sábado, 9 de novembro de 2013

As cidades do poder na Hispânia romana e a descoberta de uma cidade singular

             Decorreu em estreita obediência ao programa previsto o colóquio internacional que, por iniciativa das universidades de Santiago de Compostela e do País Basco, reuniu em Lugo, de 23 a 25 de Outubro, p. p., investigadores de cinco países: Espanha, Portugal, França, Itália e Alemanha.
            O tema proposto pela Comissão Organizadora – professores Maria Dolores Dopico (da Universidade de Santiago de Compostela), Juan Santos Yanguas (U. do País Basco) e Manuel Villanueva (também de Santiago) – foi o de se procurar esclarecer qual o papel específico que, no contexto da Hispânia romana, poderão ter desempenhado as cidades escolhidas pelo poder central para serem, aí, centros administrativos capazes de exercerem, como capitais de conventus, as funções de seus interlocutores privilegiados. Teriam, por exemplo, características distintivas?
            Costuma ser meramente protocolar a sessão inaugural e os discursos, então, de mera circunstância. Sim, Dolores Dopico recordou os objectivos do colóquio, como era de esperar. O Delegado da Cultura de Lugo, Mario Outeiro, deu, em nome da Diputación Provincial, as boas-vindas àquela cidade «hermosa» e acolhedora. Mas o alcalde, José López Orozco, não hesitou em mostrar a sua elevada cultura, haurida na Pontifícia Universidade de Salamanca e, após manifestar quanto Lugo está orgulhosa da sua história – «que queremos recuperar para um presente e um futuro melhores», sublinhou – fez questão em afirmar que «sem universidade e sem investigação não pode haver progresso; estamos a cometer um erro que muito em breve pagaremos»; e, considerando que «a luz nasce precisamente das ideias», referiu-se à festa que, em Lugo, na luminosidade do Verão, exalta o seu passado romano; e incitou os presentes a fazerem marketing da sua actividade científica, «para que a sociedade dê valor ao vosso trabalho».
            Concluiu a série de intervenções o Reitor da Universidade de Santiago de Compostela, D. Juan Casares Long, que acentuou, por seu turno, o facto de terem sido os estudos universitários que fomentaram a criação da classe média que os governantes ora parecem apostados em destruir. Prosseguiremos nessa senda de promoção da Cultura, garantiu, ainda que «seguramente com mais cicatrizes, mais esqueléticos»…

