quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Matam-nos por dentro!

             É triste dizê-lo, mas o dia-a-dia confirma: as entidades já não nos merecem crédito. O cidadão começa a não ter confiança nas instituições que pareciam merecê-la.

1. Seguradoras
            Os seguros, por exemplo. Para que servem? Temo-los a maior parte das vezes porque são obrigatórios, pois, no momento da desgraça, é raro que não inventem s mil e um pretextos para pouco ou nada desembolsarem.
            O João teve uma fuga de gás em casa. Felizmente, deu por ela a tempo. Para a resolverem, os técnicos precisaram de escavar a calçada do jardim por onde passava a conduta. O seguro não paga a reparação da calçada, porque está no jardim. E explicaram:
            «Se tivesse havido uma explosão e as paredes tivessem ido pelos ares, sim, teriam direito a indemnização».
            Felizmente, conseguira-se evitar a explosão; e também se não ‘explodiu’ contra a seguradora; mas… todos ficaram cientes de como é que essas entidades trabalham… com as tais letras miudinhas. 

2. Bancos
            Se tens mais de 5000 euros em depósitos a prazo ou aplicados, a tua conta à ordem permanece incólume, nem lhe beliscam. Se, ao invés, puseste a prazo apenas umas economiazinhas para fazer face a eventual momento de aflição, está descansado: todos os meses, invariavelmente no dia 2, sacam-te dois euros de «despesas de manutenção» acrescidas de 0,08 cêntimos de um imposto.
            Claro, o cidadão que anda sempre à coca da bomba de gasolina que vende o combustível a uns míseros dez ou vinte cêntimos a menos para poupar, começa a deitar contas à vida: 208 cêntimos por mês com despesas de manutenção? Mas… o meu dinheiro no banco dá-lhe despesa? Ainda se me enviassem extractos mensais por via postal para casa, eu compreendia: gastam papel, gastam tempo… Agora, que somos nós que até fazemos tudo via Internet ou na caixa multibanco!...
            Conclusão: o cidadão tira o dinheiro do banco.
            Mas espera lá: põe lá os 5000 euros! Porque é que não pões? Primeiro, porque não os tenho; depois, porque correria o risco de o banco falir e eu não vejo o que aconteceu com aqueloutro que era uma referência e mais o outro e agora o outro ainda?...
            E eu penso, de modo muito especial, nos pobres dos pensionistas que recebem misérias e que também assim são espoliados…

3. A ‘senhora’
            Já agora, que estou em maré de aludir a quem nos merece – ou deveria merecer – confiança, não posso deixar de contar outra cena, passada na quadra natalícia, mais precisamente às 11,57 h do dia 24 de Dezembro, diante de pastelaria famosa e mui bem frequentada.
            A senhora sai do carro. Não é topo de gama, daqueles com que uns senhores governantes, em dia de utópica euforia, quiseram aliciar-nos como sendo o máximo da ambição do contribuinte; mas é carrinho bem apessoado. Também o casaco comprido é de marca, assim como a mala vistosa; botas altas; elegante penteado. Saca do maço de cigarros por encetar; tira-lhe a película plástica protectora e deita-a, naturalmente, para o chão; tira o cigarro, o isqueiro brilha ao sol e encaminha-se, passo lento, para a pastelaria, pois carece de fumar até lá nem que seja só metade.
            Estive vai-não-vai para sair do carro e correr: «Minha senhora, desculpe, deixou cair isto!». Não me atrevi, porque imaginei – plebeu como sou – que receberia um ar de desdém e «Olha o estúpido do homem!» contaria ela, à noite, ao jantar… Preferi continuar estúpido, sentado no meu utilitário de mais de vinte anos. E recordei, instintivamente, a imagem que, dias antes, me haviam enviado: a foto de Chris Jordan, da Foundation for Deep Ecology, a mostrar o esqueleto do albatroz estendido numa praia do nosso planeta; por entre as ossadas e as penas, vêem-se dezenas de objectos de plástico, que o pobrezinho engolira na esperança de lhe poderem matar a fome. Não lhe mataram a fome; mataram-no a ele.
ooo
            Estou triste, hoje. Que o leitor me perdoe, inclusive por ser esta a primeira crónica de um ano bissexto, em que gostaríamos de depositar todas as nossas esperanças. Estou triste, porque me apetece chamar de «plástico» às três ‘personagens’ de que atrás falei. Acreditamos que podem vir em nosso auxílio em tempos de aflição. Não vêm. E matam-nos por dentro! Como ao albatroz!

