sábado, 5 de maio de 2012

Morram os velhos – depressa e bem!


            «Numa época em que os distanciamentos geracionais são cada vez mais evidentes, em que os relacionamentos humanos se desintegram e o abandono leva à solidão dos corpos encontrados meses depois da morte, o macabro desta comédia ganha uma triste dimensão trágica para todos nós» – é a frase final de Miguel Graça, na apresentação de «Arsénico e Rendas Velhas», de Joseph Kesselring, a peça que Teatro Experimental de Cascais estreou no passado dia 23.
            Escrita exactamente no ano em que começou a II Grande Guerra (1939), cujos horrores ainda se não conheciam mas decerto já se adivinhavam, a peça subiu à cena em 1941, em Nova Iorque, e, no ano seguinte, em Londres. Explica Miguel Graça, que foi o competente responsável por esta versão actualizada (parabéns!), que o êxito então obtido se explica também pela necessidade sentida por americanos e ingleses de encontrarem um divertido escape para a pressão psicológica com que os acontecimentos bélicos quotidianamente os oprimia. Rir para não chorar; procurar ver com outros olhos uma realidade inexoravelmente bem dramática.
            Acontece, porém, que, não estando nós numa guerra mundial de armas, estamos, nesta 2ª década do século XXI, numa guerra psicológica igualmente mortífera e deprimente – e entre uma e outra, que venha o diabo e que escolha! De uma forma eufemística, dir-se-ia, põe-se, na verdade, o dedo no fundo da ferida: «a solidão dos corpos encontrados meses depois da morte»… O paradigma mortalmente economicista da política europeia (todos o dizem, todos o sabem, excepto aqueles que têm de fingir que não sabem, coitados deles!...) leva precisamente a situações idênticas às que a peça de Kesselring escalpeliza – e muitas mais serão do que nós imaginamos!...

Ser bonzinho
            Que as duas velhinhas simpáticas se limitam, no fim de contas, a aceitar como hóspedes velhinhos que não têm onde cair mortos, que ora peregrinam sozinhos por este mundo, sem eira nem beira, e cuja vida, por isso, já não tem qualquer objectivo. «Vai uma bebidinha, Amigo? À nossa saúde!». E a cave vai-se enchendo de cadáveres, honrosamente sepultados como mandam as regras, as senhoras vestidas de preto da cabeça aos pés, as orações e… venha outro!
            Um sobrinho também enveredou pelo mesmo caminho, para sanear o mundo dos seres inúteis e perversos. Com mais requinte, em jeito de cirurgia plástica…
            E tudo se embrulha por ali, uma vez que até gozam da cumplicidade de um outro sobrinho louco, que se toma por presidente dos Estados Unidos e está, por isso, sempre a sonhar com guerras, inimigos e mortos!
            Não são todos uns queridos?... Não são todos, afinal, uns benfeitores dignos, até, de pública condecoração? Não livram os políticos de uma série de empecilhos?
            Comédia macabra, sim, que nos arranca gostosas gargalhadas pelo inesperado das situações e pelo à-vontade com que se tratam assuntos de uma seriedade imensa. E não é que, tal como nesses primórdios da II Grande Guerra, nós precisamos mesmo de rir? E a bandeiras despregadas, claro! Para ver se, tal como antigamente se dizia, «é a rir que se castigam os costumes»!

A peça de teatro
            «Arsénico e Rendas Velhas» esteve em cena até ao dia 29. Faz-se agora uma pausa, devido à reposição, agora no Teatro Nacional D. Maria II, de «O Comboio da Madrugada», com Eunice Muñoz (como se sabe) na protagonista, acompanhada por outros elementos da Companhia que necessitam de ser substituídos. Voltará, pois, ao palco do Mirita Casimiro de 15 de Maio a 15 de Junho – e é peça a não perder, justamente pelo anátema que implicitamente lança aos tristes tempos em que vivemos, como se tivéssemos culpa dos progressos da Medicina em prol da longevidade. Culpas teremos, porém, se continuarmos a não levantar a voz contra o egoísmo dos que abandonam velhos em casebres por essas aldeias perdidas ou num lar que nunca mais visitam ou num hospital de que aparentemente esqueceram nome e localização
            Se fez bem Carlos Avidez em a trazer a público agora? Claro que fez! E para os estudantes da Escola de Teatro, que se sentaram por terra à beira do palco no dia da estreia, terá sido mais uma aprendizagem. Não apenas porque estava em palco a maioria dos seus professores, mas também porque, no fundo, algo da lição lhes terá ficado no subconsciente.
            Rimo-nos muito. Aquela serenidade seráfica de Anna Paula; aquele desvario de António Pedro Cerdeira, crítico de teatro que não sabe para onde se há-de virar e até quase não distingue já o teatro-espectáculo do teatro-vida (saúda-se vivamente o seu regresso!); aquele ar de inocente de António Marques, na ridícula figura austera do cirurgião alemão, Doutor Einstein, pois então! Ai, os fornos crematórios!...); as loucuras imprevisíveis de João Pedro Jesus, a incarnar George W. Bush (presidente dos EUA…); a ardência apaixonada de Rita Cabaço – tudo são bons pretextos para rir. Mas é, no fundo, repita-se, um rir para não chorar!
            Interpretações de muito bom nível; cenário singelo a servir plenamente o que se pretende; ‘banda sonora’ a condizer… Realce, ainda, para a exposição de fotografias no ‘foyer’, da autoria de Alfredo Carvalho.
            Mais uma vez, os maiores aplausos!

[Publicado no Jornal de Cascais, nº 312, 02.05.2012, p. 4].

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