quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Sonhei com a Saguim

SONHEI COM A SAGUIM

Pus-lhe nome após a 1ª semana de vida. O focinhito deu-me logo ares ao daquele terno saguim que, na manhã de 22 de Outubro de 1989, um moleque me quis vender no Mercado Modelo, de Salvador da Bahia.
Toda matizada de cinzentos, castanhos, amarelados, pretos… era uma das preferidas de minha mãe.
E sonhei com ela uma destas noites. E fiquei pasmado como, tão esquiva habitualmente, só afável para com os donos, tomara aquela decisão: organizar o governo de toda a trupe!
Para nº 2, o irmão Sebastião, completamente diferente dela, pêlo longo, preto, quase persa (a lembrar terras do Médio Oriente). Tinha repentes de mando, atacava-a a ela e aos outros – mas tudo na brincadeira, numa de treino pró combate.
Arregimentou também o Preto, o último a chegar, de rabo amputado por qualquer acidente de guerrilha. Nunca se lhe ouvira um miado, mas sabia usar as unhas como nenhum dos outros, inesperado. Convinha-lhe para a governação.
A Bonnie e o Clyde, claro, tinham processos em cima, a fazer jus aos seus nomes. Amarelos, meigos q. b., submissos, acudiam rápidos ao chamamento. Ficaram na lista, portanto.
Do outro andar da casa, tirando o Maio, de escassos meses, que só queria era brincadeira, havia o Gatão e a Malhadinha. A Malhadinha era como ela, mas completamente esquiva. Tinha de ficar de fora. O Gatão, cópia fiel do célebre Garfield, era o mais velho da tribo. Ia convidá-lo, porque há muito que sabia dar opiniões, um olhar dele era ma i s que uma enciclopédia. E sempre era dos antigos e todos conheciam Garfield da televisão. Interessava.
Faltava o Bebé. Tigrado, europeu não havia dúvida; solto, fazia das dele, explorando tudo quanto era quintal da vizinhança. Aquela simbiose de matreirice adulta e fogosidade juvenil. Todos apostariam nele, claro, até a gatinha mais exigente!... Ná, esse tinha de ficar de fora. Ela, Saguim, sabia bem que iria ser criticada, mas, seca de carnes, olhar penetrante… não era ela quem mandava?...
No dia seguinte, quando subi para o consuetudinário café da manhã com toda a trupe à volta, até a Ana reparou no olhar malandro da Saguim como que a confidenciar-me:
– Acreditaste, não? Pensavas que eu queria armar-me em chefe deste governo? Nem penses! Foi assim uma manobra de diversão, entendes? Sempre me dá muito mais gozo estar de fora, como o Gatão. Não vês como leva uma vida pachorrenta?

José d’Encarnação

Publicado no Jornal de Cascais, 25-08-2009, p. 8.

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