quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Peripécias de um cidadão na vila de Cascais

             8 de Agosto. Segurança Social. Sou o nº 101. Capicua. Vou ter sorte, apesar de o quadro dizer que é o 10 que está a ser atendido.
            Olho para a sala. Não estão mais do que 25 cidadãos, embrenhados nos seus pensamentos. Poucos a acariciar o telemóvel (iphone ou ipad ou tablet, esses instrumentos de evasão). Estrangeiros a maior parte, a carecerem de regularizar situações, ou pessoas de meia-idade. Muitos se atrevem a interrogar o segurança. A pergunta, sempre a mesma:
            ‒ Eu sou o nº tal… Quanto tempo acha…».
            A frase não se completa nunca, porque o segurança, mui simpaticamente, atalha, invariável:
            ‒ Lamento, mas não posso dar uma previsão.
            A mim acrescentou:
            ‒ Um dia, vi 50 números voarem em menos de um quarto de hora. E, nesse dia, muita gente ficou prejudicada e alguns quiseram culpar-me a mim, porque lhes dera uma previsão…

Serenidade
            Olho novamente derredor. A maior parte dos rostos, serenos, dobrados sob um destino que os obrigou, nesse dia, a essa longuíssima espera, porque o Estado – ou lá quem é – tal determinou. O peso do destino. Há quem aproveite para desabafar pelo telemóvel. Já nem se olha para o quadro que a espaços apita, porque se sabe «a minha vez ainda vem longe!».
            Aguarda-se, porém, um milagre. Se vários tiverem desistido ou perderem a vez… Poucos pegaram num livro, decerto por não terem pensado que iriam passar ali tanto tempo, digo eu.
            Cheguei às 10.01 h. Estacionei a viatura num parque pago. Hoje, a Cascais Próxima vai enriquecer mais um pouco à minha custa. Foste palerma, Zé! Quem te manda a ti pertenceres à classe dos que usam viatura para se deslocarem?
            O senhor de calças cinzentas começa a inquietar-se. Deixa cair a cabeça, num desalento; já não sabe onde pôr a pasta do computador: se no banco vermelho ao lado ou sobre as pernas cruzadas.
            Telefonam-me do hospital: a minha consulta pode ser antecipada para amanhã. Nem tudo são más notícias. A do parque pago é sempre má, mas paciência! Pode ser que, um dia, a gente consiga fazer com que as sanguessugas nos suguem o sangue docemente, como nos tempos medievais, quando se aplicavam no corpo doente para só chuparem os humores malignos…
            Estou aqui há uma hora e o meu grupo já vai no 25. Não pode dizer-se que seja um mau ritmo para 2ª feira de tórrido Agosto. Aliás, mais agradável é estar aqui do que na praia. O ar condicionado a uma temperatura aceitável, ambiente calmo… Já Pinheiro de Azevedo garantia no Verão quente de 1975: «O Povo é sereno!». É, pois.
            ‒ Olhe que a hora do carro está a acabar, veja lá! – era a filha a avisar a mãe, que, confiante na sorte, encolheu os ombros.
            Deve ter o carro na rua. Eu, por via disso, pus no Cascais Center (nome chique, não é?). Cá fora, basta passarem uns minutos da hora-limite para, por artes mágicas, aparecer logo um vermelho a passar o papelinho fatídico! Mais 30 euros pró cofre!... Por isso, dentro do Cascais Center (nome giro, não é?) é que é bom! A não ser, como aconteceu comigo, que, dado que a máquina não recebe notas de 10 euros e a Cascais Próxima não dispõe de verba para pagar a um funcionário permanente, se tenha de ir esmifrar as senhoras da pastelaria ao lado e ser forçado a beber um café e as senhoras a queixarem-se «levou-me os trocos todos!». Tive pena. Mas é o que temos – que havemos de fazer?

                                                                               José d’Encarnação

P. S.: Fui atendido passava das 16 horas. Deu-me tempo para ler, inteirinho, o livro Verbetes para um Dicionário Afetivo, que vivamente recomendo.

Publicado em Costa do Sol Jornal, nº 151, 17-08-2016, p. 6.

5 comentários:

  1. Pavoroso, sempre, o que descreve! E, caro Professor, fez-me recordar velhas vivências e aventuras que partilhámos, cada um de seu lado do balcão, há uns anitos a esta parte... De seguida, de súbito, um pavor de conspiração: já reparou que, se as ditas «forças vivas» se mancomunarem contra o cidadão/munícipe, poderemos assistir ao propósito de filas e demoras infinitas exactamente para aumento de receitas de estacionamento? Este mundo não está bom, efectivamente, para os antigos. Para os modernos também não, mas, aparentemente, a sua consciência é mais ténue... Grande abraço.

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  2. Helena Santos
    Dr Encarnação, o senhor consegue traduzir por palavras o que dilacera o comum dos cascalenses. Filas sem fim, pagar por ter de esperar. Ironia, enquanto estava grávida também cheguei a não usar desse benefício de passar à frente. Hoje, e porque engordei um bocadinho (só um bocadinho ) até no supermercado fazem questão que eu passe à frente. E não adianta dizer que não....

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  3. Ana Salgado
    Cá para mim, o Professor guarda uma dessas sanguessugas medievais. A forma como encara estes momentos é, simplesmente, deliciosa! Obrigada pela partilha.

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    1. Oh! se guardo, Ana! E como a gostava de cirurgicamente a aplicar!... :)

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