quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Para que servem os tapetes?

             Onofre ouvira falar do tapete-voador de Zahir e vira as imagens. Gostava de ter um, que o levasse, num ápice, aonde o seu coração quisesse estar. Nunca se apercebera, porém, que é uma preciosidade, o tapete. Os Romanos faziam mosaicos multicoloridos, com pedrinhas pequeninas, as tesselas, e assim atapetavam o chão dos compartimentos nobres. Em Faro, a antiga Ossónoba, os comerciantes de peixe e de bivalves reuniam-se numa sala e lá estava, no chão, enorme mosaico, com o deus Neptuno a meio.
Tapete de Arraiolos
            Onofre já vira tapetes persas, lindos, cheios de arabescos e soubera que, entre nós, essa arte, colhida no Oriente, acabara por se enraizar em Arraiolos e, hoje, tapete de Arraiolos é quase tão caro, pelo trabalho que dá, como tapete persa autêntico.
            Foi crescendo, crescendo e acabou por ouvir, às vezes: «Olha, tirou-lhe o tapete!». E percebeu: o senhor apoiava-se em alguém, que estava sempre a seu lado, até que, um dia – zás! –, tirou-lhe o tapete de debaixo dos pés e o senhor tombou. Aliás, até veio a conhecer alguém a quem, por graça, os companheiros chamavam «Monsieur Tapis», porque era assim uma espécie de «yesman», daqueles que concordam sempre com tudo o que o senhor diz. Esse Monsieur Tapis era assim. Um dia, no entanto, desertou, e o senhor de quem ele era o «tapis», ficou sem tir-te nem guar-te e muito admirado com o que lhe acontecera.
            Onofre gosta muito, por exemplo, de ver na televisão, os senhores ministros serem apanhados pelos jornalistas. Estão num evento sobre batata-doce, mas os jornalistas estão-se borrifando para a batata-doce e querem é saber da Caixa Geral de Depósitos, dos juros, dos empréstimos, se vai haver verbas para a calamidade do dia anterior… E Onofre gosta porquê? Porque, ao lado do senhor ministro, como a senhora Trump, eterna e bem decorativa junto ao marido, há sempre dois ou três senhores, muito sérios, muito bem postos, sem tugir nem mugir, gravata no sítio, mas… a câmara da televisão gravou-os bem e eles estiveram junto do senhor ministro quando ele fez aquela declaração bombástica. Onofre, nessas alturas, lembra-se sempre de Monsieur Tapis. Eles não são tapetes porque estão de pé e tapete quer-se no chão, para ser pisado, usado a nosso bel-prazer; mas também Monsieur Tapis não andava de rojo, mas era como se andasse.
            Logicamente, Onofre tem tapetes em casa. Não os comprou todos aos ciganos. Um dia, caiu na armadilha, porque lhe bateram à porta e com falinhas mansas, peça única, barco que chegara há pouco lá do Médio Oriente, e o diacho do tapete até parecia mesmo verdadeiro e… comprou! Mais tarde, quando um amigo lhe deu tapetinho turco verdadeiro, é que percebeu que era preciso ter num dos cantos o selo de garantia. Também não tem Arraiolos; só daqueles comprados na praça («leve, freguês, que vai bem servido!»). Tem tapete aderente na banheira, isso tem, porque já muitas vezes o avisaram que cair na banheira é o cabo dos trabalhos. Mas… tem outro tapete na casa-de-banho, que, até há uma semana, usava para pôr os pés ainda molhados quando saía do duche. Depois de se secar, começava a dança do vestir: tira as sapatas (que são fechadas atrás) e veste as cuecas; calça as sapatas; depois, descalça as sapatas para enfiar os colãs (Onofre carece de aconchego nas pernas); volta a caçar as sapatas; é altura, agora, de vestir as calças e lá descalça as sapatas. Ah! Mas faltam as peúgas, toca a descalçar-se de novo para entrarem as peúgas… E era este calça-descalça todos os dias, até que Onofre… descobriu para que é que servia o tapete! Podia ficar descalço em cima dele durante o tempo todo, desde as cuecas às peúgas!... Agora é outro Onofre!
            E, ao ver o tapete vermelho das grandes recepções e das galas no Coliseu ou no Casino – está lá uma hora que seja e depois desaparece, tal como as vedetas que mui prazenteiramente o pisaram; ao ver os ‘tapetes’ solenes, impecavelmente engravatados, junto das declarações do senhor ministro perante as câmaras… Onofre dá consigo a pensar na efemeridade de uns tapetes e no consolo que tem ao usar, na sua casa-de-banho, um tapete reles, que não é turco nem de Arraiolos e que lhe serve às mil maravilhas. Claro, às vezes, enquanto faz as suas abluções matinais, também esse se transforma em tapete-voador e nele monta em demanda de um mundo sem tapetes volúveis; mas cedo desce à realidade, que as águas estão frias e ele resiste a usar a água quente!...

                                                                                  José d’Encarnação
 
Publicado em Costa do Sol Jornal, nº 175, 22-02-2017, p. 6.

6 comentários:

  1. Alice Sousa
    ah ah ah esse foi pior que eu quando era pequena me sentei num ...e fiquei à espera que levantasse voo... Nunca mais, claro! Boa tarde, abraço!

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  2. Neyde Theml
    Como seria bom, na minha situação atual, ter um tapete voador!...

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  3. Fernanda Valdez Carreiro
    Caro Zé Manel
    Esta descrição é bem elucidativa da finalidade dos «tapetes» - servem para todas as ocasiões - com ou sem os pés molhados… É ao gosto do freguês. Um abraço e venham mais! - Edgar

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  4. Aurora Martins Madaleno 22/2 às 22:50
    E vai daí, a segurança foi-se num ver se te avias! Achei graça à história do Onofre e encontrei logo umas quantas semelhanças...

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  5. Margarida Lino 23/2 às 17:24
    Meu amigo, muito interessante esta tua crónica. Coitado do Onofre, só muito tarde percebeu qual o uso do tapete.
    Eu, se tivesse um tapete voador neste momento, voava para as Ilhas Maurícias, para dar um abraço à Sandra! Bj!

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  6. Aurora Martins Madaleno 23/2 às 17:30
    Primeiro, eu ia pôr os euros a salvo, antes que por aqui voe tudo com ou sem tapete. Já não sei se os euros que recebo chegam para todos os pagamentos a fazer. Sobe a água, sobe a luz, sobe o gás, sobem as hortaliças e só baixa o dinheiro da conta bancária...

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