Uma panorâmica das sessões
            No 1º tema, debatido na sessão moderada por Juan Santos, apresentaram-se os modelos de outras províncias: Rudolf Haensch (Universidade de Munique) fez uma introdução geral sobre as cidades do poder no Império Romano; Michel Christol (Universidade de Paris I) referiu-se ao «modelo da Gália Narbonense»; Gino Bandelli (Universidade de Trieste) baseou-se nos documentos epigráficos para dar conta da presença do poder central nas cidades da Gália Cisalpina; Lúcio Troiani (Universidade de Pavia) seguiu as informações fornecidas pela «História dos Hebreus» de Flávio Josefo para o caso da Síria e da Palestina.
            A criação de uma rede de cidades do poder na Hispânia constituiu o tema seguinte, em sessão presidida por Isabel Rodà (do Instituto Catalão de Arqueologia Clássica). Pilar Ciprès (Universidade do País Basco) destacou passagens de Plínio-o-Velho alusivas à organização do espaço peninsular na sua época, classificando a obra deste escritor como uma selecção intelectual de elementos destinada a ilustrar uma elite sedenta de saber como era a Hispânia; Dolores Dopico interessou-se – em comunicação assinada também por Juan Santos – por aspectos concretos da governação, nomeadamente o tempo que gastariam os governadores da Hispânia Citerior, quando, em serviço, se deslocavam às capitais conventuais; a Manuel Salinas de Frías (Universidade de Salamanca) caberia falar da Lusitânia; e a António Caballos (Universidade de Sevilha), da Bética.
            Poder político, poder económico. Havia, pois, que abordar as consequências económicas que a criação de centros urbanos político-administrativos necessariamente implicava. Assim, foi esse o 3º tema tratado, em sessão que teve como moderador António Caballos. A Pierre Sillières (Universidade de Toulouse) pediu-se que falasse das capitais conventuais como «centros da administração viária e da rede de comunicações»; Salvador Ordoñez e Sérgio García-Dills (ambos da Universidade de Sevilha) mostraram a importância económica e política de Astigi, a Colonia Augusta Firma; Carlos Fabião (Universidade de Lisboa) chamaria a si a responsabilidade de mostrar como a criação de centros urbanos na Lusitânia tivera reflexos na economia, sendo certo que não pode descartar-se a ideia de que também o factor económico terá estado subjacente à criação de algumas delas; Manuela Martins e Helena Paula Carvalho, da Universidade do Minho, analisaram o cadastro de Bracara Augusta na perspectiva da transformação e organização do território decorrentes da implantação da cidade; e, a concluir essa panorâmica, Isabel Rodà trouxe-nos a dinâmica observável entre as populações e, designadamente, entre as elites de duas cidades vizinhas: Barcino e Tarraco.
            «As consequências nos povos indígenas: mudanças sociais e institucionais» foi o 4º tema abordado, em sessão presidida por Manuel Rabanal Alonso (Universidade de León). Explicitou Manuel Villanueva as novas perspectivas que ora se apontam no que concerne à criação de Lucus Augusti; Juan Santos tomou de novo a palavra para referir o impacto de Asturica Augusta (comunicação também da responsabilidade de Dolores Dopico); de idêntico tema dissertou Francisco Beltrán (Universidade de Zaragoza), mas em relação a Caesar Augusta (de notar a grafia que defendeu, em vez de Caesaraugusta, pois que, na verdade, de outra forma se não poderão interpretar, em seu entender, siglas como C·C·A·, «Colonia Caesar Augusta»), cuja «fundación supuso, desde luego, la creación de un centro vertebrador con proyección regional» e determinou, «además, una profunda recomposición no sólo del vasto territorio que Augusto le atribuyó para dotarle de una base económica acorde con esa función integradora sino también de la población que en él habitaba». Estíbaliz Ortiza de Urbina (Universidade do País Basco) levou-nos de novo a Tarraco, pois à sua intervenção deu o título «Tarraconenses e Hispani Tarraconenses – Memoria epigráfica en la práctica cívica e provincial hispana». Tive ensejo de encerrar esse tema, trazendo à colação a importância da ‘epigrafização’, ou seja, o hábito de fazer epígrafes, para veicular o poder ou o contra-poder e, ainda, para nos elucidar acerca da aculturação entre indígenas e colonos, patente nos esquemas onomásticos e na adopção das crenças, na Lusitânia ocidental.
            E coube-me presidir à sessão do último tema: «Os aspectos ideológicos». Silvia Alfayé (Universidade de Zaragoza) relacionou religião e poder na Hispânia céltica, demorando-se, de modo especial, no contributo dado pelas inscrições patentes em grutas-santuários (La Griega, La Cueva Negra…) , espaços que, mormente pelos oráculos que lhes poderiam estar associados, detiveram importante papel na vida das cidades; Jaime Alvar (Universidade Carlos III, Madrid) salientaria a enorme contribuição dos cultos iniciáticos (cultos nilóticos, de Cíbele e Átis, de Mitra) para a inovação religiosa em ambiente urbano; por fim, Juan Manuel Abascal (Universidade de Alicante) mostrou, com exemplos, as manifestações da intervenção imperial nas “cidades do poder”.
            Antes da sessão de encerramento, em que – em nome dos organizadores – Juan Santos Yanguas agradeceu a imprescindível contribuição dada pelos intervenientes, pelos participantes e, designadamente, pelas entidades patrocinadoras, Patrick Le Roux (Universidade Paris XIII) optou, na alocução final, por fazer, em termos gerais, uma reflexão do foro metodológico sobre a investigação em História; interrogou-se, por exemplo, sobre se deveríamos falar de «cidades do poder» ou, antes, de «cidades de poder», sobre a diferença entre uma «visão militar» e uma «visão civil»…

