terça-feira, 9 de março de 2010

O retrato de um quotidiano singular


No âmbito da Pós-Graduação em Arqueologia e Património, que frequentou em Silves, no ano de 2003, elaborou a Dra. Idalina Nobre o trabalho de investigação que está na base deste livro.
Saudando a oportunidade de, assim, tal como os seus colegas, ter aprofundado conhecimentos passíveis de serem aplicados na sua prática de técnica camarária no âmbito do Património Cultural, escolheu como tema fulcral o sistema defensivo do território de Albufeira, as fortificações que ali nasceram – e porquê - «da Idade Média ao Antigo Regime». Numa segunda parte, não menos desprovida de interesse, abordou sucintamente, a propósito, aspectos da vida quotidiana, ligados, de modo especial, à agricultura, à pesca, às produções artesanais, ao comércio.
Começa, naturalmente, pelo enquadramento geográfico, bem ciente de que são as condições naturais que determinam o povoamento e a actividade humana.
Aliciante a ideia, já por outros ventilada, de que, em tempo de Romanos, ali teria existido um povoação, Baltum de seu nome,(1) assente, quiçá, por seu turno em aglomerado anterior, proto-histórico, podendo, inclusive, suspeitar-se que o amuralhado do burgo medieval poderá ter assentado no que fora a muralha romana. Não são muito significativos os achados dessa época – algumas moedas, um anel… (2) Decerto, outros vestígios ainda virão a encontrar-se, pois que o sítio era propício à fixação humana e detinha posição estratégica em relação ao litoral.
Assim se justifica cabalmente o período escolhido para este livro, até porque, em resultado dos trabalhos arqueológicos que vão sendo levados a efeito, mais luz se poderá vir a trazer também sobre a época anterior.
Interessava, neste caso, de modo particular, definir bem o que, no perímetro urbano da cidade, ainda se mantém de tempos antigos, mau grado os deletérios efeitos do terramoto de 1755 e da sempre crescente pressão urbanística, nomeadamente a partir da década de 60 do século passado, quando a cidade se tornou privilegiado pólo turístico algarvio.
Assim, ao visitante atento, que por Albufeira antiga se passeie a pé, não poderá passar despercebido o canto noroeste da antiga alcáçova ou a chamada Torre do Relógio, ex-libris da cidade, que correspondia à defesa da porta poente da Medina árabe e onde, mais tarde, viria a funcionar uma cadeia. São vestígios valorizados já pelo Sector de Cultura municipal, no âmbito duma «campanha de valorização e embelezamento do Centro Histórico», em que a iniciativa da Autora deve ser salientada também.
Passeamo-nos, pois, com a autora, por esse centro histórico, de ruas «exíguas, sinuosas, atravancadas e com escadinhas», detendo-nos nos seus aspectos importantes: a igreja matriz e a sua história; a Praça da República (com especial destaque para os resultados das intervenções arqueológicas aí levadas a efeito e que permitiram a descoberta, por exemplo, de uma cisterna e de um silo); a igreja da Misericórdia…
E, ao observarmos inclusive a casa comum, do morador anónimo, bem adaptada à fisionomia do terreno e às funcionalidades requeridas, vamos, sem querer, recuando no tempo e imaginando a vida de outrora: e havia «fornos, lagares, adegas, pardieiros e alguns poços públicos»… – que o «rossio» era já no arrabalde…
E depois de uma circunstanciada visita ao castelo de Paderne – hoje, o primeiro monumento algarvio a dar as boas-vindas a quem, vindo do Norte, entra na Via do Infante… – visita em que se dá conta do que de mais significativo resultou dos trabalhos arqueológicos ali desenvolvidos pela Doutora Helena Catarino, docente de Arqueologia Medieval na Universidade de Coimbra, voltamos ao litoral, para sabermos de três fortificações antigas: a Torre da Medronheira, a Torre Velha, a Bateria da Baleeira… tudo com a documentação correspondente, miudamente investigada em arquivos e ora trazida a lume, escolhidas «por forma a ilustrar três momentos distintos e muito significativos, no âmbito das preocupações defensivas dos nossos monarcas»: os reinados de D. Afonso III, D. João V e D. João III, respectivamente.
Constituem as fortificações antigas, como é bem de ver, um património singular, que hoje se procura valorizar, inclusive adaptando-as a outras funções de índole histórico-cultural. (3) E se a Torre da Medronheira se encontra bem conservada e integra uma propriedade particular; se da Torre Velha só há vestígios documentais e a Bateria da Baleeira está hoje na posse da Marinha, certo é que – para além do significativo Castelo de Paderne, iluminado, estudado e, na medida do possível, preservado – outras fortificações citadas neste volume poderão vir a merecer, decerto, maior atenção.
Conclui-se a obra com a referida panorâmica sobre o termo da cidade, historiando-se o que foi a actividade da Ordem Militar de Avis, senhora do território por largo tempo. Figueiras e vinhedos, as principais fontes de riqueza agrícola; a baleia, o atum, a corvina, o pargo e o ruivo, as espécies que mais vêm referenciadas na documentação, decerto por serem as mais produtivas.
No que concerne às actividades artesanais, Albufeira pouco se terá diferenciado do resto das povoações algarvias dessas eras, ainda que não seja desinteressante focar, a título de exemplo, o facto de, em 1530, el-rei João III ter doado a Pedro Mascarenhas as saboarias da vila, sintoma da sua relevância económica.
De facto, circunstanciada consulta das posturas municipais permitiu à Autora dar-nos conta de toda uma actividade económica peculiar, o retrato de um quotidiano singular. E este livro, adequadamente ilustrado, vem na sequência das monografias a que Idalina Nobre, mui corajosamente, tem lançado mão,(4) fazendo jus às obrigações, assumidas, de uma técnica autárquica no sector do Património, que, para além da actividade funcional, procura investigar e valorizar, assim, o património histórico-cultural das gentes da sua terra.
Que nunca lhe falte essa vontade e que às autarquias envolvidas (Câmara e juntas de freguesia) jamais escasseiem os meios para darem letra de forma aos resultados dessa profícua investigação.

