quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Pensar a vida

             Gostava de ter ainda mais posses, a fim de lhe mandar erguer um altar verdadeiro, sobre o qual lhe pudesse imolar um boi ou cordeirinho de leite. Mas não, não se atreveria a tal, até porque logo lhe perguntariam: «E onde é que o colocamos, se o templo do fórum se reveste, sobretudo, da majestade imperial e dos seus númenes protectores?!...».
            Valerius Paternus olhava, meditabundo, o sol, duma serena tonalidade rosada, a descer, suave, além, na volúpia quase infantil de se esconder por detrás das colinas…
            Sabia quanto o Sol lhe era propício no amadurar dos frutos; não ousaria, porém, consagrar-lhe ofertas – que aos mais nobres e aos iniciados nesses mistérios era múnus ciosamente reservado. À deusa Fortuna, qual mulher amada, sim, em honra dela mandaria lavrar altar pequeno mas gracioso, na demonstração do seu reconhecido carinho e no dos seus familiares, pois também eles usufruíam agora das benesses que os sacrifícios haviam logrado obter. Fortuna fora-lhe propícia.
            Amanhã demandaria a oficina do canteiro e com ele acertaria pormenores. Queria o altar em dimensões adequadas ao seu lararium. Singelo, sim; no granito róseo local; o seu nome, Valerius Paternus, após a identificação da deusa. Pôr-se-ia em siglas – toda a gente entendia… – a informação de que a considerava dea sancta, tamanhos haviam sido os benefícios outorgados; o nome da família, por de mais conhecida na cidade, poderia vir em abreviatura: VAL(erius); gostava do seu cognomen, Paternus, viria por extenso, a sublinhar até o espírito de família; finalmente, a fórmula habitual: EX V(oto) P(osuit) colocou, por à divindade ter feito a promessa.
            Assim o pensou, assim o disse ao canteiro.
            – Não queres, antes, V · L · P? – votum libens posuit?
            – Não. Fortuna sabe bem que o faço de livre vontade. Ah! Mas falta um pormenor!
            Queria o capitel bonito! Não apenas com o fóculo, a simbolizar a sua perene vontade de nele queimar olorosas essências em sua honra, mas também – gravado em meio de volutas – estilizado ramo do teixo, sua árvore totémica, protectora, cujas propriedades curativas (e mortíferas!...) já os seus antepassados conheciam…
            O canteiro acabara de ajeitar o altarzinho que Albuia Paterna lhe encomendara por devoção à Mãe dos Deuses, Cíbele, uma daquelas divindades de mui ancestral culto no Oriente e cerimonial apenas acessível a iniciados. E também ali estava – o cliente viria buscá-lo à tarde – outro altar; este, porém, a I · O · M. Todos conheciam o significado destas siglas: Iovi Optimo Maximo, Júpiter, o deus maior dos Romanos, o melhor de todos! Até os indígenas cedo começaram a venerá-lo, porque, venerando-o, queriam proclamar que de boa mente acatavam as novas concepções romanas, cientes de que, na verdade, era, afinal, o mesmo universo em que todos se moviam – e os deuses carreavam esperança…
            Paternus acertou o preço, combinou o prazo.
            Quinze dias depois, era grande o alvoroço dos seus três filhos, Maximus, Rufinus e Amoena, a mais pequenina. O avô Quintus Valerius Rufus explicara-lhes tudo. O cerimonial ia cumprir-se.
            Nascia a lua nesse auspicioso mês de Agosto. Rufinus e Paternus envergavam túnicas brancas e quiseram ornar suas frontes com verdejante ramo de louro. Sua mulher, Fausta, pusera a túnica rosa preferida; os filhos vestiram de verde e Amoena de rosa, como a mãe.
            Solene, o ancião acendeu a vetusta lucerna de bronze, que herdara, Paternus pegou na de barro; atrás, Fausta, Amoena, Maximus e Rufinus. Os instantes eram de mui respeitoso silêncio, na meditação e na acção de graças. Pensavam no bom que era ter a Fortuna do seu lado. Chegado ao lararium, Rufus retirou suavemente o véu de pura lã. Oh!... Ali estava, como que num trono, o elegante altar! Fez-se a vénia ritual e o fogo das duas lucernas contagiou o incenso do fóculo, donde perfumada nuvem se evolou. Não foram precisas palavras. Abraçaram-se, na intimidade com o Divino. A ceia culminou a cerimónia.
            Lá fora, por entre as franças do arvoredo, brilhante luar de Agosto espreitava, deliciado…
                                                                                