                                                          José d’Encarnação
 
Publicado em Costa do Sol – Jornal Regional dos Concelhos de Oeiras e Cascais, nº 123, 20-01-2016, p. 6.

 

6 comentários:

  1. Ana Clare
    20/1 às 20:05

    Pois é, vamos morrendo... vamos morrendo, senhor meu compadre. É que esta gente até se esquece que um dia eles também sentirão na pele todas estas mal-feitorias que nos legam, umas porque lá vamos cantando e rindo e pagamos o segurozito, porque não temos mais remédio, outras porque não temos hipótese de dizer nada.

    ResponderEliminar
  2. E, desculpe, mas também vou comentar. Fui seguida no Hospital de Cascais em consulta de especialidade por doença crónica. De repente, e por variadissimos motivos(que até sei quais são porque sou amiga de alguns médicos no referido hospital )deixo de ter médico. De há 2 anos para cá sou obrigada a ir ao privado, pagando 80 euros por consulta.
    Hoje, 20 de Janeiro, sou surpreendida com um telefonema a dizer que a minha consulta de Junho de 2014 iria ser por estes dias, em data a marcar......
    Cordialmente, e com muita ironia, agradeci a gentileza. Mas o livro de reclamações está lá à minha espera.
    Maria Helena Santos

    ResponderEliminar
  3. Marici Magalhaes
    Mestre, caso seja um pouquinho confortante, aqui estamos muuuuiiiiiito pior: já morremos e nem sabemos... Bjs.

    ResponderEliminar
  4. Filomena Barata
    li, e triste me sinto também. Belíssimo texto sobre a desilusão que nos bate à porta. Resta-nos resistir.

    ResponderEliminar
  5. Caro senhor professor como o compreendo...

    ResponderEliminar
  6. Adelaide Chichorro Ferreira

    A nossa obsessão com o plástico é um drama. Basta pormos um pé num supermercado para virmos de lá cheios dele. Traduzi em tempos uma brochura alemã sobre reciclagem dos plásticos. Não me ligaram. Entretanto não sei o que é feito dessas pessoas que na Alemanha promoviam essa alternativa à incineração. Um deles era o físico Christian Jooss de Göttingen (http://www.material.physik.uni-goettingen.de/index.php...), com um curriculum impressionante na engenharia dos materiais, mas um crítico da teoria do Big Bang, e além disso comunista... Outros que com ele apoiaram essa tecnologia não eram comunistas, mas por cá houve pinças: quê, uma tecnologia alternativa à que as multinacionais defendiam? Portanto, também me fui rendendo às vantagens do zero. Avariou-se-me a 25ª varinha mágica? Felizmente tenho o liquidificador. Está sol? Põe-se o feijão na panela lá fora ao sol. Felizmente já vão começando a aparecer supermercados que vendem os produtos (biológicos) a granel, sem químicos e sem embalagem. Felizmente algumas pessoas já vão aprendendo a fazer a sua própria comida, a 5 passos da cozinha. Acabo de apanhar ali fora umas folhas de acelgas selvagens para o almoço. As soluções zero emissões são as melhores, e estão muito mais ao nosso alcance do que pensamos.

    Institut für Materialphysik
    Das Institut für Materialphysik (IMP) ist Teil der Fakultät für Physik der Universität Göttingen. Das Institut befasst sich…
    material.physik.uni-goettingen.de|De IMP, Universität Göttingen

    ResponderEliminar