NOTAS
(1) E até por isso uma das unidades hoteleiras locais viria a adoptar esse nome! Contudo, segundo Luís Fraga da Silva, tal topónimo, inteiramente fantasioso e divulgado, pela primeira vez, por Silva Lopes (1841), poderá ter resultado da má interpretação de uma moeda cunhada em Balsa. Cfr. http://imprompto.blogspot.com/2005/10/baltum.html (consultado em 2009-02-21). Essa é, sem dúvida, hipótese assaz verosímil. E, por conseguinte, importaria retirar do portal da Câmara – http://www.cm-albufeira.pt/portal_autarquico/albufeira/v_pt-PT/menu_turista/concelho/historia/ – a frase «A primitiva povoação foi ocupada pelos Romanos que lhe deram o nome de Baltum». E está correcta a informação que aí vem a seguir: «O topónimo Albufeira provém da denominação árabe "Al-buhera", que significa "castelo do mar", razão que poderá estar ligada à proximidade do oceano e/ou da lagoa que se formava na zona baixa da localidade».
(2) Recorde-se, a propósito, o que se escreveu na Carta Arqueológica de Portugal, coordenada por Teresa Marques, do então IPPAR (Lisboa, 1992). Ao concelho de Albufeira são dedicadas as p. 155-183 e assinala-se, na síntese introdutória, que «são 18 o número total de estações e achados referenciados», dos quais «uma percentagem considerável foi já destruída, encontrando-se os restantes em muito mau estado de conservação»; acrescenta-se, porém, que há dois «grande núcleos de interesse arqueológico»: Paderne (de vestígios islâmicos) e Albufeira litoral (com «uma presença romana mais acentuada» (p. 155).
(3) Cf., a mero título de exemplo, o meu texto «Arquitectura militar – espaços com vida! O exemplo dos fortes da orla marítima cascalense», incluído na revista CEAMA (Centro de Estudos de Arquitectura Militar de Almeida), 1, 2008, p. 75-81 (versão inglesa nas p. 82-85). O volume traz as actas das Jornadas da Arquitectura Militar Abaluartada, realizadas em Almeida (Agosto de 2007), onde essa temática foi largamente abordada.
(4) Recordo: Albufeira – Percursos de uma História Secular (Junta de Freguesia de Albufeira, 1995), que também tive a honra de prefaciar; A Freguesia da Guia, Estudo Histórico (Câmara Municipal de Albufeira, 1993); Albufeira – Imagens do Passado (Câmara Municipal de Albufeira, 1993 – de colaboração com Adelaide Amado); e Património Histórico Monumental de Paderne (Câmara Municipal de Albufeira, 1997).


[Prefácio a Idalina Nunes NOBRE, Albufeira da Idade Média ao Antigo Regime, Câmara Municipal de Albufeira, 2009, p. 7-9. ISBN: 978-972-8124-36-6. Edição em português e em inglês.]

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