirmações, ao termos conhecimento de determinadas atitudes, ao sentirmos na pele as picadelas da má governação ou da má vizinhança, que nos sai, forte, da boca:
            – A minha vontade era estrafegá-los a todos, que só nos sabem é charingar!
            E, em relação a alguém que especialmente nos fez mal e perdemos de todo a capacidade de dar cabal cumprimento às obras de misericórdia, gritamos:
            – Se eu o apanhasse, malvado, até os ossos eu lhe tarrincava!
            Assim, duma assentada se soltaram, raivosos, três verbos viperinos.
            Charingar vem no «Dicionário do Falar Algarvio«, de Brazão Gonçalves, e, além de aí se apresentar como um dos sinónimos de «importunar», explicita-se que a palavra originária era ‘seringar’, porventura do tempo em que a seringa dos senhores doutores ou das meninas enfermeiras era objecto de que, qual criancinha, se procurava fugir a sete pés. Hoje, picadela de seringa nem se sente e aquela pancadinha que a menina não deixa de nos dar até sabe a doce carícia. Charingar é, pois, muito mais do isso: é chatear mesmo, ser maçador até mais não.
            Note-se, porém, que, nem sempre essa tónica amaldiçoada está presente. Ora veja-se:
– «Estou charingado contigo. levas tudo prá brincadeira». «Se o avião não chega a horas, estamos charingados!». «Isto está uma fila que eu sei lá! Estamos charingados!».
Estrafegar também pode ser de maldade: «Se o apanho a jeito, estrafego-o todo», que é como quem diz «dou cabo dele!». Dizem que se relaciona com trasfega, que é o acto de passar uma coisa, designadamente um  liquido, dum lado para o outro, palavra que ouvimos quando a carga de um barco carece de ser passada para outro; eu acho que estrafegar não se prende com isso, mas sim com sacudidela, amarfanhamento, estragar com todas as forças!

            Já tarrincar, forma popular de ‘trincar’, é capaz de se usar mais, cá na maroteira barrocalense com um segundo sentido, de olhinhos gulosos: «Eu até os ossos lhe tarrincava, môce! Oh se tarrincava!». Percebe-se bem que se não está a falar de criação de capoeira, pois não!...

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 34, 20-06-2025, p. 13.

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