                                                                    José d'Encarnação
                                                                                               
 
Para saber mais
  • ENCARNAÇÃO (José d’), capítulo VI («A religião», p. 442-461) do I volume da Nova História de Portugal, Lisboa, 1990.
  • ENCARNAÇÃO (José d’), «Das religiões e das divindades indígenas na Lusitânia», in RIBEIRO (José Cardim) [coord.], Religiões da Lusitânia – Loquuntur Saxa, Lisboa, 2002, p. 11-16. http://hdl.handle.net/10316/27809
  • ENCARNAÇÃO (José d’), «O mágico simbolismo de uma árula conimbricense», Boletim de Estudos Clássicos, 58, 2013, p. 147-151. http://hdl.handle.net/10316/25163
  • ENCARNAÇÃO (José d’), «Manifestaciones religiosas en la Lusitania romana occidental», in J. M. ALVAREZ MARTINEZ, A. CARVALHO e C. FABIÃO [edits.], Lusitania Romana – Origen de Dos Pueblos, Mérida, 2015, p. 267-273. http://hdl.handle.net/10316/28664
Publicado in LIMA (António Manuel), Mudar de Vida, Marco de Canaveses, 2016, p. 122-125.

6 comentários:

  1. Grande texto. A história da Antiguidade com a poesia que nasce todos os dias abraçada ao Sol. És fantástico Zé. Ter-te por amigo é uma honra. Abraço muito sentido. Marionela.

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    1. Bem hajas, Marionela! Vamos aprendendo todos os dias... abraçados ao Sol! E aos Amigos!

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  2. Comentários a esta evocação, que (naturalmente!) me titilam o ego e cuja amizade, de que são eco, muito agradeço:

    Julia Fernandes Um texto belo para a "nossa" bela ara de Tongobriga.
    Cecilia Travanca Muito bonito. Tratar as pedras com ternura
    Graça Pereira Araújo Magnífico texto professor!
    Filomena Barata Belo texto sobre a magia que as pedras podem conter.
    Luisa Guerreiro Jacinto Belo texto. Transporta-nos para lá....
    Maria José Araújo Muito bonito, o seu texto! Obrigada!
    Aurora Martins Madaleno Que maravilha de texto! Gostei imenso. Beijinho de parabéns.
    Margarida Lino Meu querido amigo fico fascinada com as tuas aulas, bjs
    Fabio Liborio Rocha Boa epigrafia!
    Manuel Leitão Mais uma interessante aula. Obrigado por partilhar o seu saber!
    Domingos Barradas Parabéns Professor, ex-colega e amigo desde os idos tempos de Mogofores, pelos importantes ensinamentos que estás transmitindo à sociedade em geral.
    É um orgulho e um particular e verdadeiro prazer ver-te e ouvir ou ler as tuas sábias lições sobre a escrita greco-romana e a sua interpretação, inserida na pedra, monumentos e grandes obras pelos nossos antanhos.
    Um grande abraço de estima, apreço e admiração.
    Muita saúde para continuares a presentear-nos com estas maravilhosas lições, escritas ou orais, de mestre insigne que és na verdade.

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  3. Caríssimo, mal resisto a um desafio, principalmente quando de tal modo motivado:

    de Valerius Paternus tivemos
    a fortuna de ter testemunho
    por saberes que um José hodierno
    nos transporta do fundo do mundo

    alva a túnica
    e brando o seu passo
    à Fortuna se vai entregar
    e um canteiro ao som do seu maço
    em granito o fará perdurar

    foi há tanto
    tanto tempo e no entanto
    hoje nasce em lembrança louçã
    por saberes que um José hodierno
    nos transporta ao raiar da manhã

    de Jorge Castro, com gratidão e amizade.

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  4. Sensibilizadíssimo, meu caro Jorge, por lhe ter despertado Musa tão eloquente, no desenrolar do ritual! Um abraço, grato!

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  5. Maria Helena
    segunda-feira, 15 de Agosto de 2016 18:50
    Notável epigrafista e ser humano de rara sensibilidade, só podia produzir um texto tão belo como didáctico.
    Bem haja por ser quem é.
    Com um abraço da Helena

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