quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Diálogos no Silêncio

Perturbam-me. De miniauscultadores nos ouvidos, passeiam no paredão à beira-mar como poderiam estar fechados em cela de cortiça do Convento dos Capuchos – alheios ao mundo que os rodeia e atascados em sons artificiais que outros lhes impingiram. Tenho pena. Duvido que, um dia, pudessem ver o caule esguio da tomateira a suplicar, no vaso, que o transplantassem para se desenvolver. Transplantei-o e ora cresce a olhos vistos, na serenidade silenciosa do jardim.
E releio as declarações de Paula Rego (1):
«Vou sempre no bus 46. Gosto muito, porque neste bus há sempre muitas nacionalidades diferentes. Tudo o que se possa imaginar está lá. Gosto disso».
Um dos livros sedutores da minha juventude foi Silêncio, Gesto e Palavra, de Hélène Lubienska de Lenval,(2) donde retirei ideias e esta frase:
«As múmias são mudas, mas não são silenciosas» (p. 16).
Habituei-me, pois, a essas aparentes insignificâncias para que Belezas Ignoradas (3) também me havia consciencializado. Da beleza das coisas à beleza das palavras foi um passo.
E o livro de Sílvia Costa alia estas duas belezas. Quem diria que a proposta de um exercício escolar iria fazer ressuscitar armário velho, pejado de recordações d’outrora, saudoso de barros antigos, colheres de pau, manjares de coisas saudáveis, cultivadas na horta vizinha ou nutridas na coelheira ao lado?
Sedutor, de modo especial, este olhar singelo, tu-cá-tu-lá, na saudade dos serões prenhes de histórias, tronco velho a crepitar na lareira, da malga de açorda e um fio de azeite!...
Soltaram-se, por descuidada frincha, vetustas idades e tudo ganhou vida, pôs-se a mesa, cavaqueou-se, reinventou-se o Património!...
Pé ante pé, aproximamo-nos. Não adianta «querer adiar o silêncio, o vazio de estar só, demorar as vozes e os sons das memórias», não. Ganham inesperadas falas o cântaro, a pega redonda multicolorida, as tábuas do soalho (ai, Marianela!...), o «odor entre o pó dos anos», o migalheiro «para guardar as migalhas dos dias» numa casa em que à noite é que se vive, e, antes de ir para a cama, importava pôr tudo no lugar certo – que as histórias são «como o açúcar, a água e os fósforos»… Por isso, ela as guardou no armário. Livro aberto para quem o souber ler, no silêncio dos dias e das noites…
E assim se saboreiam as palavras, sem detença; as memórias; o reviver de uma gente antiga e nova, a labutar nas eiras e espigueiros, outra noite, outro dia, outros anos… até ao derradeiro ponto final – que mais são reticências, a embalar
gerações…

Notas: (1) P. 49 da revista ÚNICA / Expresso, edição de 22.08.2009.
(2) Li-o na edição da Aster, Lisboa, 1961, tradução de Jaime Cunha. Título original: Le Silence a l'Ombre de la Parole, Ed. Casterman – Maredsous, 1961.
(3) Do Dr. Thiamér Toth, Coimbra Editora, 21958.

Prefácio a De dentro do Armário, de COSTA (Sílvia Laureano), Apenas Livros, Lisboa, Novembro 2009, p. 3-4. [ISBN: 978-989-618-277-9].

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