sábado, 25 de fevereiro de 2017

Hoje, o café teve de esperar!

            Hoje, 25, o sábado acordou nublado, pardacento. Sem sol, a contrariar o dito popular. Eu trouxera para baixo, do pequeno-almoço, a malga onde, ao longo da semana, fôramos acumulando migalhas e espalhara-as por sobre a lioz do murete poente do jardim, sob a buganvília, ora ainda parca de flores, e junto ao jasmim, que promete ser alvacento festival florido na semana que aí vem.
           
Inesperada companhia
            Não esperávamos, porém, ter um almoço assim.
            Saboroso, o «bife à cavaleiro», muito mal passado, como recomendáramos à Paula; mas o inesperado foi a companhia. É que eles descobriram, nessa altura, as migalhas espalhadas pelo murete e foi um encanto de ver! O casal de rolas à compita, quem debica mais. Por entre elas, quase a medo, o pardal. E digo «o», porque se me afigura ser sempre o mesmo que nos visita. A janela da cozinha onde almoçamos dá para esse lado do jardim e pudemos, por isso, apreciar o vaivém. O pisco, de papo alaranjado, já nosso conhecido de há muito, veio juntar-se-lhes e aproveitava uma distracção dos outros para ir também debicar. E veio o melro, mais altivo, mais desconfiado, este com algumas penas brancas no pescoço que quase nos fez desconfiar se seria melro mesmo; mas era, com o bico amarelo e o ar apresentado no debicar, ao contrário dos outros, mais familiarizados com o ambiente, que debicavam de mansinho, na certeza de que, àquela hora, ninguém viria pôr carros na praceta e incomodar-lhes o repasto. Do que eu gostei mais desta vez foi da toutinegra: comeu, saltitou de ramo em ramo, como fizera o pisco e foi-se até ao bebedouro do canteiro. Bebericou e – zás! – atirou-se lá para dentro, saracoteando-se toda. Subiu para um tronco, sacudiu-se e, de novo, foi prá água!...
            Gostámos, confesso, da companhia, neste privilegiado princípio de tarde calma, sem barulho de carros na avenida nem sirenes de ambulâncias. A serenidade.

Sim, o café teve de esperar…
            … porque o Alta Definição era com um gigante que muito estimamos: Ruy de Carvalho.
            Conversa tranquila, como Daniel de Oliveira sabe manter. A evocação de uma vida onde as dificuldades não faltaram, mas a esperança sobrou; onde a ternura, a boa disposição, o respeito total pelos outros foram semeando – continuam a semear!... – simpatia a jorros.
            E hoje, a poucos dias de completar 90 anos, Ruy de Carvalho foi mais uma lição e, tranquilamente, ia-nos dando conta do que foi, do que é, do que ainda espera continuar a ser…
            «Amar é envelhecermos juntos».
            «É sempre o amor que nos salva».
            «Gostava de poder semear a doença do bem e do final da dor».
            «Todos os anos passo o dia da minha morte».
            «Como gostava que me lembrassem? ‒ ‘Que o Ruy foi realmente útil quando cá passou!’»…
            Só largos momentos após a resposta à pergunta sacramental «O que é que dizem os seus olhos?», é que nos apercebemos de que ainda não bebêramos o café!...

                                                             José d’Encarnação

P. S.: Transcrito na íntegra em Renascimento [Mangualde], nº 703, 01-03-2017, p. 11 - gesto que muito agradeço.


12 comentários:

  1. Maria Conceicao Neves
    Gostei imenso,sábias palavras, duma longa vida, mas com espírito jovem, como ele nos diz.

    ResponderEliminar
  2. Ana Salgado
    Gostei muito! É verdade até o café passou ao lado. Grande SER HUMANO!!!

    ResponderEliminar
  3. Luisa Bernardes 25/2 às 21:38
    E eu gostei muito da crónica, cheia de sensibilidade à calma, à natureza e atenção ao que nos rodeia, os pequenos acontecimentos da vida, muito, muito boa! Adoro a tua escrita e a tua postura, beijinhos grandes

    ResponderEliminar
  4. Edgar Valdez 25/2 às 22:22
    Caro Zé Manel
    Esta dupla crónica é entusiasmante -1º as migalhas que serviram de degustação aos passarocos que vos visitam no seu rodopio tipico - 2º a entrevista do Ruy de Carvalho que não tive oportunidade de ver, mas pela descrição mereceu o teu interesse a aplauso. Por esta crónica que li com atenção o meu abraço com muito carinho e amizade. Esperamos mais destas. Edgar

    ResponderEliminar
  5. Neyde Theml, 25/2 às 23:45
    Seja sempre assim otimista, alegre e idealista.

    ResponderEliminar
  6. Isabel Maria Luciano 26/2 às 2:05
    Gostei muito de o ler, mas sabe a pouco. Aproveite a calma dos dias para nos presentear com novas crónicas. Um abraço dos amigos que também sabem envelhecer juntos e apreciar as delícias da natureza.

    ResponderEliminar
  7. Isilda Marques 26.2, 9.31 h.
    ❤Um ser extraordinário, um exemplo de vida... Um artista fora de série.

    ResponderEliminar
  8. Ana Paula Silva Costa
    26/2 às 11:42
    Mas por uma boa razão 😉 Um grande beijinho

    ResponderEliminar
  9. Ana Maria Coelho, 26/2 às 17:16
    Grande senhor, que muito admiro.

    ResponderEliminar
  10. Margarida Lino, 26/2 às 19:03
    Tive pena de não ter visto, mas não me foi possível. Bj

    ResponderEliminar
  11. Alice Marques, 26 de Fevereiro de 2017 20:31
    Obrigada Zé, pelo tratado de ornitologia sob a forma de poesia. Ninguém escreve crónicas assim! Bjinho

    ResponderEliminar
  12. Prezado Amigo, para mim aqui está em texto o José D´Encarnação que conhecemos. Forte Abraço

    ResponderEliminar