quarta-feira, 8 de junho de 2016

Direito a ter saudades

            No hospital, tive, a partir de certa altura, como companheiro de quarto, o Senhor R., de 80 e poucos anos, a quem, por necessidade e prevenção, houve que prender os pulsos. A cada passo me pedia:
            Ó vizinho, faça-me um favor: desenrodilhe-me aqui as mãos!
            Lá lhe explicava, de vez em quando, que não podia ser, que era para seu bem.
            Um dia, porém, numa conversa um tudo-nada mais longa, sabendo que fora polícia, repliquei-lhe:
            Olhe lá: e quando vossemecê punha algemas? A situação era a mesma para quem as tinha!
            Respondeu-me muito depressa, fitando-me muito sério:
            Eu nunca algemei ninguém!

A Cascais dos anos 50 e 60
            Quando o filho veio visitar o meu companheiro, contei-lhe da brincadeira que lhe fizera da história das algemas. E, claro, homem dos seus 60 anos, cascalense de gema, confirmou:
            Toda a gente conhecia meu pai em Cascais e todos o respeitavam e cumprimentavam. Quanta vez, não deixava alguém o carro por momentos estacionado às três pancadas e fazia-lhe sinal e ele, calmamente, ia para junto do veículo e ali ficava a guardá-lo, até que, instantes depois, o proprietário regressava do urgente recado que fora dar!...
            Claro, foi este o princípio de uma série de saudosas evocações, a mostrar como agora as ideologias são bem diferentes, por mais que se apregoe o contrário. Aliás, eu acho (posso estar enganado!...) que há a necessidade de o apregoar para se mascarar a realidade.
            Creio que me assiste o direito a ter saudades.
            No Facebook, em boa hora foi criada a página «Crónicas da Minha Terra e das Minhas Gentes», de que Mário Cornélio é o grande dinamizador, onde se revivem os tempos em que todos nos conhecíamos: na Praia do Peixe, nos bailes da patinagem, nas festas do Gil… e a praça, à quarta-feira e ao sábado, era ponto de encontro do pessoal das redondezas…
            O período em que os filhos dos ‘ricos’ eram educados a conviver com os dos ‘pobres’ e os dos ‘pobres’ a conviver com os dos ‘ricos’, onde o que contava era a sã e franca camaradagem…

O automóvel, fonte de financiamento
            Dificilmente me sairá da cabeça (confesso) a imagem do senhor que deixa o carro metade em cima do passeio, os quatro piscas ligados, para ir à farmácia; passa logo o carro da polícia, o condutor sai (ele próprio deixa os quatro piscas ligados, estacionado no meio da rua), nem olha para a direita nem para a esquerda, rapa dos bloqueadores e aplica-os de imediato!
            Já contei esta cena inúmeras vezes e sempre me pergunto a mim próprio se aquele agente da autoridade é uma pessoa, se consegue dormir… Deve conseguir, porque procura seguir à risca os princípios em que foi instruído.
            Admirávamo-nos da loucura dos camicases, os pilotos japoneses suicidas da II Guerra Mundial; hoje compreendemos melhor o que então se passou, porque esses jovens eram considerados pela religião xintoísta oficial do Estado espíritos guardiães da Pátria. E também por isso compreendemos muito melhor a filosofia subjacente ao quotidiano suicídio dos homens e das mulheres-bomba do Estado Islâmico.
            Percebemos, ainda, porque se instituira como prémio da Factura da Sorte um carro topo de gama e se mantém o automóvel como aliciante maior da «montra» do Preço Certo. É que o automóvel, apesar de ser, na actualidade, imprescindível meio de transporte para o cidadão (perante, inclusive, o desajuste dos transportes públicos de camionagem) constitui importantíssima fonte de receita do Estado e das autarquias.
            Solução? Creio que vai ser muito difícil «eles» mudarem; nós, os cidadãos, é que temos de mudar! Sempre ouvi dizer que Português é assim: ainda a lei não entrou em vigor por não ter sido regulamentada e já se vislumbram 1001 maneiras de lhe dar a volta por cima. Havemos de dar! Não dizem por aí que temos 1001 maneiras de cozinhar o bacalhau? E não é As Mil e Uma Noites um delicioso clássico da literatura mundial? Aí, pela artimanha de deixar um conto incompleto, a jovem Xerazade acaba por conseguir não ser executada como as demais noivas do rei Xariar. Quem sabe se nós não vamos conseguir escapar também?

                                                           José d’Encarnação

                Publicado em Costa do Sol Jornal, nº 143, 08-06-2016, p. 6.

3 comentários:

  1. Caro José d'Encarnação,
    Acredito que nos salvemos das trapalhadas que nos criam e que ajudamos a criar, quero dizer, que a maioria conseguirá salvar-se, lá que outros não revelam capacidades para suportar o infortúnio e a frustração.
    Eu também penso salvar-me, ou seja, prosseguir neste caminho da vida, cada vez menos ambicioso, quer ao nível pessoal, quer ao nível da comunidade, e se me salvar a ponto de viver mais uns anos, ainda que rendilhados de alegrias e sem defeitos físicos pesarosos, tenho a certeza de que chegarei a esse tempo bastante chamuscado.
    Chamuscado no espírito que assiste a tanta guerra; a tanta ambição; a tantos fenómenos de inimputabilidade, que ponho em dúvida se os valores que procuro transmitir poderão ser úteis à vida do meu neto ou, pelo contrário, vão conferir-lhe um elevado grau de ingenuidade perante a sociedade canalha em que vivemos.
    Com um abraço

    ResponderEliminar
  2. Escapamos, pois. É só uma questão de aplicarmos as 1001 maneiras. Muito obrigada por esta crónica. Adorei lê-la.

    ResponderEliminar
  3. Reúno os comentários que tiveram a gentileza, que muito agradeço, de fazer no FB:
    DomingoAntonio De los Santos Ontem às 13:26
    MUY BUENO Y LO COMPARTO.-

    Joao Paulo Gomes Ontem às 17:33
    Nota 20 !

    Luisa Bernardes Ontem às 18:3
    Li e concordo <3

    Aurora Martins Madaleno 22 h
    Claro que vamos escapar. Então não somos nós aventureiros?

    Marici Magalhaes • 21 h
    Muito grata professor! Beijinhos!

    Rosário Serrado de Freitas• 19 h
    Li e acredito que as «1001 maneiras» nos permitam escapar: Muito obrigada por esta crónica.

    Maria David 11 h
    Excelente, gostei muito. Bjh

    Jesús Rodríguez Morales 10 h
    Delicioso.

    ResponderEliminar