Actividades complementares ou uma cidade romana a descobrir
            Permita-se-me que não deixe de me referir a outras actividades que enquadraram este colóquio.
            Em primeiro lugar, a preocupação de dar a conhecer aos convidados sítios emblemáticos da gastronomia e do património locais, como, por exemplo, o Centro Interpretativo de Terras do Miño, polivalente parque urbano criado pela Diputación Provincial às portas da cidade, onde, como já vai sendo hábito, se aproveitou uma azenha para restaurante de sabores tradicionais.
            Depois, a cordialidade bem galega da recepção no Ayuntamiento. O alcalde fez questão de saber quem eram, um a um, os participantes na reunião e solicitou que um representante de cada país dissesse de sua justiça. Fez de novo o elogio da Cultura e da consciência histórica como indispensável veículo de promoção social e de enraizamento da população: «Vocês trabalham uma matéria-prima, o conhecimento, que jamais se esgota!». E congratulou-se pelo facto de Lugo se apresentar como cidade de características urbanas, sim, mas que não prescinde de uma ruralidade que, na actual conjuntura político-económica, se antoja como relevante caminho a percorrer. No final, ofereceu o mais recente livro de António Rodríguez Colmenero, uma síntese para o grande público acerca da génese e evolução histórica de Lucus Augusti (14 a. C. – 711 d. C.), «La ciudad romano-germánica del Finisterre Ibérico» (edição do Concello de Lugo, 2011).
            Finalmente – e não de somenos – a pormenorizada visita de estudo aos monumentos mais significativos de Lucus Augusti.
            Primeiro, a muralha de 2266 metros de perímetro, a única do Império Romano que integralmente se conserva, por onde se pode tranquilamente passear, alvo de sucessivas campanhas de sondagem e de escavação destinadas a melhor se compreender a orgânica defensiva que lhe está subjacente. Inscrita pela UNESCO desde 2 de Dezembro de 2000 como Património da Humanidade, data do tempo do imperador  Galieno (século III) e constitui, na verdade, um portentoso e bem impressionante ex-libris da cidade. Fomos guiados pelo arqueólogo municipal dela responsável, Enrique J. Alcorta Irastorza, de quem poderá citar-se, entre várias outras contribuições, a comunicação «Un ejemplo de ingeniería militar romana bajo imperial: la muralla de Lugo», apresentada ao IV Congreso de las obras públicas en la ciudad romana, Colegio de Ingenieros Técnicos de Obras Públicas, Lugo – Guitiriz, 2008, p. 15-49.
            Reúne, naturalmente, o Museo Provincial de Lugo notável acervo arqueológico, recolhido não apenas na cidade mas em toda a província. Aí periodicamente se realizam, por isso, exposições temáticas, a realçar um que outro conjunto; é disso exemplo a que, de 28 de Junho a 15 de Setembro de 2011, abordou o tema «A plástica provincial romana no Museo de Lugo», de que resultou assaz eloquente catálogo ilustrado. Era, pois, visita obrigatória! Guiou-nos, com especial relevo no sector epigráfico, o Prof. Filipe Árias Vilas, que assinou (recorde-se), com Patrick Le Roux e Alain Tranoy, um livro pioneiro no seu tempo: Inscriptions Romaines de la Province de Lugo (Paris, 1979).
            A «Domus Oceani» ou «Casa de los Mosaicos», assim chamada por ter num mosaico a representação do deus Oceano, foi-nos explicada por Enrique González Fernández, o arqueólogo que superintendeu aos trabalhos e o autor da respectiva monografia, profusamente ilustrada: Domus Oceani – Aproximación á arquitectura doméstica de Lucus Augusti (Concello de Lugo, 2005). Sita debaixo de um imóvel, está devidamente musealizada e aí pode apreciar-se, durante a visita, um vídeo que inclui reconstituições virtuais desta magnificente casa romana.
            A «Domus do Mitreo», assim designada por, numa dependência da mansão, ter sido identificado um espaço destinado ao culto do deus Mitra, com o altar dedicado a esta divindade por um centurião da VII Legião Gemina Antoniniana Pia Felix. Guiou-nos o investigador directamente ligado ao sítio, Celso Rodríguez Cao, autor da monografia: A Domus do Mitreo, edição de 2011 da Universidade de Santiago. Também ela profusamente ilustrada, constitui o catálogo de uma exposição, contendo estudos específicos sobre os materiais encontrados (numismas, vidro, cerâmica, metal) e sobre a sua integração (por Jaime Alvar) no contexto do mitraísmo hispano, assim como a relacionação do sítio com os achados arqueológicos da Praça Pio XII que lhe fica adjacente.
            Em suma: para além do muito que se aprendeu na reunião científica propriamente dita, o contacto ao vivo com vestígios arquitectónicos de tamanha importância enriqueceu-nos sobremaneira, tanto mais que as entidades com responsabilidade na cidade não têm deixado os seus créditos por mãos alheias e têm sabido, exemplarmente e em parceria, preservar, divulgar (folhetos, desdobráveis, monografias, vídeos…) e pôr ao dispor dos habitantes e dos forasteiros um singular património histórico-cultural – o que muito nos apraz registar e aplaudir.
       
Publicado em archport, a 09-11-2013
http://ml.ci.uc.pt/mhonarchive/archport/msg17105.html.


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